Notícias, estudos e declarações de dirigentes de organizações e movimentos sociais têm sido veiculadas na mídia nacional dando conta de que o programa social Bolsa Família, que hoje beneficia mais de 11 milhões de famílias no país, além de não retirar as famílias da pobreza, estaria contribuindo para a desmobilização da luta pela reforma agrária no Brasil.
Escrito por, Osvaldo Russo
A transferência de renda proporcionada pelo Bolsa Família cumpre ou deveria cumprir dois objetivos importantes: garantir o direito à alimentação e favorecer a permanência das crianças pobres na escola e fora do trabalho. Uma discussão que está na agenda do governo e da sociedade refere-se às chamadas portas de saída dos programas sociais. Na área rural, a porta de saída principal deveria ser o incremento do programa de reforma agrária em todo o território nacional, priorizando o Nordeste, mediante a instalação e o desenvolvimento de projetos de assentamento rural ou rural-urbano, com apoio técnico e financeiro adequado.
As reformas agrárias realizadas em vários países capitalistas da Europa, nos Estados Unidos, Japão e Coréia do Sul estavam associadas a projetos de desenvolvimento da indústria nacional para desenvolver o mercado interno daqueles países. A Monarquia brasileira aboliu a escravidão, mas não distribui a terra aos escravos e a República industrializou o país, mas manteve intactos o latifúndio e a oligarquia rural.
O golpe de 64, que impediu as reformas de base do governo Jango, proclamou e não cumpriu o moderno Estatuto da Terra. A Nova República redemocratizou o país, lançou um plano ambicioso de reforma agrária, mas cedeu às pressões dos latifundiários. Apesar da regulamentação do capítulo constitucional da reforma agrária no governo Itamar Franco, na década de 90, no governo Fernando Henrique Cardoso, ganhou corpo e velocidade o projeto neoliberal que subordina a economia brasileira ao capital financeiro internacional.
Segundo João Pedro Stédile, dirigente nacional do MST, o projeto pelo qual o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra lutou 20 anos teria se esgotado pelo abandono das elites brasileiras a um projeto de desenvolvimento nacional. Para ele, a viabilização de uma nova reforma agrária passa necessariamente pela derrota do neoliberalismo e pela reorganização da produção agrícola, priorizando o abastecimento do mercado interno e a adoção de uma nova matriz tecnológica que seja ambientalmente sustentável. Passa ainda pela elevação do nível educacional dos trabalhadores rurais e agricultores familiares e pela implantação de pequenas agroindústrias ao interior, gerando lá os empregos necessários.
Pelo compromisso histórico do PT e do presidente Lula, os movimentos sociais esperavam uma guinada na política para o campo. Apesar dos indiscutíveis avanços do governo Lula, especialmente do Pronaf e das políticas sociais, à frente o Bolsa Família e o aumento real do salário mínimo, a programa de reforma agrária ficou aquém das expectativas do MST, da Contag, da CPT e de outras organizações que atuam no campo. Entretanto, segundo o dirigente do MST, o Bolsa Família não tirou militantes do MST, já que os beneficiados pelo programa de transferência de renda são, em geral, famílias que estão na base da pirâmide, que não têm consciência nem capacidade de mobilização.
No governo Lula, apesar do fortalecimento da agricultura familiar, o modelo agrícola permanece calcado na cartilha internacional exportadora hegemonizada pelo agronegócio. Este sim é o principal fator desmobilizador, porque inviabiliza um novo modelo agrícola onde a reforma agrária teria um papel destacado na produção de alimentos para o mercado interno, na proteção ao meio ambiente, na geração de empregos e na democratização da terra e da vida rural. Apesar do refluxo na mobilização social, o debate é intenso e a luta no campo está viva, onde as ocupações de terras, que continuam sendo realizadas, são apenas uma das formas de luta pela reforma agrária e pela mudança do modelo agrícola dominante.
Osvaldo Russo é diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e foi presidente do Incra (1993/94) e secretário nacional de Assistência Social (2005/06).
CORREIO DA CIDADANIA, 22-Nov-2007