Se vivo, Dom Hélder Câmara teria feito, no último dia 7, 98 anos, boa parte deles dedicados a causas humanitárias e ao combate à Ditadura Militar, o que lhe rendeu, ao longo da vida, 32 títulos de doutor Honoris Causa em todo o mundo e o apelido de “Bispo Vermelho”. Desde o início de seu sacerdócio, aos 22 anos, o então Padre Hélder se destacava pela sua dedicação à organização popular. Ainda no Ceará, ajudou na criação do Movimento da Juventude Operária Católica, da Legião Cearense do Trabalho e da Sindicalização Operária Feminina Católica, que organizava as mulheres que trabalhavam como passadeiras, lavadeiras e empregadas domésticas.
Diante de todo trabalho voltado para as causas sociais, Dom Hélder não pode escapar da necessidade de organização política. Na juventude, filiou-se à Ação Integralista Brasileira (ABI), deixando mais tarde o integralismo para juntar-se a grupos progressistas. Reconhecidamente um militante preparado e comprometido, Câmara foi nomeado, em 1935, pelo então Governador do Ceará, Menezes Pimentel, para o cargo de Diretor da Instrução Pública do Estado, o que corresponde hoje a Secretário de Educação. Na pasta, o prelado liderou uma importante reforma no método de ensino, o que resultou em reconhecida melhoria no desenvolvimento da educação pública no estado do Ceará.
Após a sua gestão no Governo do Estado do Ceará, Dom Hélder foi eleito Bispo Auxiliar do Rio de Janeiro. No Rio, o pároco ganhou projeção internacional por conta da sua luta contra a pobreza e a miséria, suas obras mais conhecidas foram a Cruzada de São Sebastião e o Banco da Providência. A Cruzada de São Sebastião tinha na sua missão a pretensão de erradicar as favelas do Rio, enquanto o Banco da Providência estimulava a solidariedade e a doação, que iam desde doações diretas em dinheiro à prestação de serviços médicos e odontológicos voluntários. Destas ações, foi que ficou conhecida uma das célebres e mais conhecidas frases de Dom Hélder, “Ninguém é tão pobre que não tenha o que oferecer e ninguém é tão rico que não precise de ajuda”.
O legado de Dom Hélder à Igreja Católica, principalmente a ala progressista, foi imensurável. Ele foi um dos fundadores no Brasil da Ação Católica Brasileira e do Conselho Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), além de ter sido um dos articuladores da criação da CELAM, Conselho Episcopal Latino Americano, fruto da sua visão progressista e quase profética, que já apontava para a necessidade de uma unidade latino-americana.
No ano de 1964, Dom Hélder assumiu o cargo de Arcebispo de Olinda e Recife, cargo este que só deixou quando não tinha mais condições físicas, faltosas pela idade, e passou, então, a ser Arcebispo Emérito até seus últimos dias. Para o Bispo, o ano de 64 não foi apenas marcado pela sua indicação ao posto da Arquidiocese de Olinda e Recife: neste ano teve início também a Ditadura Militar, outra época que vai marcar sua atuação política. Acostumado desde sempre a fazer questionamentos ao poder público e a propor reformas no campo e na cidade para erradicar a pobreza, Dom Hélder passou a ser um “calo” para os agentes da ditadura.
“... quando dou pão aos pobres,
chamam-me de santo, quando
pergunto pelas causas da pobreza,
me chamam de comunista.”...
Pelo seu posto e conhecimento internacional, Câmara gozava de certa estabilidade e estava “protegido”. Sofria limites pela censura, porém, não mais que isso, visto que era reconhecidamente uma figura pública e do alto escalão da Igreja. Contudo, Dom Hélder se utilizava de sua posição para interceder em nome dos presos e perseguidos políticos, tentado evitar o pior. Mas sua atuação não ficou só na defesa dos outros, ele foi sujeito ativo contra a ditadura e mesmo diante de ameaças e intimidações, nunca se calou. Dialogava com todos, até mesmo com os militares, caso fosse preciso interceder por alguém. Por força das suas colocações públicas e pregações “comunistas”, sua fala e “existência” foram ocultadas nos jornais e revistas da época, o que não serviu para apagar suas mensagens e obras políticas, evangélicas e sociais.
Dom Hélder segue ainda hoje forte e vivo nas mensagens e ações de tantos outros padres, de tantas outras freiras e de tantas outras pessoas, cristãs ou não, que acreditam num mundo melhor e mais justo. O Dom da Paz ou o Arcebispo Vermelho, ou o Profeta do Desenvolvimento, ou o Bispo das Favelas, que de forma tão contundente fez a “opção pelos mais pobres”, deixou a certeza de que, seja através da igreja ou das lutas sociais, o importante é desprender-se das amarras e construir, organizados/as, um mundo justo, igualitário e tolerante.
"É a graça divina começar bem.
Graça maior persistir na caminhada certa.
Mas graça das graças é não desistir nunca".
(D. Hélder Câmara 1909-1999)
* Assessora da Comunicação da CPT- PE