DESPEJOS FORÇADOS: A violência sem fim
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Em Pernambuco, comunidade resiste a sucessão de demolições e ameaças
Nascida em Constantino, uma das 17 ilhas que compõem um arquipélago localizado no município de Sirinhaém, zona da mata sul de Pernambuco, Maria das Dores dos Santos, 26 anos, conhecida como Graça, aguarda para dar à luz seu terceiro filho. Uma criança que vem resistindo às dificuldades que a mãe está enfrentando – ao contrário do que aconteceu com o bebê anterior, que Graça perdeu no sexto mês de gravidez, logo após ver sua casa ser demolida pelos capangas da Usina Trapiche.
De lá para cá, as casas de Graça e a da sua irmã, Maria de Nazareth dos Santos, já foram demolidas diversas vezes. As famílias das duas irmãs são as únicas remanescentes das 53 que moravam no arquipélago, até 1998. A grande maioria era de famílias que moravam nas ilhas há várias gerações, extrativistas que sobreviviam da agricultura de subsistência, das riquezas do mangue e da pesca artesanal.
Em 1998, o usineiro alagoano Luiz Antônio de Andrade Bezerra comprou a Usina Trapiche e iniciou um processo de desocupação das ilhas do estuário de Sirinhaém. Em 2002, o novo proprietário intensificou a investida contra os moradores das ilhas a fim de expulsá-los de vez do local, alegando que a área, de preservação ambiental, tinha sido arrendada pela Usina.
No dia 28 de junho, Graça, que já estava na zona urbana de Sirinhaém aguardando o nascimento do seu filho, teve mais uma vez a casa demolida por funcionários da usina. Segundo Maria de Nazareth, que também teve a casa destruída, no dia anterior à demolição, elas foram ameaçadas: “Evânia Freire dos Santos, que é ligada aos donos da Usina Trapiche, foi até a casa da minha mãe para falar que iam demolir a minha casa e a da minha irmã”.
Funcionária da usina, Evânia foi agente fundamental na desocupação da área. Pressionava os moradores das ilhas para deixarem suas casa. “Ela ameaçava dizendo que as pessoas sairiam de lá por bem ou por mal porque a usina ia derrubar tudo, que era melhor ‘negociar’ para não sair sem nada”, conta Antônio José da Costa, da Associação de Moradores do Oiteiro, onde hoje residem alguns dos antigos moradores das ilhas. Aos poucos, com muita demolição, ameaças e processos judiciais, as famílias foram deixando a área e ocupando desordenadamente as periferias das cidades vizinhas. Junto com as casas e o trabalho, perderam parte da sua identidade, tiveram que se adequar a outro modo de vida e muitos até hoje vivem sem emprego, sem renda fixa e sem moradia digna.
RESERVA EXTRATIVISTA
As ilhas de Sirinhaém estão dentro de uma área considerada de preservação ambiental pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pela Agência Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos. Laudos dos dois órgãos publicados em maio de 1998 atestam que a presença dos pescadores na ilha não significa qualquer agressão ao meio ambiente. O laudo da Agência vai mais além: alega que os antigos moradores são importantes agentes de monitoramento e fiscalização dos impactos ambientais.
Para Frei Sinésio Araújo, da Ordem Menor dos Franciscanos (OMF), que acompanha a luta dos moradores das ilhas de Sirinhaém desde 1998, a área precisa deixar de ser apenas uma Área de Preservação Ambiental (APA), para ser uma Reserva Extrativista. De acordo com o Frei, essa categoria de unidade de preservação permite o uso dos seus recursos naturais pelas populações tradicionais da região: “A Comissão Pastoral da Terra, junto com as entidades ambientalistas, como a Associação Pernambucana de Defesa da Natureza, a Associação Ecológica de Cooperação Social e a Federação dos Pescadores, reforçou o abaixo-assinado feito pelos pescadores, que solicitou formalmente ao Ibama que a área fosse considerada uma Reserva Extrativista”.
A argumentação inicial da Usina de que a área seria esvaziada para preservação ambiental logo foi desmascarada. Um dossiê elaborado pelo Ibama mostra que a Trapiche fez plantações irregulares de cana-de-açúcar, em uma distância de menos de dois metros do manguezal, quando o mínimo permitido por lei é de 30 metros. Outros tipos de vegetação não nativa também vêm sendo indevidamente cultivados pela usina.
