No vasto semiárido do Rio Grande do Norte, famílias camponesas que travaram uma batalha incansável pela conquista da terra hoje estão comprovando que é possível cultivar dias melhores longe do poderio dos latifundiários e dos agrotóxicos. Após três anos de capacitação, 32 famílias apoiadas pela CPT na região receberam a certificação orgânica do plantio consorciado do algodão, concedida pela Associação de Certificação Orgânica Participativa do Sertão do Apodi (ACOPASA).
Setor de Comunicação da CPT NE2 | Imagens: Equipe CPT Mossoró/RN
A certificação garante que todo o algodão produzido por essas famílias foi cultivado sem o uso de agrotóxicos e seguiu práticas que respeitam o meio ambiente. Além disso, com o documento, os agricultores e agricultoras já têm garantida a comercialização do produto para indústrias têxteis comprometidas com a preservação ambiental e com a qualidade de vida no campo.
As agricultoras e agricultores certificados são dos assentamentos Terra de Esperança e Maria Cleide, em Governador Dix-Sept Rosado; Professor Maurício de Oliveira, em Açu; Padre Pedro Neefs, em Upanema; Paulo Canapum e Caiçara, em Apodi; e José Sotero e Nove de Outubro, em Caraúbas.
Atualmente, 23 hectares de terra estão sendo destinados ao plantio consorciado, e a expectativa é que, nos próximos meses, cerca de 15 toneladas de algodão orgânico sejam colhidas na região. A experiência tem sido celebrada pelos agricultores e agricultoras do Oeste Potiguar, que já planejam aumentar a área plantada com o consórcio nas próximas safras. Isso porque a iniciativa tem sido uma importante ferramenta de resistência para garantir permanência na terra com mais renda, mais segurança e soberania alimentar e mais qualidade de vida para as famílias que resistem às ameaças e ao avanço de grandes empreendimentos da fruticultura irrigada no Oeste do Rio Grande do Norte.
Rumo à soberania alimentar e à preservação ambiental - No plantio consorciado do algodão, todas as práticas de cultivo levam em conta o cuidado com a natureza, incluindo a conservação do solo, o uso de adubação e sementes crioulas, aplicação de biofertilizantes, manejo ecológico de insetos, além da utilização de tecnologias poupadoras de mão-de-obra, o que otimiza o trabalho na roça.
Nesse sistema, as agricultoras e agricultores cultivam o algodão orgânico ao lado de alimentos, como feijão, milho, jerimum, fava, melancia, gergelim e amendoim. Por isso mesmo a experiência tem conquistado tantas famílias da região. Além da melhoria na renda com a comercialização garantida do algodão orgânico, o cultivo de alimentos saudáveis é um aspecto fundamental enaltecido por quem adquiriu a certificação orgânica.
A agricultora Maria Rita Borges, conhecida como Nitinha, moradora do assentamento Terra de Esperança, no município Governador Dix-Sept Rosado, possui um hectare de plantio de algodão consorciado. “Eu estou gostando muito, estou muito orgulhosa. A melhor coisa é porque nesse sistema tem diversidade, e todos os cultivos a gente comercializa com selo orgânico. É muito gratificante. Só em a gente não usar o veneno é uma benção”, destaca.
Ela conta que só este ano já colheu, no cultivo consorciado, 307 kg de algodão, 360 kg de milho, 10 kg de gergelim, além de muita fartura com o jerimum, a fava, o feijão e o amendoim. “É muito bom ter esse plantio, você sabe o que sua família está comendo. É muito gratificante,” ressalta.
Outra agricultora que recebeu a certificação orgânica foi Ana Maria da Silva Gomes. Ela tem meio hectare de terra destinado ao consórcio de algodão, e no ano que vem a expectativa é ampliar a produção. Moradora do assentamento Professor Maurício de Oliveira, no município de Açu, a camponesa comenta que “o algodão chegou no momento certo. Temos o nosso quintal produtivo e plantamos de tudo no roçado. Hoje sou uma multiplicadora de conhecimentos do plantio. Isso é muito bom para nós porque cada vez mais a gente cresce e aumenta a nossa renda familiar, a gente vai se engajando, tendo força e coragem. Ano que vem vamos aumentar o nosso plantio. Estou muito feliz em trabalhar com o algodão”, destaca.
