Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Chegamos à reportagem que encerra a série Novos Retratos do Velho Chico - um rio que sangra até morrer?, uma produção da Asa Brasil, que celebra o Dia Mundial da Água, 22 de março. Até aqui, você acompanhou o cenário de assoreamento, salinidade e contaminação registrados no Baixo Rio São Francisco.

No estado do Ceará, um dos integrantes da região Nordeste Setentrional, acompanhamos o risco de aumento de parasitoses e outras doenças junto às populações que irão receber as águas do rio São Francisco transportadas até o açude Castanhão. Essas águas estão contaminadas com esgotos domésticos lançados na calha do rio por cerca de 74 municípios ribeirinhos.

No Oeste da Bahia, falamos sobre a escassez de água nos rios do Vale do Arrojado, afluentes do São Francisco e fontes de produção alimentar para cerca de 10 mil famílias. Estes afluentes são recarregados pelas águas do Aquífero Urucuia, que também sofre com a escassez de água, devido a sua ocupação maciça para instalação de fazendas de criação de gados e cultivo de soja, milho, feijão e algodão.

No Vale do São Francisco, que envolve parte dos estados da Bahia e de Pernambuco, abordamos o impacto para o rio do aumento das áreas irrigáveis em 70 mil hectares, previsto pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf).

Nesta terceira e última reportagem, abordamos o debate em torno da implantação da Usina Nuclear de Itacuruba, na região do Submédio São Francisco pernambucano. A usina é pauta do Grande Expediente da sessão da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), no último dia 18 de março. Para funcionar a pleno vapor, este empreendimento, que segundo o projeto é formado por seis reatores nucleares, demandaria uma vazão total segura de cerca de 250 m³ por segundo. De acordo com o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), João Suassuna, as condições hídricas do São Francisco não suportariam mais este uso.

 

O rio São Francisco sob nova ameaça

Instalação do empreendimento vai exigir uma vazão que o rio São Francisco não suporta, além de impactos na segurança hídrica e alimentar, e na qualidade de vida das comunidades ribeirinhas


Além de rever os licenciamentos de uso das águas do Rio São Francisco já em vigor, é importante considerar as condições ambientais do rio para a concessão de licenciamentos futuros. Nesta direção, tramita na Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (Alepe), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 09/2019, de autoria do deputado estadual Alberto Feitosa (PSC), que prevê a alteração do artigo 216 da Constituição Estadual, garantindo as condições para a implantação de uma Usina Nuclear em Itacuruba, município localizado na região do Submédio São Francisco pernambucano.

O último debate envolvendo o assunto ocorreu no dia 18 de março, durante o Grande Expediente da sessão da Alepe (colocar hiperlink para a matéria). Na ocasião, o deputado estadual João Paulo (PCdoB) elencou uma série de argumentos contrários ao empreendimento, dentre os quais estão o descumprimento à Constituição Estadual e riscos à saúde física e psicológica da população local.

“Pergunto se as vantagens econômicas de curto prazo, como a geração de empregos na fase de construção da usina, valeriam o sacrifício humano, os riscos de acidentes e impactos negativos à população de Itacuruba, que seria, mais uma vez, vítima das consequências negativas de um empreendimento energético,” pontuou, João Paulo - PCdoB!

Nesta fala, o deputado Estadual João Paulo faz menção à construção do Lago de Itaparica, inaugurado em 1988, que inundou as cidades de Petrolândia e Itacuruba, deslocando as famílias para outras cidades. Na época, as famílias tiveram que retomar as suas vidas sem referências históricas das suas cidades natal.

Argumentos postos em debate -Nos apartes contrários ao projeto, a deputado Estadual pelo PT, Teresa Leitão completou: “Pernambuco não precisa de uma usina nuclear. Há outras formas de ampliar nossa capacidade energética.” Ao solicitar a fala, o deputado Doriel Barros também do PT argumentou: “não há dinheiro que pague o valor de uma vida.” Finalizando os apartes, a parlamentar do Coletivo Juntas/PSOL, Jô Cavalcanti, informou: “fizemos um trabalho de escuta dos povos tradicionais da região e eles se opõem ao projeto.” , enquanto o membro do PSB Isaltino Nascimento defendeu: “os interesses econômicos de uma minoria não podem se sobrepor aos da maioria da população pernambucana.”

O autor da PEC 09/2019, o deputado Alberto Feitosa (PSC), trouxe a seguinte reflexão: “imaginem as vantagens econômicas trazidas pelo empreendimento, que deverá mobilizar um investimento de U$ 50 bilhões na região.” O presidente da sessão ordinária, o deputado Antônio Fernando defendeu que "os rejeitos do empreendimento poderão ser aproveitados como combustíveis de outras usinas e que o Estado não pode negar as vantagens econômicas do projeto”. Antônio Fernando (PSC)

Ilustração da Eletronuclear produzida em 2011 apresentando como será a Usina Nuclear de Itacuruba - Fonte: Marco Zero Conteúdo


Impactos da implementação do projeto_Em um possível cenário de implementação do projeto, seriam instalados seis reatores no leito do Rio São Francisco, que demandariam uma vazão segura de 250m³ por segundo, apenas na região de funcionamento da usina. Na avaliação do pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), João Suassuna, “do jeito que a situação do rio está hoje, com essa questão da gestão hídrica precária, que foi adotada no rio São Francisco, eu não assinaria embaixo um projeto deste, pois não há segurança hídrica na localidade.”

