A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata dos direitos dos povos indígenas e tribais, ainda é pouco conhecida e aplicada no Brasil. A avaliação parte de organizações da sociedade civil que confeccionaram relatórios sobre a aplicabilidade da norma. As entidades em questão decidiram elaborar um informe sobre as comunidades quilombolas e outro sobre os povos indígenas como forma de suprir as lacunas deixadas pelo relatório do governo brasileiro encaminhado à OIT. O Brasil assinou a Convenção 169 em 2002, por meio do Decreto Legislativo nº 143, e passou a adotá-la odficialmente a partir de 2003. A cada três anos, os governos signatários devem produzir um relatório sobre o cumprimento da norma. O primeiro deles foi feito em 2005 e, em agosto de 2008, o Brasil encaminhou o segundo informe oficial à OIT.
"No seu relatório, o governo mostra que está cumprindo sua parte, já os outros dois informes mostram exemplos de que não é bem assim. O governo não mentiu, porém fez um documento incompleto, omitiu algumas informações que prejudicam o entendimento de qual estágio está a aplicabilidade da convenção no Brasil", contesta Viviany Rojas Garzon, consultora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA).
O relatório do governo não faz referência, por exemplo, às comunidades remanescentes de quilombos. "Mas em função do relatório recebido das organizações quilombolas, a OIT inquiriu o governo brasileiro pela ausência. Em resposta, o governo está preparando um adendo ao seu relatório de forma a contemplar a realidade quilombola", emenda Lúcia Andrade, da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP). Os dois relatórios das organizações civis foram preparados com ajuda da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Consulta
O Artigo 6º da Convenção 169 (leia a íntegra) - que trata das consultas e da participação em processos de tomada de decisão referentes a medidas que possam afetar os povos - é considerado um dos mais importantes, pois os outros direitos também estão contemplados pela Constituição de 1988. "Ele é também o artigo mais polêmico porque trata diretamente da exploração de recursos naturais em terras tradicionais", opina Viviany.
Para Azelene Kaingang, socióloga e membro do Instituto Indígena Brasileiro Warã, o tema da consulta prévia continua problemático. "É preciso definir o que é o consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas para as ações que os afetam. Uma consulta não é apenas a oportunidade de dizer sim ou não para determinado empreendimento, mas a possibilidade de abrir o diálogo entre o Estado e os povos indígenas e finalmente se definir os interesses de cada um e estabelecer uma relação de respeito mútuo", declara a socióloga, uma das relatoras do informe indígena.
Falta definição de como deve ser feita a consulta prévia: não há regras específicas de qual órgão deve convocá-la, nem indicações de onde e quanto tempo deve durar tal exigência. "O que acaba acontecendo é uma interpretação de cada parte. E ao invés de ser a solução, a consulta gera mais conflitos", diz Viviany, consultora do ISA. É importante diferenciar os atuais processos de participação cidadã, como as audiências públicas, da consulta prévia específica prevista na Convenção 169 da OIT, que se destina a consultar especificamente as populações indígenas e quilombolas.
Cabe ao Congresso regulamentar a consulta para propostas legislativas que afetem diretamente os povos indígenas ou comunidades quilombolas. No caso de medidas administrativas, como a construção de hidrelétricas e grandes obras, o Executivo federal é que pode emitir um decreto regulamentando a consulta prévia. "A regulamentação da consulta prévia pode contribuir, mas a aplicação desse direito não depende de regulamentação", contesta Lúcia.
A senadora Marina Silva (PT-AC), ex-ministra do Meio Ambiente, se dispôs a elaborar uma proposta de regulamentação da consulta prévia, durante seminário internacional sobre a Convenção 169 da OIT, realizado na semana passada na capital federal.
O poder de veto das comunidades no caso de consulta também suscita polêmica. "Essa questão precisa ser definida também. O objetivo da consulta é chegar a um consenso ou acordo de ambas as partes, mas não exclui o veto. A consulta é um direito procedimental", explica Viviany. Um exemplo de veto é o dos Saramakas (quilombolas), no Suriname, vetou a construção de uma hidrelétrica em seu território porque teriam que deixar sua comunidade, mediante indenização. Os Saramakas levaram o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que ratificou o veto porque a comunidade depende do território para a sobrevivência cultural.
Exemplos
As organizações enumeram muitos casos de descumprimento da consulta prévia e de outras normas - como o direito ao território - presentes na Convenção 169. O relatório dos povos indígenas cinco casos principais. Entre eles, o caso da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, obra que inundará uma extensa área no centro do Pará e afetará, do modo como está projetada, 11 povos distintos, impactando diretamente as comunidades.
Tramita também no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 2.540/2006, que propõe autorização para a construção de Usina Hidrelétrica na Cachoeira de Tamanduá no Rio Cotingo, que fica dentro da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima. "Até o momento, nenhuma das comissões que compõe a Câmara dos Deputados e do Senado Federal ouviu os povos indígenas interessados", conta Azelene, do Instituto Warã. Habitada por mais de 19 mil indígenas de cinco etnias diferentes e homologada pelo presidente da República em abril de 2005, a TI Raposa Serra do Sol permanece tomada por fazendeiros responsáveis por atos de violência e impactos ambientais.
Na Câmara dos Deputados tramitam ainda sete Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) que visam alterar o disposto no Artigo 231 da Constituição Federal, que dispõe sobre os direitos territoriais e 42 Projetos de Lei (PLs) que dispõem sobre temáticas como: mineração em terras indígenas, educação escolar indígena, demarcação das TIs, meio ambiente e recursos naturais, cultura, normas penais, atenção à saúde, recursos genéticos, etc. O Projeto de Lei (PL) 1.610/1996, que trata da exploração de minérios em TIs, pode ser votado a qualquer momento na Câmara dos Deputados sem que tenha ocorrido consultas a indígenas sobre a questão.
Auto-identificação
A única consulta prévia realizada pelo governo em cumprimento a Convenção 169 foi perante os quilombolas, convocada pela Advocacia Geral da União (AGU), em abril de 2008. Na ocasião, 300 pessoas de comunidades quilombolas foram convidados para debater a proposta de instrução normativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para regulamentar a identificação e titulação das terras quilombolas.
A Instrução Normativa 49/2008, do Incra, publicada em 1º de outubro de 2008, condiciona o direito de propriedade dos quilombolas à apresentação do certificado da condição quilombola emitido pela Fundação Cultural Palmares, contrariando o Artigo 1º da Convenção 169 da OIT.
Antes o procedimento de titulação não tinha vinculação com a certidão da Fundação Cultural Palmares, documento que tinha caráter de mero registro. A partir de agora, o Incra não titula sem a certidão da Fundação Palmares. Ou seja, o documento ganhou o caráter de selo governamental de identificação da condição quilombola. "Essa medida é uma afronta ao direito à auto-identificação garantindo pela convenção", reclama Lúcia, da CPI-SP.
O Artigo 1º da Convenção 169 diz que a auto-identificação como indígenas ou tribais deverá ser considerada como critério fundamental para definir os grupos aos quais se aplicam as disposições da norma internacional.
Fonte: Reporter Brasil