Na manhã desta sexta-feira, dia 20/09, foi assinado o Contrato de cessão de uso, sob o regime de Concessão de Direito Real de Uso Gratuito, de 310 hectares de terras da União para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma (Incra), com o objetivo de criar um assentamento específico para famílias de pescadores e agricultores no município de Ipojuca, litoral de Pernambuco. A formalidade do ato aconteceu na sede da Superintendência do Patrimônio da União (SPU), em Recife, e contou com a presença do Superintendente do SPU/PE, Paulo Roberto Ferrari, do Superintendente do INCRA SR3, Luiz Aroldo Rezende, representantes da comunidade do “Sítio Zé de Ipojuca”, que será beneficiada, além de representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A medida põe fim a um conhecido e longo conflito no Estado, envolvendo por um lado, a comunidade tradicional que vive em terras da União e que vinha lutando pelo reconhecimento de sua posse e do outro lado, a presença do monocultivo da cana-de-açúcar em terras públicas no Estado, neste caso, a Usina Salgado. Os 310 hectares onde moram as famílias estavam sob domínio da Usina desde 1921, que no decorrer dos anos acumulou um extenso histórico de crimes cometidos à comunidade e ao meio ambiente. O trabalhador rural Severino Ramos, 63, nascido e criado na comunidade diz que o dia de hoje tem uma importância incalculada. “A Usina estava sobre estas terras fazendo o que bem queria. Agora é o povo que vai continuar a viver nela. Vai plantar, vai criar. Nasci e me criei aqui. Meu sentimento é de alívio e alegria”.
Os 310 hectares, repassados hoje ao INCRA, fazem parte de 1460 hectares de terras que pertencem a União e que estão localizadas no município de Ipojuca. Questionados pelo representante da CPT sobre quando a SPU iria repassar o restante das terras para o INCRA, Paulo Ferrari respondeu que, “vamos continuar o processo de identificação da outra parte das terras da União para que ela seja repassada para o INCRA. O regime de ocupação que tinha a Usina Salgado, nós já cancelamos. Agora é continuar o processo. Hoje foi só o começo”.
O Superintende do INCRA, Luiz Aroldo, garantiu que no próximo dia 30 de setembro, os técnicos do Órgão irão até a comunidade fazer o cadastramento de todos os moradores e moradoras que vivem no local. O superintendente informou ainda que para a próxima semana já está agendada uma reunião entre o Instituto e a SPU para dar continuidade à concessão dos restantes dos hectares.
Para o representante da CPT, Plácido Junior, o ato de hoje foi extremamente importante. “Essas famílias moram há décadas naquele lugar e sempre estavam sob ameaças de serem expulsas pela Usina ou até mesmo pela expansão de Suape ou pela especulação imobiliária que incide sob a região. Esperamos que a SPU e o INCRA tenham a coragem de continuar o processo de destinar os restantes das terras, que é da União, para quem são, de fato, seus verdadeiros donos: as famílias que nasceram e se criaram nestas terras e construíram uma forma de vida única naquele lugar. Esse povo é um patrimônio nosso. Ainda para o membro da CPT o desafio da comunidade e do Incra a partir de agora é “construir o assentamento com a cara do povo do lugar, com sua cultura, com seu jeito de ser”, ressaltou. A comunidade de Zé de Ipojuca está programando uma comemoração por esta conquista.
Dados do conflito:
Foi a partir de 2005 - quando a comunidade que vivia em um dos Engenhos da Usina se organizou para exigir do Governo Federal a implementação do Programa Luz Para Todos na região - que o conflito com a Usina Salgado se intensificou. Na época, a administração da Usina Salgado proibiu o Governo de instalar a rede elétrica, a colocação de postes e os contadores nas casas das famílias do Engenho. (Leia mais sobre isso aqui). Uma audiência chegou a ser realizada na Assembleia Legislativa de PE, em setembro de 2005, mas o proprietário da Usina Salgado não compareceu ao espaço, impedindo o processo de negociação para a implementação da energia elétrica no Engenho. (Leia mais sobre isso aqui).
