Relatório global da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que, se não fossem as formas de trabalho forçado, renda adicional de US$ 21 bilhões anuais poderia estar sendo direcionada a explorados que estão na base social
Por Bianca Pyl
A soma de US$ 21 bilhões - que é uma estimativa provisória e exlcui as vítimas da exploração sexual para fins comerciais - resulta das diversas formas de subtração de valores que caracterizam o trabalho forçado. As vítimas desse tipo de exploração geralmente recebem salários mais baixos; muitas vezes, menos que o piso necessário para a subsistência - ou até, em determinados casos, não recebem nada. Costumam arcar ainda com cobranças excessivas por alojamento, comida e outros bens e equipamentos.
Além disso, enfrentam longas jornadas de trabalho e não recebem horas extras. Para completar, especialmente nos casos de tráfico de pessoas, o trabalho forçado "desvia" recursos que poderiam remunerar os aliciadores intermediários encarregados pelo recrutamento por meio de honorários, custos de viagem sobretaxados e outros expedientes. O primeiro relatório global da OIT revelou que mais de 12 milhões são vítimas de trabalho forçado no mundo e que os lucros provenientes do tráfico de pessoas, especialmente para fins de exploração sexual, podem chegar a US$ 32 bilhões por ano.
Divulgado em meio à crise econômica, este segundo relatório acrescenta que "nesta conjuntura, os que mais sofrem são os mais vulneráveis. Nesses tempos é ainda mais necessário evitar que os ajustes não ameacem as salvaguardas conquistadas a duras penas para impedir que os trabalhadores e trabalhadoras, ao longo das cadeias produtivas, sejam submetidos ao trabalho forçado ou ao abuso representado pelo tráfico de pessoas".
"A maior parte do trabalho forçado ainda é encontrada nos países em desenvolvimento, frequentemente na economia informal e em regiões isoladas, com pouca infraestrutura, sem fiscalização do trabalho e aplicação da lei", coloca o relatório. "Isto só pode ser combatido por meio de políticas e programas integrados que combinem medidas de cumprimento efetivo das leis com iniciativas pró-ativas de prevenção e proteção, capacitando as pessoas em risco de trabalho forçado a defender seus próprios direitos".
"O trabalho forçado moderno pode ser erradicado e isso pode ser alcançado desde que haja um compromisso sustentado da comunidade internacional, trabalhando em conjunto com os governos, empregadores, trabalhadores e a sociedade civil", diz o Juan Somavia, diretor-geral da OIT.
Diversos países adotaram legislação que enquadra o trabalho forçado como um crime. A maioria deixou de tratar o tema como um tabu e passou a divulgar mais informações sobre o assunto, como é o caso do Brasil. No relatório da OIT o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) é citado por facilitar a divulgação de informações sobre o número de pessoas liberadas de situação de trabalho forçado. Por outro lado, o documento destaca que a Justiça Penal brasileira condenou poucas pessoas pelo crime de trabalho forçado.
Na visão de Roger Plant, chefe do Programa de Ação Especial de Combate ao Trabalho Forçado da OIT, "o trabalho forçado é muitas vezes mal definido na legislação nacional, tornando difícil de abordar as múltiplas e sutis formas pelas quais os trabalhadores podem ter a sua liberdade negada". "O desafio consiste em resolver estes problemas de forma integrada, através da prevenção e da aplicação da lei, usando ao mesmo tempo a Justiça do trabalho e a Justiça criminal", acrescenta.
O novo estudo da OIT, lançado um dia antes de mais um aniversário da Lei Áurea de 13 de maio de 1888, traça também um panorama dos esforços realizados em nível global para combater o trabalho forçado.
Planos de ações
Entre os planos de ação contra o trabalho forçado, o relatório da OIT destaca a implementação da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) no Brasil e a elaboração dos dois Planos Nacionais de Combate ao Trabalho Escravo, sendo o último lançado em setembro de 2008.
O segundo plano incorpora medidas como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que permite a expropriação e a redistribuição das propriedades de empregadores que utilizam trabalho escravo e inclui outra proposta destinada a dar garantias a estrangeiros submetidos ao trabalho forçado. O documento também propõe sanções econômicas mais elevadas contra empregadores que exploram esse tipo de crime, proibindo-os de obter empréstimos, tanto do setor privado como de fontes públicas, e de assinar qualquer tipo de contrato com entidades públicas.