De acordo com a redação original, o Artigo 216, cuja alteração está em debate, determina que “fica proibida a instalação de usinas nucleares no território do estado de Pernambuco enquanto não se esgotar toda a capacidade de produzir energia hidrelétrica e oriunda de outras fontes.” Já o novo texto proposto pela PEC 09, que se aprovado permite a instalação da usina, diz: “O Estado fomentará projetos e atividades de geração de energia de fontes renováveis, que se mostrem eficazes e economicamente competitivos, priorizando o equilíbrio socioambiental, mediante concessão de incentivos fiscais e financeiros."

A PEC 09 se encontra, atualmente, na Secretaria Geral da Mesa Diretora da Alepe. O texto nunca foi submetido à votação e, segundo informações da Assessoria de Imprensa da Alepe, não há previsão para entrada na ordem do dia. Já a instalação da Usina, que só poderá ocorrer com a aprovação da proposta, ganhou força nas pautas de debates e audiências realizadas pelas Comissões de Meio Ambiente e de Ciência e Tecnologia da Alepe, a partir de 2019 até os dias atuais.

Uma análise técnica especializada - O professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e especialista em energia nuclear, Heitor Scalambrini, fez uma análise técnica do projeto de instalação da Usina Nuclear de Itacuruba. Segundo pesquisador, não há no mundo, por exemplo, um destino seguro para o armazenamento do lixo atômico. Com isso, não devemos deixar esta questão como um problema para as gerações futuras. Outro ponto trata do custo de desativação desta usina, que chega a ser tão alto quanto o custo de implementação.

Com o passar do tempo, os equipamentos envelhecem e precisam ser trocados. Na análise de Heitor, a energia nuclear é cara e “custa em média de 3 a 5 vezes mais do que a energia eólica e hidrelétrica e deve elevar o valor da tarifa na região.” O pesquisador finaliza a sua análise, pontuando aspectos ligados à segurança e ao processo de nuclearização da América Latina.

“Não existe risco zero em engenharia. O risco de acidentes em usinas nucleares é baixo, mas existe, vejamos o acidente que ocorreu, em 2011, na Usina Nuclear de Fukushima no Japão. E quando acontece os estragos possuem dimensões incomparáveis. A nuvem radioativa decorrente deste acidente pode durar por anos e anos, causando contaminação.O rio São Francisco seria contaminado por essa fonte radioativa. Por fim, não se fala a respeito, mas uma das possibilidades de uso desta energia é para fins bélicos, para a produção de bombas nucleares. Com a instalação desta usina, o Brasil estaria fortalecendo a nuclearização da América Latina, arremata Heitor.

Área definida para a instalação da Usina Nuclear de Itacuruba - Google Maps

Por que Itacuruba? - A escolha de Itacuruba para a implantação da usina se deu através do Plano Nacional de Energia 2030. Construído pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e lançado em 2007, prevê um investimento de R$ 30 bilhões para a construção de seis reatores com capacidade de produção de 6.600 megawatts. A área de instalação está localizada no Sítio Belém de São Francisco, distante 8 km de Itacuruba, e pertence à Companhia Hidroelétrica do Rio São Francisco (Chesf).

O pesquisador da Fundaj pontua alguns critérios para a escolha do município de Itacuruba.“Primeiro porque tem pouca gente, Itacuruba é um município que deve ter aí em torno de 4.500 habitantes. Isso quer dizer que se houver um acidente nuclear, é fácil remover essa população rapidamente. Segundo, Itacuruba está nas margens do rio São Francisco e uma usina nuclear precisa de água para refrigerar os seus equipamentos. Terceiro, está muito próxima da linha de transmissão da Chesf, então é mais fácil gerar a energia nuclear e colocar na rede de distribuição que está passando ali próximo,” explica João.

O possível destino do lixo atômico - Outro aspecto levado em conta, ainda segundo o pesquisador João Suassuna, é a localização de Itacuruba em relação à reserva ecológica conhecida como Raso da Catarina, que fica no estado da Bahia. Enquanto Itacuruba fica na margem esquerda do Rio São Francisco, o Raso fica à direita. Este é o destino previsto para o descarte do lixo atômico produzido pela usina durante o processo de operação. “Veja o problema de colocar esse lixo em uma reserva como o Raso da Catarina que é uma reserva com uma variedade enorme de plantas, de animais… é uma biodiversidade , assim, única, tá entendendo? E esse foi o local escolhido para se colocar este lixo que [vai levar] milhões de anos para chegar a sua meia vida. Então veja, isso é um problema que tem que ser resolvido”, destaca João.