Em abril, apoiada pela CPT, a organização Terra de Direitos denunciou a expulsão das famílias, as ameaças às irmãs e o reflorestamento da área com espécies que contrariam a legislação prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Segundo o advogado que acompanha o caso, Fernando Prioste, até o momento não há registro de providências tomadas por qualquer das autoridades notificadas.
A falta de interesse das autoridades locais em apurar as denúncias e apresentar resultados é apontada por Graça e por Maria de Nazareth como um dos maiores entraves na resolução dos problemas com a Usina Trapiche. As queixas apresentadas pelo Conselho Pastoral dos Pescadores contra Evânia nunca saíram do papel e ela continua impunemente em seu trabalho de, por meio de ameaças, desocupar a ilha. Ainda de acordo com o depoimento das irmãs, a relação entre a usina e as autoridades locais é muito estreita. Elas relatam que os capangas da Trapiche contam com a ajuda dos policiais militares nas demolições e que dificilmente as denúncias contra a Usina e as sindicâncias contra os policiais têm resultados.
O tom das ameaças e a imposição do medo aumentam cada vez que as moradoras da ilha de Constantino reconstroem suas casas ou fazem denúncias públicas contra as violações que sofrem. Na manhã do dia 11 de julho, motivadas pela denúncia da demolição do dia 28 de junho, a CPT e a Terra de Direitos fizeram uma visita à Sirinhaém. Acompanharam Graça à delegacia de polícia da cidade para prestar queixa contra as ameaças e a demolição da sua casa. Na tarde do mesmo dia, para tentar calar e intimidar a moradora, os funcionários da Trapiche voltaram a demolir a casa que, com muita dificuldade, estava sendo reerguida pela família.
No dia seguinte, 12 de julho, novamente uma equipe formada por advogados, padres e jornalistas acompanhou Graça à delegacia para prestar queixa da demolição. A advogada da Terra de Direitos, Luciana Pivato, alertou para o risco que correm as irmãs: “Elas são resistentes defensoras dos direitos humanos. Como muitos outros, são ameaçadas e vivem na insegurança. A luta delas não é apenas pelas suas casas, elas representam a resistência de um povo que tem direitos e que precisa ser respeitado”.
No dia 21 de julho, a Terra de Direitos e a CPT voltaram a fazer denúncia sobre as violações de direitos humanos e ambientais em Sirinhaém. Mais uma vez, pedem aos órgãos competentes que sejam investigadas e devidamente punidas as ações das milícias privadas e que sejam instaurados inquéritos contra os policiais envolvidos. As entidades requerem ainda que a área possa ser transformada em Reserva Extrativista e que seja garantido o retorno das famílias tradicionais e a preservação do meio ambiente.
Provavelmente, quando esta reportagem estiver em circulação, Graça deve ter dado à luz seu terceiro filho, ainda sem casa e sob constante ameaça.
Estratégias para a prevenção
As formas de evitar os despejos e todos os seus danos foram temas de discussões, em Recife, durante o Seminário de Direitos Humanos e Prevenção de Despejos Forçados, entre 12 e 14 de julho. Participaram diferentes setores da sociedade que lidam com a questão dos despejos em suas variantes urbana e rural, representantes do Poder Judiciário, Ministério Público (estadual e federal), órgãos governamentais, organizações de direitos humanos e movimentos sociais.
Os despejos que se assemelham aos promovidos pela Usina Trapiche, que não têm nenhuma ordem judicial e são promovidos por capangas das usinas e fazendas, chamam muita atenção pela forma violenta como são feitos. De acordo com dados apresentados por José Batista, da Comissão Pastoral da Terra do Pará, no Brasil, atualmente, mais de 15 mil famílias sofrem ameaças de despejos extra-oficiais. Apenas no ano de 2005, 2.189 casas e 2.167 lavouras foram destruídas nesse tipo de ação.
Na carta final do seminário, chamada “Carta do Recife por um Brasil sem despejos”, as entidades e movimentos sociais escrevem à sociedade civil e ao Estado Brasileiro um pedido de cessar os despejos e de se respeitar, primordialmente, a dignidade humana. A carta pede ainda que o direito à terra e à moradia sejam garantidos e considerados como fundamentais.
Fonte: Brasil de Fato
Por: Mariana Martins
do Recife (PE)