Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

“Ya temi xoa, aê, êa! Eu ainda estou vivo!” - Gritaram os ianomâmis no sambódromo.

Liguei a TV e vi uma avenida lotada de gente gritando a plenos pulmões: “Estou vivo ainda!” junto aos ianomâmis naquela escola de samba campeã que não lembro o nome agora. No dia seguinte, a mesma TV me mostrou o lançamento da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano de 2024, e fiquei pensando o que esses eventos têm em comum? Para quem gritam estes grupos que, ora são os mesmos, ora os interesses em particular os tornam tão distantes?

O chamamento do povo Yanomami existe há muito tempo. Eu ainda era criança e já estou na meia idade, viu? Era para que pudéssemos enxergá-los como povo, gente, bicho e floresta, tudo junto e misturado, compondo um todo harmônico. Isso me lembra que o chamado da CF 2024 também é olhar para todos e todas como irmãos, com grito igual, e alguns entendimentos diferentes. Para mim, o mesmo grito. E então por que depois do Carnaval nos separamos?

Nestes meus pensamentos tolos de uma sexta-feira sem graça, recordei o que disse o Padre Hermínio Canova outro dia: “Precisamos olhar para o futuro de frente para o passado”. Ele ouviu o grito dos povos originários. É certo que outros ouviram, mas, ainda não nos juntamos de verdade.

O chamado da Campanha da Fraternidade, segundo Dom Ricardo Hoepers, secretário geral da CNBB é para “aprofundar a fraternidade como contraponto ao processo de divisão, ódio, guerras e indiferença que tem marcado a sociedade brasileira e o mundo”. E fazem já 60 anos que a CF vem chamando a “conversão”, que é cuidar da vida assumindo de verdade o projeto de Jesus de Nazaré.

E de grito em grito, narrativas e narrações, penso em São Francisco de Assis e lembro: “Até aqui pouco ou nada fizemos”, já que a comunidade cristã persiste no individualismo, confundido intencionalmente com individualidade para confundir nossas emoções. Quase nada mesmo mudamos na sociedade e em nós, enquanto mais importante que o povo Yanomami, é o ouro; enquanto mais importante que o povo da Caatinga, é o minério e a produção de energia, com apoio dos tementes a Deus.

A vida tem nos mostrado que é a cooperação, e não a competição, que salva. Salva gente, salva bicho, salva planta e também as almas que, livres do corpo mortal, transformam-se em energia só de amor, pois eu acredito na mensagem do jovem de Nazaré.

Os dois chamamentos são claros como água de cacimba: precisamos respeitar cada ser que vive na terra e viver de modo que os bens produzidos pela terra e pelas gentes sejam colocados em comum, seja o pão ou a ideia.

É claro que uma educação mais para competição do que para a competência não colabora, mas, lotamos as igrejas aos domingos, e sábados para quem é de sábado, repetindo crer que somos irmãos e irmãs como está no lema da CF 2024. Competir nos levará a amizade social? Colocando o que é comum de todos e todas a serviço se nosso coração para patentear, seremos justos, teremos justiça na terra?

“Tem muita terra pra pouco índio” repetem muitos, inclusive vários que cantaram “Ya temi xoa, aê, êa!” na avenida. Muitos que acreditam ser a perfeição, um mundo onde a ideia, as sementes, plantas, bichos, sol e vento tenham donos e não vão sossegar até que todo ser vivente livre esteja sobre as amarras do egoísmo humano.

Particularmente neste pedaço da Casa Comum onde vivo, cercada de fronteiras geográficas e políticas, ainda não consigo enxergar o espaço de acolhida e partilha “do abraço e do pão”. Líderes religiosos e políticos, na sua maioria, estão mais distantes do povo que o céu, e sentar-se à mesa e “comer o que lhes oferecerem” são tão poucos e poucas.

É assustador.

Se quebramos muito a aliança com Deus, hoje a relação se resume a uma barganha entre os cristãos e Deus.

Vivo na terra onde o Carnaval virou culto à prosperidade em nome de Cristo. Sair “ao encontro dos irmãos e irmãs”, só se for para comer nos melhores restaurantes da cidade onde os empobrecidos e empobrecidas não entram, a não ser que estejam empregados lá. Quem passou pela “cidadela” da “consciência cristã” armada no Parque do Povo, e teve “olhos de ver”, percebeu centenas de jovens sem acesso à comida cara das marcas que financiaram o evento. Que consciência cristã é essa propagandeada tendo como principal palestrante um pastor que defende a escravidão?

Entre o Carnaval e a Fraternidade, penso...

Se as centenas de vozes da avenida escutaram o chamamento do povo que “sustenta o céu”, teremos milhares no caminho. Como sugere o Papa Francisco, na Encíclica Fratelli Tutti, o amor universal é “um caminho necessário para garantir a boa convivência e a existência de todos”.

Novas relações entre humanos e não humanos serão mais que uma narrativa, serão nosso fazer diário, desaprendendo muitas coisas que nos foram ensinadas, respeitando outras cosmovisões e nos unindo como comunidade da terra.

E recomeço... Ligarei a TV para ver todos e todas juntos pelas ruas e praças resolvendo problemas reais dos que passam fome, dos que estão pelas ruas? Escutarei mais que um “Salvem a Caatinga!”, “Salvem a natureza e nos salvaremos!”? Verei a redução real do consumismo que mata meus parentes e minhas irmãs? Ou apenas faremos “mea culpa” durante a quaresma e depois... seguiremos até a prosperidade desejada?

Peço aos anjos, santos, encantados e orixás que abram nossos corações e que nossa boca cante a mesma cantiga que acorda a vida e faz renascer o chão.

 

Vanúbia Martins
Integrante da equipe de formação da CPT e agente pastoral da equipe de Campina Grande (PB)

 

15 de fevereiro de 2024

 

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