Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Entrevista com Dom Xavier Gulles publicada no Jornal do Commercio do último domingo 20.

Por: Wilfred Gadêlha

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Dom Xavier Gilles, 73 anos, é um inconformado. O bispo francês de Viana (MA) e presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) esteve no Recife para visitar parentes e falou com o JC. Entre outras coisas, criticou o governo federal, a transposição do Rio São Francisco e até o clero conservador. E resumiu sua indignação: "Não há reforma agrária no Brasil".

JC - Como o senhor analisa a questão agrária no Brasil?

DOM XAVIER GILLES DE MAUPEOU D´ABLEIGES - A questão não está resolvida por causa do eterno problema de que as águas correm para o mar. Os ricos querem cada vez ficar mais ricos, deixando os pobres cada vez mais pobres. O latifúndio continua, com outros disfarces, sob o nome de agronegócio, hidronegócio e assim por diante. O povo elegeu Lula e eu acredito que ele poderia ter feito uma reforma agrária. De qualquer maneira, a bancada ruralista não vai deixar nada parecido com uma verdadeira reforma agrária. Depois, vem todo o neoliberalismo, com os Estados Unidos por trás. E a força do dinheiro e o sistema capitalista destroem a natureza, os ecossistemas. A questão é lucro, lucro, lucro...

JC - O senhor esperava, com o governo Lula, uma reforma agrária mais ampla?

DOM XAVIER - Não tem reforma agrária nenhuma.

JC - O senhor votou em Lula? DOM XAVIER - Votei e votaria de novo. Mas ele entrou em uma aliança impossível que não deixou que se fizesse o que se esperava. Lula, para ficar no governo, se aliou a gente de todo jeito. Conseqüentemente, não se conseguiu uma reforma agrária. O desmatamento continua, com o gado, o eucalipto e um desrespeito profundo a todas as pessoas da terra: índios, quebradeiras de coco, posseiros, quilombolas, ribeirinhos. Não há vontade. É claro que Lula fez muito pelos pobres. O povo come mais. Há povoados que vivem da Bolsa-Família e da aposentadoria dos velhos. Mas o que necessário é os movimentos populares e todas as pessoas de boa vontade pressionarem e elegerem um Congresso que um dia queira realizar uma verdadeira reforma agrária.

JC - O preço dos alimentos está aumentando no mundo inteiro. O governo faz propaganda forte aqui e lá fora do seu biocombustível. Como o senhor vê essa "obsessão" do governo Lula pelo etanol?

DOM XAVIER - É uma ameaça. Tal qual como é feita a monocultura, seja a cana, o gado ou o eucalipto, desse jeito, é um problema. Eles dizem que estão criando gado no sul do Maranhão, do Pará ou do Amazonas e que não estão devastando a Amazônia. Mas para esse gado chegar ao sul, para onde vai o desmatamento? Para conseguir álcool há queimadas. Sem falar que a grande maioria dos trabalhadores escravos estão nas grandes fazendas de cana-de-açúcar. Retirar o direito de propriedade das fazendas onde se encontra escravos? Nunca! A lista negra para a venda de álcool para as distribuidoras? Nunca! Por causa do Congresso, não há vontade de se fazer uma reforma agrária. Os povos tradicionais - índios, quilombolas - não são respeitados. É o caso da Reserva Raposa Serra do Sol (em Roraima). Já estava decidido, combinado. Agora, mandam Polícia Federal e tudo mais. Os ricos pedem e o Supremo Tribunal Federal suspende. Cá entre nós, sejamos honestos: a Justiça é muito mais rápida para os ricos do que para os pobres. Liminar concedendo reintegração de posse é rápida. Agora, quantos quilombolas tiveram suas terras reintegradas? Há um projeto de lei de um deputado de Mato Grosso que quer retirar da Amazônia Legal os Estados de Tocantins, Maranhão e Mato Grosso. A bancada ruralista está ganhando.

JC - Em 2006, o presidente colocou os ambientalistas como entrave ao PAC. O senhor deu uma resposta dura a Lula.

DOM XAVIER - As coisas continuam do mesmo jeito. Tem que ser duro com o governo Lula, mas há que se ter cuidado. O povo tem dinheiro, que não tinha antes. É melhor do que nada. Isso não impede dizer que é melhor Lula do que Geraldo Alckmin. Mas todos esperávamos mais.

JC - O senhor é contra a transposição do Rio São Francisco?

DOM XAVIER - Sem dúvida nenhuma. Vai prejudicar muita gente. É um projeto faraônico que não vai solucionar os problemas. O próprio governo reconhece. A maioria das águas vai para o agronegócio. Sou solidário à luta de dom Luiz Cappio. Mas o episcopado está dividido. A maioria dos bispos da região - Pernambuco, Paraíba e Ceará, os Estados que serão beneficiados - é a favor.

JC - Houve uma diminuição no número de mortes no campo, mas aumentou o de pessoas expulsas por milícias, segundo o Caderno de Conflitos divulgado na terça-feira pela CPT.

DOM XAVIER - Muitas vezes os "fazendeiros" fazem justiça com as próprias mãos, por meio de jagunços e muitas vezes com a ajuda da Polícia Militar. Não tenha a menor dúvida que há uma aliança corporativista em torno dessa questão. Uma aliança de classe: juízes, ruralistas, políticos, eles vêm da mesma classe.

JC - Com relação ao relatório, o que o senhor acha mais importante?

DOM XAVIER - O papel da CPT e o papel da Igreja no sentido da fé. Este caderno poder ajudar as pessoas de boa vontade a diminuir o abismo entre os ricos e os pobres. O abismo entre um povo que morre de fome, que é maltratado, que é desprezado, e o que sobra para os outros. A injustiça fundamental, a falta total de humanidade. O trabalho escravo no Brasil é um absurdo. O relatório é um instrumento para que os líderes possam tomar as decisões que têm que ser tomadas.

JC - Há uma onda conservadora dentro da Igreja Católica. O próprio papa Bento XVI é conservador, como foi João Paulo II. Esse papel de resistência na Igreja ficou restrito a pessoas como o senhor, dom Pedro Casaldáliga, dom Marcelo Carvalheira e dom Tomás Balduíno?

DOM XAVIER - A grande questão da Igreja é a maneira de ser discípulo do Senhor Jesus Cristo. Não conseguimos a unidade, há sim essa divisão. Dentro desta grande igreja, há divisões quanto ao seguimento dos ensinamentos de Jesus. Para uns, há o reconhecimento de Jesus como salvador e a liturgia. Para outros, Jesus foi preso e morto por causa da injustiça. O "amai-vos uns aos outros" de Jesus levava ao que diz a Bíblia: "Estava com fome, me deste de comer. Estava sem terra, me deste terra". Mas é certo que há movimentos dentro da Igreja. Para alguns, basta o louvor. Para outros , não há seguimento de Jesus se não houver o combate à injustiça. Paulo VI disse que o combate pela paz passa pelo combate pela justiça. É uma questão complicada.

JC - A vinda ao Brasil no ano passado de Bento XVI reforçou a Igreja brasileira?

DOM XAVIER - O bispo de Roma traz a unidade. O fato de vir ao Brasil é um apoio. Eu diria que a maioria da Igreja me parece mais preocupada com seus problemas internos do que dar a mão às pessoas de boa vontade. É preciso juntar os dois, ter um equilíbrio.

 

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