A cacique indígena Pankará Lucélia Lela afirma que a Usina Nuclear vai prejudicar a sobrevivência da comunidade que depende do rio - Foto Jorge Pankará

Os indígenas Pankarás resistem à usina nuclear - A área onde está prevista a construção da Usina Nuclear fica a 4km da Aldeia Serrote, território indígena dos Pankarás. A cacique indígena Pankará, Lucélia Leal, cita os prejuízos que o empreendimento trará para a comunidade. “Primeiro, tem a destruição da Caatinga, pois este projeto precisa de uma grande área para ser instalado. Segundo, o nosso rio já não é uma corrente, ele é uma represa e nos períodos de secas longas, ele fica sem água e as turbinas precisam de água para resfriar. Outra coisa, se estamos numa represa, vamos usar água, e como vamos usar água que servirá para resfriar turbinas? Temos conhecimento de locais onde o nível de câncer é altíssimo por causa do urânio”, denuncia Lucélia.

Ainda de acordo com a cacique, há indícios de que já foram dados passos rumo à implementação da usina e a forma como tudo ocorreu, sinaliza um processo invasivo. “Nós somos muito contra esse projeto. Ele já começou impactando o nosso território, com a construção da estrada do Peixe, onde nós não fomos consultados. E de uma hora pra outra, a gente acorda com máquinas adentrando o nosso território, devastando o nosso território. (...) E quando foi construída esta estrada, ela foi denominada Estrada do Peixe, mas a gente sabe que o objetivo da instalação dela não foi escoar a produção de peixe, mas, sim, dá acesso à área onde será implementada a Usina Nuclear”, denuncia a cacique Pankará, Lucélia Leal.


Acompanhe a pauta na Alepe - A Comissão de Ciência, Tecnologia e Informática da Assembleia Legislativa de Pernambuco é a responsável pelas pesquisas e análises da viabilidade da Usina Nuclear de Itacuruba. A Comissão de Ciência e Tecnologia  é formada pela deputada Fabíola Cabral (PP) (Presidente), William Brígido (Republicanos) (vice - Presidente), Antônio Fernando (PSC), Priscila Krause (DEM) e professor Paulo Dutra (PSB). Segundo informações da Assessoria de Imprensa da casa legislativa, o colegiado promoveu debates sobre o assunto, envolvendo além dos parlamentares, pesquisadores e profissionais do setor elétrico e de geração de energia.

A Comissão realizou ainda uma visita técnica a uma Usina do mesmo tipo em Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de conhecer de perto o funcionamento do empreendimento e o nível de segurança. Outro debate se deu na Comissão de Meio Ambiente, que desta vez contou com a participação de parlamentares, pesquisadores, ambientalistas e moradores da região de Itacuruba.


Posicionamento de algumas organizações da sociedade civil - O educador social do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) em Floresta, na região do Submédio São Francisco, Pedro João, afirma que a instalação da Usina Nuclear representa o fim da pesca artesanal, atividade que serve à alimentação e à geração de renda das comunidades ribeirinhas.

“A água vai impactar no ecossistema local. A água que volta após resfriar os reatores estará aquecida em 2ºC, o que impacta na sobrevivência e na reprodução dos peixes.Atualmente, os reservatórios já sofrem com o baixo volume de água, devido às mudanças climáticas que tornam as chuvas irregulares. Neste momento, por exemplo, estamos há tempos sem chuva. Fora isso, o eixo Leste da Transposição do rio São Francisco, localizado entre Petrolândia e Floresta, também usa essas águas, reduzindo ainda mais o volume. Com a implantação da usina, que vai demandar água para resfriar os reatores, o volume de água vai ficar ainda menor, tornando a pesca artesanal inviável, reflete Pedro João.

A assessora Jurídica da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Gabriela Rodrigues, revela que a instituição é contra ao projeto por considerar desnecessário o uso dessa matriz que é poluente, especialmente se for levada em conta toda a cadeia de produção; e por se tratar de uma energia que não é limpa, não é renovável. A CPT avalia que, embora o risco de acidente seja mínimo, se acontecer, se trata de algo de grande dimensões, ou seja, irá impactar diversas gerações futuras. Além disso, a assessoria Jurídica pontua outros elementos.

“Desativar um projeto deste custa caro. Teriam inúmeros transtornos para lidar com o lixo radioativo. Além disso, na região onde está prevista a construção da usina, residem três comunidades indígenas e três comunidades quilombolas, que já sofreram com o deslocamento, na década de 80, para a construção da Barragem de Itaparica, que trouxe grande mazelas sociais, vivenciadas até hoje. A construção desta usina fariam com que eles vivenciam o problema novamente. Por fim, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) determina que as comunidades devem ser ouvidas em casos de construções de grande impacto e até o momento, as comunidades locais não foram escutadas e nem colocadas a par dos impactos do projeto”, explica Gabriela Rodrigues.

 

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