As cerca de 160 famílias que fazem parte da comunidade quilombola Jatobá, localizada no município de Cabrobó, sertão do estado de Pernambuco, deram mais um passo na luta pela garantia do direito à demarcação definitiva do território em que vivem. No último dia 31 de agosto, as famílias do quilombo reuniram-se na Igreja da comunidade para acompanhar a apresentação e aprovar o relatório antropológico final, elaborado pela antropóloga Geórgia Silva.
O relatório contém a descrição e caracterização histórica, econômica, ambiental e sociocultural da comunidade e é uma das etapas principais do longo e burocrático processo até que as famílias tenham formalmente o seu território demarcado. Isto porque é nele onde são definidos, através de estudos e pesquisa com as famílias quilombolas, todos os limites territoriais da comunidade.
Para Joana Angélica, uma das lideranças da comunidade, “o relatório antropológico foi um dos documentos mais esperados por todos nós do território quilombola, porque é dele que vai se definir o nosso território e é isso o que a gente mais sonha. É a partir desse relatório que a nossa terra vai sair e a gente tá doido pra ver a regularização da nossa terra, pra trabalhar, plantar e viver sem ninguém mandar em nosso território”, responde.
“Após a aprovação do laudo, o processo entra em uma outra fase que é a da regularização fundiária”, explica a antropóloga Caroline Leal, que coordena a elaboração de laudos antropológicos em seis comunidades no estado de Pernambuco. A antropóloga faz referência a Instrução normativa de n. 57, que rege todo o procedimento, deste a identificação até a etapa final de titulação e registro dos territórios quilombolas. De acordo com a normativa, estes próximos procedimentos implicam em: publicação de uma portaria de reconhecimento pelo Incra declarando os limites do território quilombola, e em seguida, a abertura do processo administrativo para a regularização fundiária, com desintrusão de ocupantes não quilombolas.
As famílias que fazem parte da comunidade quilombola Jatobá estão conscientes de que, após a aprovação do laudo, deverão continuar mobilizadas, pressionando e reivindicando do Estado e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a aceleração do processo de demarcação e titulação do seu território, que não tem previsão de quando será definitivamente concluído.
O longo percurso em busca do reconhecimento do território Quilombola
Para chegar até a conquista da elaboração do laudo, as famílias percorreram um caminho de anos de luta e mobilização. De acordo com Maria Gregória, a matriarca da comunidade com 72 anos, as famílias começaram a se mobilizar há aproximadamente 20 anos, no entanto, o processo de auto identificação e de luta pelo reconhecimento de território se fortaleceu a partir de 2004. Nesse ano, a comunidade decidiu fazer um levantamento de sua história e suas raízes, a partir de um projeto desenvolvido na Escola da comunidade em conjunto com o Serta. Maria Gregória resume em poucas palavras o início da história da comunidade. De acordo com a matriarca do quilombo, os filhos que nasciam brancos não possuíam privilégios e não levavam o sobrenome do pai, mas eram mantidos dentro da Casa Grande como crianças adotadas. “Já os filhos que nasciam negros, não. Vieram para cá” explica.
Em 2006, as famílias registraram a Associação da comunidade como quilombola e em outubro daquele mesmo ano enviaram à Fundação Cultural Palmares o documento da auto identificação. Em março de 2007 foi emitida a certidão da Fundação, reconhecendo o quilombo. Hoje, a mulher mais velha do quilombo estampa o sorriso no rosto ao saber que a luta da comunidade pela reparação histórica de seus direitos não está sendo em vão.
“Nós da CPT ficamos muito felizes em ver o grau de organicidade e de disposição de luta do povo quilombola. Esta é a re-existência camponesa e quilombola e só com muita luta e organização das comunidades é que será possível empurrar o Governo e o Incra a demarcarem seus territórios”, enfatiza Plácido Júnior, da Comissão Pastoral da Terra. “Quando se trata em atender as demandas dos povos do campo, o Governo e o Incra andam a passos de Tartaruga, mas age com extrema velocidade quando se trata de atender aos interesses do capital e do agronegócio”, complementa.
