Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Emboscadas, perseguições, intimidações com seguranças armados, ameaças de morte, agressões físicas e verbais, perseguições com cães de guarda, tentativas de atropelamento, destruição de cercas e invasão de plantações com animais e pulverização de agrotóxicos, sobrevoo com helicópteros, vigilância com o uso de drones sobre as comunidades, dia e noite. Todas essas violências são parte do cotidiano das famílias de lavradores de sete engenhos da Zona da Mata de Pernambuco desde 2013, quando as terras da antiga Usina Frei Caneca, em processo de falência, foram arrendadas pela Agropecuária Mata Sul S/A, transformando o local em uma zona de guerra.

Em 2020, De Olho nos Ruralistas já mostrava a barbárie: “Helicópteros, PMs, drones, chuva de agrotóxicos: os ataques contra camponeses em um engenho em Pernambuco“.

Seguranças da Zona da Mata S/A intimidam a comunidade. (Foto: Arquivo Pessoal)

Nos últimos meses a situação ficou ainda mais insustentável para as mais de 5 mil famílias que vivem no território, segundo um camponês que prefere não ser identificado com medo de represálias. O pior momento, segundo “Terêncio”, aconteceu na manhã do dia 22 de abril, quando um forte tiroteio espalhou o medo entre os moradores do Engenho Barro Branco, um dos mais impactados pela violência da Mata Sul. “Isso está marcado na memória de todo mundo, não só minha, de toda a comunidade”, conta ele, que estava em casa com os filhos.

Ao ouvir os primeiros disparos, Terêncio saiu para ver o que estava acontecendo, deparando-se com catorze seguranças da Mata Sul S/A com diferentes tipos de armas de fogo, a menos de 50 metros de distância dos sete agricultores que lavravam a terra naquela manhã. “Tinha arma que nem com polícia a gente vê”, recorda. O grupo de agressores chegou a bordo de uma caminhonete Fiat Strada, um quadriciclo e motos.

— Vi os seguranças dando tiro pra todo lado, empurrando os trabalhadores, jogando spray de pimenta e soltando os cachorros em cima deles. Escutei as esculhambações deles, xingando as mulheres, um monte de palavrões, ameaçando, dizendo que era só um aviso, que quando viesse era pra atirar pra matar, que se o pessoal continuasse plantando eles iam atirar na cara do povo. Na hora, o que a gente mais teme é acontecer algo pior.

Terêncio telefonou para órgãos de direitos humanos para pedir socorro, outros moradores procuraram a Polícia de Jaqueira. Às 10 horas da manhã, foi registrada, por dezoito testemunhas da comunidade, a ocorrência de ameaça dolosa consumada. “Foi uma coisa que ninguém nunca viu aqui, uma empresa chegar atirando, expulsando o povo do roçado pra que não plantasse”, diz o camponês, com tristeza. Quando a polícia chegou ao local, cerca de uma hora e meia depois, os criminosos já haviam ido embora e, de acordo com o boletim policial, um drone continuava a sobrevoar a comunidade.

Desde 2018, essa forma moderna de intimidação contra a comunidade tornou-se frequente. “Era drone no quintal do povo, era drone seguindo a gente, pra onde a gente ia andar, o drone estava acima da cabeça da gente, seguindo”, conta Terêncio. “Não tinha hora pra ele andar, em qualquer momento que a gente menos esperava, o drone tava acima do nosso quintal”. As imagens dos drones, como as do quintal dos moradores, depois são divulgadas  “pra infernizar a população”. Há relatos de pessoas surpreendidas pelo drone enquanto defecavam ou urinavam.

SEGURANÇAS SOLTAM CÃES CONTRA CAMPONESES E ESPALHAM AGROTÓXICOS

De Olho nos Ruralistas teve acesso a vídeos gravados pelas vítimas. Em um deles, é possível ver o momento que os seguranças soltam cachorros em cima dos camponeses, que saem correndo:

Em outro vídeo, os seguranças destroem a cerca e plantação de uma família e intimidam o camponês que grava a cena. “O problema é que você ganhou a casa e quer demais”, diz um dos invasores após a destruição.

Em uma terceira ação violenta gravada,  é possível ouvir um camponês idoso se revoltando: “Ao invés do país trabalhar de bom modo, trabalha em cima da destruição dos alimentos das famílias pobres”.

Em abril, foi gravado mais um vídeo em que mostra uma ação conjunta de destruição de um bananal da comunidade por meio da pulverização de agrotóxicos: https://deolhonosruralistas.com.br/2021/06/18/cresce-a-violencia-contra-5-mil-familias-na-zona-da-mata-de-pernambuco/

Os agricultores do território já registraram mais de trinta ocorrências na delegacia de Jaqueira (PE), das inúmeras violências que vêm sofrendo nos últimos anos, por parte de seguranças da Mata Sul S/A.