Além de proibir a instalação da energia elétrica na comunidade, a Usina Salgado partiu para um processo de perseguição e expulsão das famílias: destruiu os sítios de moradores e moradoras, intimidou as famílias com milícia privada e solicitou diversas ações de reintegração de posse com o objetivo de expulsar toda a comunidade do local.
Em novembro de 2006, como fruto da organização e resistência da comunidade, o Incra solicitou à GRPU o cancelamento da licença de ocupação da área cedida à Usina Salgado. Esta medida, tomada em decorrência do relevante interesse social e ambiental nas terras da União, possibilitaria a regularização da posse para as famílias que tradicionalmente viviam no local.
Em outubro de 2007, uma grande mobilização na Usina Salgado foi realizada por mais de dois mil trabalhadores, trabalhadoras, com o apoio de organizações sociais do campo do estado, como a Comissão Pastoral da Terra, A Fetape, a Fetraf e o MLST. Tal ação fez com que as denúncias dos crimes cometidos pela Usina Salgado viessem novamente a público e o debate da Reforma Agrária e dos direitos das famílias que ali viviam fossem colocados de forma mais incisiva na pauta do Governo e do Incra. 2007 também foi o ano em que a Gerência Regional do Patrimônio da União (GRPU) cancelou a licença de ocupação a área pela Usina Salgado, a pedido do Incra.
Após o cancelamento da licença de ocupação, o processo ficou parado a espera que o Incra delimitasse a área a ser destinada à Reforma agrária. Esse é o procedimento necessário para que a GRPU liberasse as terras para as famílias envolvidas no conflito. Em outubro de 2009 uma nova mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras foi realizada, desta vez no Incra, como forma de pressionar os órgãos responsáveis a dar continuidade e agilidade no processo.
O cancelamento da licença de ocupação da Usina Salgado se deu pelo extenso histórico de violência e de crimes cometidos à comunidade, ao meio ambiente e por dividas com a União. A Usina Salgado chegou a acumular uma dívida de aproximadamente R$ 80 milhões com o Estado, sendo R$ 16 milhões apenas com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A Empresa também foi acusada de não recolher o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) das trabalhadoras e trabalhadores empregados. Além disso, a Usina, que foi instalada em terras da União, desde 1986 não paga taxas de ocupação da área.
Também recai sobre a Usina a responsabilidade de diversos crimes ambientais na região. Em 2008, juntamente com todas as Usinas do estado de Pernambuco, foi autuada pelo Ministério do Meio Ambiente por cometer crime ambiental e chegou a receber uma multa de R$5 milhões de reais. (Ler mais sobre isso aqui). Dos 20 Engenhos pertencentes à Usina Salgado, nenhum mantém a área de reserva legal de 20% estabelecida em lei. O que existe é uma área de apenas 6,5% de reserva legal mantida pela Usina, possuindo assim um passivo ambiental de mais de 13%.
Durante todo o processo, a Usina protagonizou diversas ações de violência contra as famílias que viviam no local.O caso foi discutido em reuniões da Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo e em julho de 2010, um relatório contendo o histórico de violência cometidas pela Usina Salgado foi entregue à Secretaria do Patrimônio da União. O documento, além de apresentar várias denúncias sobre os crimes ambientais e irregularidades da Usina, colocava que “as mais de 300 famílias estão sendo perseguidas e ameaçadas por funcionários da Usina Salgado, para que abandonem suas casas”.
Em 2011, as famílias conquistaram um passo importante na luta pelo fim do conflito. No dia 20 de julho, foi publicada no Diário Oficial da União, a portaria de n.198 que garante a regularização da posse das terras para as famílias que ali vivem há mais de cem anos e onde está localizado um dos Engenhos da Usina Salgado.
Hoje, dia 20 de setembro de 2013, foi assinado o Contrato de cessão de uso, sob o regime de Concessão de Direito Real de Uso Gratuito, de 310 hectares de terras da União para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma (Incra), com o objetivo de criar um assentamento específico para estas famílias de pescadores e agricultores.