A família do agricultor Max Andrêz de Souza Oliveira, do assentamento Terra de Esperança, também partilha do mesmo sentimento. Com um hectare de terra destinado à implantação do consórcio, Max destaca que a renda adquirida com a comercialização do algodão serve como uma forma de poupança, “até mesmo para investir em diferentes e novos cultivos de alimentos ou para a criação de animais”. O jovem agricultor destaca que essa tem sido uma forma que “as famílias buscam para não comprar muita coisa nos mercados e assim trazer mais economia para sua casa e suas atividades”, destaca.
Para Antônio Nilton, agente pastoral da CPT, ao longo de todo o processo de implementação do consórcio, foram fundamentais as reflexões sobre a importância de garantir segurança e soberania alimentar. “Não basta somente ter a produção do algodão. A ideia é justamente incorporar no sistema outros cultivos alimentares que fazem parte da dieta das famílias. Por isso, todos os agricultores e agricultoras plantam o algodão de forma integrada com outras culturas, pensando sempre na diversificação sem a utilização de agrotóxicos. Os alimentos plantados ao lado do algodão também possuem a certificação orgânica, o que é mais um valor agregado quando comercializados”.
A memória do plantio feito pelos antigos - As agricultoras Ana e Nitinha tiveram a infância marcada pela produção de algodão. No semiárido do Rio Grande do Norte, essa foi uma das principais culturas geradoras de renda, por ser uma planta resistente à seca e com capacidade de adaptação ao solo do local. Mas a vasta produção existente na região foi afetada, na década de 1980, pela praga do bicudo. Hoje, com o plantio consorciado e com novas estratégias de cultivo que garantem proteção contra a praga sem o uso de veneno, as famílias retomam o ânimo de seus antepassados.
“Lembro que meu pai fazia a cobertura no solo com esterco de gado e quando chegava o inverno, plantávamos o algodão junto com fava, feijão, milho, melancia, e nas bordas tinha o gergelim. Trabalhar com o algodão agora é uma volta na minha vida, porque a nossa infância foi no algodão. Crescemos vendo meu pai plantar o algodão”, comenta Ana Maria.
Nitinha também relembra: “a agricultura é herança dos meus pais, principalmente da minha mãe, que acordava a gente cedo pra ir pra lida. As mais velhas contam que antes do sol clarear a mãe já chamava pra ir pra roça, e quando ela comprava uma roupinha pra cada filho ou pros netos era por conta do tempo em que tirava muita colheita do algodão”.
O encontro entre a memória dos plantios passados e a experiência do presente aprofunda também os laços comunitários e revela os caminhos pelos quais as famílias percorrem com firmeza e esperança: o caminho da permanência na terra, com trabalho, fartura, cuidado e dignidade. “É maravilhoso. A gente se encontra todos os dias para limpar a terra, plantar, colher. A gente chega de manhã, conversa, canta, ficamos com a natureza”, comenta Samara Rejane, do assentamento Professor Maurício de Oliveira, sobre a rotina de cuidado que as agricultoras da comunidade têm com o roçado coletivo que consolidaram na comunidade.
Perspectivas para o futuro - Essa experiência vem sendo desenvolvida por meio de parceria com a Diaconia e do apoio da Fundação de cooperação internacional IAF. Além das famílias apoiadas pela CPT, agricultores e agricultoras acompanhados por outras organizações do Oeste do Rio Grande do Norte também participam da iniciativa.
Durante os três anos de implementação do consórcio, as famílias participaram de encontros de formação, capacitação, planejamento e de partilha das dificuldades e aprendizados. Para manter o controle de toda a produção, as agricultoras e agricultores foram encorajados a manter um caderno de campo atualizado com anotações e informações sobre cada etapa do cultivo.
Assim como Ana, Nitinha e Max, a perspectiva das famílias que garantiram a certificação orgânica é aumentar a área cultivada nos próximos períodos, comenta o agente pastoral Antônio Nilton. Além disso, ele acrescenta que também há a expectativa de ampliar o número de famílias no processo de produção consorciada. “Esse é um passo muito importante para a agricultura camponesa na região. A produção do algodão já possui comércio garantido. Então, o próximo passo é assegurar que haja unidades de beneficiamento para os demais alimentos cultivados no consórcio, assim as famílias poderão comercializar, por exemplo, o gergelim e o amendoim já beneficiados”, destaca. Com ações como essa, considera o agente pastoral, as comunidades camponesas vão percorrendo caminhos rumo à autonomia e soberania alimentar, garantindo cuidado com a Casa Comum e mais vida digna no campo.