Terêncio recorda com nostalgia o tempo em que a vida no engenho era tranquila. “A gente vivia uma vida sossegada, uma vida de paz, quando a gente podia sair, voltar, sossegar”, conta o agricultor. “Não importava a hora, nem o dia, a gente sempre estava sossegado. Depois da empresa, modificou a nossa vida, toda a nossa região aqui”. No tempo a que ele se refere, quando não havia trabalho na região, os  agricultores podiam passar períodos trabalhando na cidade e deixar, sem a menor preocupação, a esposa e os filhos no campo até poderem retornar. As famílias se sentiam seguras.

— Depois que a agropecuária Mata Sul entrou, não teve mais como sair de casa, mudou toda a nossa história, toda a nossa rotina. Começou a haver perseguições, ameaças, conflitos. Aquela tranquilidade que tinha pra sair e trabalhar fora, não teve mais, começou a mudar, a dificuldade foi aumentando, por aqui não tem serviço e a empresa também fez questão de não dar serviço a ninguém dessa região. A gente teve que começar a viver uma nova vida. A paz que nós tínhamos acabou-se e agora a gente vive assustado, com medo.

USINA ESTÁ ENTRE OS MAIORES DEVEDORES TRABALHISTAS DE PERNAMBUCO

Cada engenho do município de Jaqueira é uma comunidade: Barro Branco, Caixa D’água (dentro do Barro Branco), Fervedouro, Guerra, Laranjeira, Jaqueira e Gulandi. Os engenhos se formaram a partir da chegada de trabalhadores de fora para trabalhar na Usina Frei Caneca, quando foram construídas casas para as famílias de seus funcionários. Antes disso, já existiam nas terras da usina camponeses nativos — uma história que remete ao período da escravidão. As famílias sempre tiveram suas pequenas lavouras, plantando banana, macaxeira, verduras e, ainda hoje, embora em menor quantidade, cana-de-açúcar.

Destruição de bananal das famílias da antiga usina. (Foto: Arquivo Pessoal)

A decadência do sistema econômico sucroalcooleiro determinou o fechamento de boa parte das usinas localizadas na Zona da Mata do Estado de Pernambuco e, há quase vinte anos, a Frei Caneca encerrou suas atividades depois de quase um século de funcionamento, passando a arrendar a área para outras empresas, mas sem cumprir suas obrigações legais em relação aos empregados, que desde então lutam por seus direitos trabalhistas e pela terra onde vivem.

Um interdito proibitório da Defensoria Pública, encaminhado ao Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) em 2020, informa que “a Usina tem um débito com a União e com o Estado de quase R$ 500 milhões, figurando também entre os cem maiores devedores da Justiça do Trabalho de Pernambuco, com base no Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT), com 124 processos em fase de execução, conforme informações extraídas também em 2018, no site do Tribunal Superior do Trabalho (TST)”.

Sem o devido ressarcimento e obtenção concreta de seus direitos, os antigos trabalhadores e moradores de engenhos da usina continuaram a ocupar a terra por gerações, “sem qualquer oposição”. “Tanto que já cumpriram com os requisitos necessários para o reconhecimento do direito à usucapião”, ainda de acordo com o documento.

A reportagem questionou o governo de Pernambuco, comandado por Paulo Câmara (PSB), se o estado não irá cobrar as dívidas da Usina Frei Caneca e se essas dívidas não podem ser adjudicadas (ato judicial que concede posse e propriedade de bens, móveis e imóveis, a alguém) para a criação de assentamento na região. Em nota, o governo respondeu que, “com relação às dívidas fiscais, a Procuradoria Geral do Estado já propôs todas as ações competentes na Justiça”.

Afirmou ainda que “vem acompanhando e buscando soluções para os conflitos agrários no Estado por meio de uma força-tarefa” e que, em 2019, foi criada a Comissão Estadual de Mediação de Conflitos Agrários para discutir “medidas que visam minimizar e solucionar os conflitos” e que, “dentre outras estratégias, são realizadas visitas técnicas por meio de equipe multidisciplinar”.

Segundo o advogado Waldemir Soares, que representa os camponeses na batalha judicial pela permanência no território, o conflito agrário em Jaqueira não tem recebido a atenção devida. “O governo de Pernambuco atua de forma meramente burocrática e enfraquece os camponeses”, critica Soares, que enfatiza a gravidade do conflito. Os camponeses levaram a Câmara denúncias de ameaças às suas vidas e danos patrimoniais que não são investigados pela polícia. Essa omissão levou os camponeses a denunciar a situação ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). “A atuação do governo de Pernambuco, de forma direta ou indireta, intervindo junto ao governo federal, é fundamental para garantir a integridade física dos camponeses que buscam a reforma agrária”, destaca o advogado.

