O acordo de livre comércio que está sendo discutido entre o Mercosul e a União Europeia deve estimular o modelo agroexportador nos países sul-americanos e pode ser fatal para pequenos produtores da região. Essa é a visão de movimentos camponeses da Argentina, Paraguai e Uruguai, países membros do bloco, que conversaram com o Brasil de Fato durante a 8ª Conferência Internacional da Via Campesina que acontece em Bogotá, capital da Colômbia.
Por Lucas Estanislau
Do Brasil de Fato | Bogotá (Colômbia)
Para Diego Montón, representante do Movimento Camponês Somos Terra da Argentina, o acordo estimula condições desiguais de competição com produtos alimentícios da Europa que, além de contarem com subsídios dos governos europeus, seriam importados sem tarifa, o que prejudicaria as produções locais.
“É um acordo ruim para os povos, mas particularmente para a agricultura familiar e os pequenos e médios agricultores, para as cooperativas, pois vai gerar um impacto econômico muito negativo, tanto nas condições de exportação do setor, como nas condições de mercado interno, que é onde o nosso setor tem mais incidência”, disse.
Por outro lado, a ausência de barreiras alfandegárias para a exportação de commodities sul-americanas, diz o ativista, estimulariam ainda mais esse setor no continente, o que traria ainda mais dependência para os países, geraria pouco emprego e quase nenhum retorno aos cofres públicos. Em 2021, os produtos primários dominaram a pauta de exportações do bloco para a UE, representando 78% do total. Liderando os principais produtos exportados pelo Mercosul está a soja, seguido pelos minérios e pelo petróleo.
“Alguns setores concentrados, exportadores, se beneficiariam desse tipo de acordo. Na Argentina, esse setor está representado pelo agronegócio, sobretudo produtores de cereais que têm uma grande competitividade externa por conta da fertilidade do solo e da proximidade do porto, pois toda infraestrutura instalada já está voltada para a exportação. Esse é o único setor que seria muito beneficiado, os outros não”, afirmou.
A negociação se arrastou por 20 anos antes de andar e ter seus principais termos definidos em 2019, quando os governos de direita de Jair Bolsonaro e Mauricio Macri governavam o Brasil e a Argentina, respectivamente. Para críticos do convênio, a presença de governos neoliberais nos principais países do bloco facilitou que a versão final fosse desfavorável para as economias nacionais.
O presidente Lula, que estava ocupando a presidência temporária do Mercosul, vinha tentando renegociar alguns termos do acordo com os europeus, mas encontrou resistências. Nesta quinta-feira (07), durante cúpula dos presidentes do bloco no Rio de Janeiro, o petista disse que fez um apelo para que o presidente da França não fosse “tão protecionista” e que pediu ao chanceler alemão, Olaf Scholz, que conversasse com o francês, “mas ele também não conseguiu”.
Montón diz que Lula está desempenhando um papel importante nessa mediação, sobretudo por conta dos riscos que o novo governo do presidente eleito argentino, Javier Milei, pode trazer aos acordos de livre comércio. O Brasil encerrou sua presidência no bloco nesta quinta-feira, e Milei toma posse no próximo domingo (10).
“O programa de Milei indica que poderia ir muito mais além desse acordo UE-Mercosul, ele tem uma ideia radical de livre mercado, que na verdade não é livre pela presença das grandes corporações. Então vamos por um caminho no qual vão fechar muitas pequenas e médias empresas, muita gente vai ficar sem trabalho, os preços dos alimentos vão disparar e está claro que eles também já estão preparando um pacote de repressão, porque o povo argentino vai sair às ruas”, disse.
Outro país que teria seus camponeses prejudicados é o Paraguai. Ao Brasil de Fato, a representante da Organização de Mulheres Camponesas e Indígenas (Conamuri), Perla Álvarez, diz que o país já vem preterindo os pequenos produtores para dar lugar a cultivos de soja e milho para exportação e que o acordo deve acelerar a produção dessas commodities.
“Para um país pequeno como o Paraguai, os impactos são grandes. O governo se orgulha de ser um dos maiores exportadores de soja do mundo, o que a nível macroeconômico soa interessante, mas o retorno que isso deixa ao país é pequeno perto dos enormes lucros que as empresas levam para fora, com fuga de divisas”, explica.
Em 2021, o Paraguai se tornou o 3º maior exportador de soja do planeta e hoje possui 80% de suas terras para cultivo voltadas à produção da commodity. Segundo dados da Oxfam, nos últimos 10 anos mais de 900 mil camponeses paraguaios já tiveram que deixar seus territórios por falta de emprego e de terras para trabalhar devido à concentração do agronegócio.
Segundo Álvarez, o convênio com os europeus aponta para um estímulo cada vez mais de uma “agricultura sem camponeses”. “O acordo também é um canal para que entrem recursos para o que chamam de digitalização da agricultura, que é a agricultura sem camponeses. No Paraguai, estamos cada vez mais escanteados e muitos se tornaram apenas pequenos produtores de hortaliças em pequenas terras. Isso fere nosso direito cultural, como camponeses, e econômico para podermos nos desenvolver no campo”, disse.
Menor país em extensão do bloco, o Uruguai tem na exportação agropecuária sua principal fonte de divisas. Para Leticia Cabrera, da Rede Nacional de Sementes Nativas e Crioulas do Uruguai, essa característica do país deve ser acentuada caso o acordo seja assinado.
“Já está ocorrendo uma grande onda migratória do campo para a cidade impulsionada pelo agronegócio e, além disso, um dos problemas mais graves que temos neste momento, que é a expansão do cultivo de soja transgênica e eucaliptos, deve ser beneficiado deste acordo”, disse ao Brasil de Fato. Para Leticia, o tratado não considerou “a opinião da sociedade civil no geral e muito menos dos camponeses” e os termos propostos são prejudiciais para a soberania alimentar do país.
Nova Alca?
Críticos do projeto tem feito comparações do acordo UE-Mercosul com a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), projeto estadunidense que foi barrado na Cúpula das Américas de 2005, em Mar del Plata, com forte oposição do Brasil, então governado por Lula, da Argentina, de Néstor Kirchner, e a Venezuela, comandada por Hugo Chávez.
Para os movimentos de luta no campo do Mercosul, existem algumas semelhanças de caráter econômico, já que tanto a Alca como o acordo com a UE pressupõem áreas de livre comércio. Entretanto, ativistas camponeses ressaltam diferenças ideológicas e históricas entre os momentos.
“Talvez a diferença seja que a Alca estava orbitando a estratégia política dos EUA, que tinha uma visão clara de subordinar todo o continente. Nesse caso atual, a protagonista é a UE e o acordo tem mais a ver com a estratégia das empresas transnacionais, que visam avançar sobre o mercado de alimentos”, afirmou Diego Montón.
O argentino ainda diz que “o acordo UE-Mercosul é um exemplo perfeito de tudo que lutamos contra e é por isso estamos travando o debate sobre a necessidade de políticas públicas para fortalecer um setor que, ao invés de especular com alimentos, vai gerar mais emprego e produzir alimento saudável para o povo”.
Para Perla Álvarez, a Alca e o acordo com os europeus “têm o mesmo princípio, de romper barreiras para as mercadorias, mas não para as pessoas”. “Então é uma questão muito injusta: que corram livremente as mercadorias, sem importar os custos sociais e culturais desse processo”, disse.
Edição: Rodrigo Durão Coelho