Apesar do avanço, famílias denunciam que as obras da Transposição impedirão a demarcação do território original da comunidade
Apesar do avanço conquistado com a finalização do relatório antropológico, a comunidade quilombola Jatobá não conseguiu garantir, no documento, os limites de seu território original. O motivo é a presença do canal da Transposição do Rio São Francisco que passa exatamente por cima do território quilombola. O local, que hoje é ocupado pelos canais, faz limite com o Rio Grande, área molhada que servia de plantio para muitas famílias do quilombo Jatobá.
Os limites territoriais são uma preocupação das famílias de hoje quando pensam na continuidade e na reprodução da cultura e do modo de vida quilombola das gerações futuras. “O nosso território já não é grande, pois estamos cercados, de um lado pela Serra da Bananeira e a Serra do Umãs e do outro lado, há os limites territoriais externos de um assentamento e o canal da transposição do Rio São Francisco, bem em cima de nosso território, sendo que boa parte desta área é composta de lajeiros e pedreiras, onde não podemos aproveitar para a plantação”, ressalta Joana.
De acordo a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), a obra da transposição afeta diretamente a segurança e soberania alimentar das famílias que vivem no quilombo. E, embora a comunidade seja diretamente atingida pelas obras da transposição, o Ministério da Integração Nacional não a incluiu na lista das comunidades atingidas, o que significa dizer que não há por parte do Estado brasileiro o reconhecimento dos impactos causados à comunidade.
A antropóloga responsável pelo estudo da comunidade, Geórgia Silva, considerou todos os danos e impactos relatados pela comunidade no relatório antropológico. Para o membro da CPT, Plácido Junior, “é inadmissível que o Estado Brasileiro não reconheça que a Transposição atinge diretamente a comunidade. Se não há reconhecimento agora, quando será? Esta é uma forma de criar o discurso de que a Transposição não tem impacto social e ambiental e além disso, de isentar o Estado da reparação destes impactos. E isso acontece justamente com um povo com o qual o Brasil tem uma dívida histórica.”
Abandono e descaso do Estado com as comunidades quilombolas e com a Reforma Agrária
Apesar de passados 24 anos desde o surgimento do marco legal que reconhece os direitos territoriais das comunidades quilombolas, somente dois territórios foram titulados no Estado de Pernambuco: Castainho, localizado no município de Garanhuns; e Conceição das Crioulas, em Salgueiro. Para contrastar com o número inexpressivo de titulações pelo Estado brasileiro, a Comissão Estadual das Comunidades Quilombolas de Pernambuco afirma que há aproximadamente 120 comunidades quilombolas no estado.
Além da comunidade de Jatobá, apenas outras 9 comunidades do estado de Pernambuco encontram-se atualmente em processo de elaboração de seus relatórios antropológicos: Território Águas do Velho Chico, em Orocó; Comunidades quilombolas de Santana e Cruz dos Riachos, em Cabrobó; Feijão e Posse, em Mirandiba; Tiririca, em Carnaubeira da Penha; Negros do Osso, em Pesqueira; Comunidades Estivas e Estrela, em Garanhuns; e comunidade Quilombo, de Águas Belas. De acordo com a antropóloga Caroline Leal, estima-se que até o final do ano 90% destas comunidades já tenham finalizado o processo de estudo antropológico. No entanto, não é possível prever quanto tempo levará até que todo o processo de demarcação e titulação seja concluído.
Para a realização destes estudos, o Incra teve que abrir uma licitação nacional nos moldes de pregão eletrônico para que fossem terceirizadas empresas para a elaboração dos estudos Antropológicos. Tal processo, comenta Caroline Leal, burocratizou e atrasou ainda mais o processo de demarcação das comunidades. Sob este modelo, a elaboração dos laudos antropológicos está demorando em média de um a dois anos até ser concluída.
As lideranças comunitárias ressaltam que o atraso na elaboração destes relatórios se dá pelo não compromisso das Empresas terceirizadas com as comunidades, que demoram a repassar os recursos, como pagamento de diárias e transportes, aos funcionários que desenvolvem os estudos. Outro fator levantado, segundo Plácido Jr “é que a terceirização de um serviço atribuído inicialmente ao Incra - que deveria contratar, através de concursos públicos, os antropólogos para elaboração dos estudos – demonstra o desmonte do órgão e descaso do Estado brasileiro com as comunidades quilombolas e com o processo de Reforma Agrária.”