“O gado não emprega”, lamenta trabalhador

Em 2013, foi realizado um contrato inicial de arrendamento com o advogado Luiz de Sá Monteiro, sócio do escritório Sá Monteiro, Caribé & Advogados Associados. De 2001 a 2012, período em que a usina já vinha arrendando suas terras, os agricultores ainda trabalharam nos engenhos, cultivando cana-de-açúcar. A partir de 2013, quando Sá Monteiro entrou no território, “foi mudando a cultura, foi tirando a cana e botando gado”, afirma Juvenal, outro trabalhador designado por pseudônimo, funcionário na Frei Caneca por oito anos até ser demitido.

“Aí começou o conflito, porque todo mundo trabalhava e nós fomos ficando desempregados”, conta. “Porque o gado não emprega. A gente teve que procurar outros meios. Trabalhar na cana mesmo, cortando cana, ou trabalhar na construção civil, como eu fui”.

— E a violência foi grande. Foi grande, porque chegavam os caras armados, como chegam hoje, procurando as pessoas, se informando, procurando nomes. Perguntando quem era quem, quem comandava o engenho, coisas assim. Muito difícil pra gente, porque são pessoas que a gente não conhece, vêm armados. A gente não tem arma, arma que a gente tem é uma foice, uma enxada, facão, que é de trabalho. E eles vêm com arma.

Juvenal conta que com a chega da Mata Sul intensificou-se a violência porque “eles já sabiam que a gente vinha se defendendo”. O lavrador destaca que, em nenhum momento, houve agressão por parte das famílias: “A gente só se defende. Eles fazem um aparato de guerra contra a gente. Muitos homens armados, cachorros, drone”. Entre as táticas das empresas está também cercar a fonte de água, impedindo o acesso ao rio.

EMPRESA ARRENDATÁRIA NÃO CUMPRE ACORDO E MANOBRA PARA INVALIDÁ-LO

O conflito fundiário se intensificou a partir da implementação de um novo modelo de produção pelo arrendatário, causando prejuízo aos antigos moradores, que faziam agricultura de subsistência desde o fim das atividades da usina. Em 2016, com mediação da Promotoria de Justiça, foi firmado acordo entre os trabalhadores e Luiz de Sá Monteiro, por meio do qual ficaria assegurada a retomada da posse de uma área pelos agricultores, onde eles já desenvolviam atividades agrícolas, mas que tinha sido invadida para a plantação de cana-de-açúcar. Pelo acordo, uma vez que Monteiro realizasse a colheita da cana ali plantada, a área voltaria a ser usufruída pelos trabalhadores.

À esquerda, Marcello Maranhão, deputado Clóvis Paiva e o governador Paulo Câmara, em reunião sobre usina da família. (Foto: Reprodução)

Mas o trato não foi cumprido. Cinco anos depois de arrendar as terras, em fevereiro de 2018, Monteiro cedeu a exploração da área para a empresa Agropecuária Mata Sul S/A (cessionária), nova denominação de Negócio Imobiliária S/A, propriedade de Guilherme Maranhão, irmão de Marcello Maranhão (PSB), reeleito prefeito da cidade de Ribeirão, a 50 quilômetros de Jaqueira. Os Maranhão são uma tradicional família de usineiros. Essa manobra foi feita, segundo o documento da Defensoria, “como forma de tornar sem efeito o que havia sido deliberado, uma vez que a nova arrendatária passou a alegar que não poderia cumprir um acordo do qual não participou nem anuiu”.

A Mata Sul, que move trinta processos de reintegração contra os camponeses, tornou-se cessionária de arrendamento de parte das terras pertencentes à desativada Usina Frei Caneca, portanto muitos anos após a consolidação da ocupação dos cerca de 5 mil hectares pelas famílias de posseiros. A área arrendada pela empresa para pecuária corresponde a aproximadamente 60% do município de Jaqueira. O observatório tentou contato com a empresa por meio de seu advogado, mas não houve retorno.

Diante do quadro de abandono e riscos constantes em que se encontram os camponeses, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), a quem compete receber e apurar responsabilidades sobre violações, encaminhou ao TJ-PE, no dia 07, documento em que comunica as violências da Agropecuária Mata Sul S/A contra os posseiros e reivindica “a adoção de medidas efetivas que ponham termo às ameaças e agressões que vêm sofrendo os/as possuidores/as por conta de atos e ações perpetradas pela atual arrendatária ou equivalente da área em conflito”.

Para Juvenal, embora na década de 90 a vida na zona rural fosse mais difícil, devido à ausência de energia elétrica, televisão, telefone e outros equipamentos, a comunidade vivia melhor:

— A vivência era melhor do que hoje, apesar de não ter a tecnologia. A vida era melhor porque tinha liberdade. Você trabalhava, as crianças tinham a liberdade que aqui hoje não têm.

Luiza Sansão é jornalista especializada em direitos humanos. |

Foto principal (Reprodução): Grupo ligado à Mata Sul S/A destrói bananal de camponeses com agrotóxicos

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