O relatório destaca um estudo que traça o perfil de vítimas de trabalho escravo. Descobriu-se que a maioria dos entrevistados (121 pessoas) se deslocava constantemente dentro do Brasil. Somente um quarto deles continuava vivendo no estado onde nasceu. Quase todos começaram a trabalhar antes dos 16 anos. Mais de um terço iniciou a labuta antes dos 11 anos - na maioria para ajudar os pais em atividades agrícolas. Dos 121 entrevistados, 48 foram aliciados por meio de um amigo ou conhecido e 33 foram aliciados por um "gato" ou diretamente no estabelecimento rural.
A "lista suja" de infratores que exploraram trabalho escravo, mantida pelo governo federal, é citada no relatório como um exemplo de combate a esse tipo de crime. A lista passa por atualizações maiores a cada seis meses. Os nomes são mantidos por dois anos e, caso o empregador não volte a cometer o delito e tenha pago devidamente os salários dos trabalhadores, o registro é excluído. "Descobriu-se que uma parte importante das atividades estavam vinculadas a práticas ilícitas que causaram o desmatamento da região amazônica. De fato, muitos desses estabelecimentos rurais são de grande extensão, de até 30.000 hectares ou mais", coloca o documento.
Um atlas brasileiro elaborado pela ONG Amigos da Terra com o apoio do governo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da OIT também mereceu citação no relatório. O trabalho reúne informações sobre a incidência de trabalho escravo em diferentes regiões geográficas. Além de apresentar dados georeferenciados sobre os locais de origem dos trabalhadores e das regiões de onde foram resgatados, o estudo vinculou a incidência de trabalho forçado a outras condições socioeconômicas, como o desmatamento, a incidência de homicídios no meio rural, as taxas de alfabetização e a pobreza.
A partir dessas informações, foi elaborado um índice de probabilidade do trabalho forçado. "As autoridades do governo podem fazer uso estratégico dos resultados para planejar e dirigir políticas públicas e atividades de assistência para essas regiões", sugere o relatório da OIT.
Também é realçada a iniciativa do Instituto Carvão Cidadão (ICC) de reintegração de vítimas da escravidão. O texto mostra que "115 trabalhadores foram contrados por meio do projeto em 2007. Além disso, as empresas signatárias do Pacto da Indústria Siderúrgica [do Pólo Carajás, que constituem o ICC] destinaram aproximadamente US$ 350 mil para a reinserção de pelo menos outros 400 trabalhadores resgatados até o final de 2010".
Os estudos da cadeia produtiva dos bens produzidos pelas empresas que aparecem na "lista suja" promovidos pela ONG Repórter Brasil, com apoio da OIT e a pedido da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, também são destacados pela OIT.
O primeiro estudo foi realizado em 2004, com foco no índice de trabalho escravo no setor de diferentes produtos agrícolas e outros produtos básicos. Um novo estudo, realizado em 2007, trata dos vínculos entre outras redes comerciais e o trabalho forçado. "Estes têm sido instrumentos valiosos para aumentar a sensibilização do público em geral, bem como de empregadores, em relação com o risco de trabalho forçado em suas cadeias produtivas. Como resultado deste estudo, a OIT e o Instituto Ethos estabeleceram contato com as empresas identificadas na investigação a fim de alertá-las sobre a existência de trabalho forçado em suas cadeias produtivas", salienta a entidade ligada à Organização das Nações Unidas (ONU).
A partir desta iniciativa, surgiu o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, em 2005. Cerca de 160 empresas e associações são signatárias do pacto e se comprometeram a lutar contra o trabalho escravo, por meio de cláusulas em seus contratos de compra e venda e da facilitação da reinserção dos trabalhadores libertados. Entre os signatários figuram grandes cadeias de supermercados e grupos industriais e financeiros que, em conjunto, representam um quinto do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil.
Informação e educação
O relatório global da OIT considera ainda "uma estratégia útil o uso dos meios de comunicação para sensibilizar o público sobre os possíveis perigos da migração mal planejada ou "às cegas" ou da aceitação de ofertas de trabalho sem garantias ou proteção adequadas".