O Estado brasileiro admitiu que violou direitos e garantias na condução do processo penal relativo ao homicídio do trabalhador rural Manoel Luiz da Silva, durante julgamento ocorrido na quinta-feira (8), na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José, na Costa Rica.
Durante as alegações finais, representado pela Advocacia Geral da União (AGU), o Estado brasileiro pediu desculpas aos familiares da vítima. "O Estado brasileiro reconheceu a violação às garantias judiciais e à proteção judicial da vítima e seus familiares, visto que, embora o caso tenha ocorrido em 1997, o julgamento final dos dois acusados pelo assassinato somente se deu em novembro de 2013, tempo incompatível com uma duração razoável do processo", afirmou.
O depoimento de Manoel Adelino, filho de Manoel Luiz, expôs o sofrimento vivido pela família desde a data do crime, ocorrido em 19 de maio de 1997, no município de São Miguel de Taipu (PB).
"Esse gesto de reconhecimento da responsabilidade e pedido de desculpas é importante para o mundo inteiro saber o quão o Estado brasileiro foi negligente desde a investigação até a tramitação judicial do caso de Manoel Luiz. Foram 16 anos de sofrimento para a família, que sequer teve um desfecho no qual o mandante e o executor do assassinato fossem devidamente identificados e punidos", pondera Tânia Maria de Souza, coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de João Pessoa, na Paraíba.
A sentença dos juízes da Corte, porém, ainda não tem uma data definida para ser divulgada. "Agora vamos aguardar a decisão da Corte, mas desde já esperamos que o Estado brasileiro tome providências no combate à violência no campo e implemente melhorias em toda a política de Reforma Agrária no país", afirma Tânia.
Em nota, a Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 e a Dignitatis, representantes das vítimas no caso, lamentam que a formalização do reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro "tenha ocorrido apenas diante de uma Corte Internacional, e que não tenha sido acompanhada de uma delimitação precisa sobre os efeitos e limites do reconhecimento".
O texto ainda acrescenta que "as organizações questionam a decisão do Estado brasileiro de reconhecer as violações apenas na audiência na Corte Interamericana, quando poderia tê-lo feito antes, impedindo que se abrisse um espaço de diálogo real com as vítimas e suas representantes quanto aos limites desse reconhecimento, bem como sobre as medidas de não repetição". Leia a nota, na íntegra.
Julgamento de Almir Muniz
Na manhã da sexta-feira (9), a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o Estado brasileiro pela omissão e não responsabilização dos envolvidos no desaparecimento forçado do trabalhador rural Almir Muniz, ocorrido em 29 de junho de 2002.
Almir Muniz desapareceu após trafegar com seu trator em uma estrada que levava à Fazenda Tanques, no município de Itabaiana (PB). Ele era uma liderança na luta pela terra e fazia parte de um grupo de famílias que reivindicava a criação de um assentamento na região.
Arquivado em 2009, o caso sequer foi levado a julgamento e o corpo do trabalhador nunca foi encontrado. O trator utilizado por Almir foi encontrado quase uma semana depois, no estado de Pernambuco, em meio a um canavial e coberto de lama, dando claros indícios de tentativa de ocultação de provas.
Assim como no caso de Manoel Luiz, as organizações peticionárias da ação na Corte Interamericana de Direitos Humanos denunciam inúmeras falhas e omissões na investigação do desaparecimento de Almir Muniz. A ação é fruto de mobilização da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Justiça Global, Dignitatis e CAMT Advogados Associados, que defendem que o Brasil tome medidas efetivas no combate à violência no campo em todo o território nacional e repare de forma material e imaterial as famílias das vítimas.
Antes do desaparecimento da liderança, foram denunciadas por diversas vezes as violências sofridas pelas famílias das comunidades. Segundo relatos, havia agressões físicas e psicológicas por parte dos capangas da fazenda, que eram comandados pelo policial civil, Sérgio de Souza Azevedo.
Animais foram mortos, tiros eram constantemente disparados durante a madrugada para amedrontar as famílias, casas foram destruídas, crianças eram impedidas de ir à escola, entre tantas outras situações de intimidação. "As famílias saíam de casa toda noite para dormir na mata e voltavam de madrugada para os capangas não perceberem que estavam retornando. Isso era medo de serem agredidas, violentadas. Se formos escutar todas as histórias, é incalculável o drama que as famílias passaram", recorda João Muniz, primo de Almir e agente pastoral da CPT João Pessoa.
Segundo nota divulgada pela Justiça Global, "o julgamento do caso Almir Muniz pela Corte Interamericana será o primeiro caso do Brasil envolvendo o desaparecimento forçado de pessoas no contexto da luta pela reforma agrária e um dos primeiros sobre essa forma de violação de direitos humanos no período pós-88."
A coordenadora da CPT João Pessoa, Tânia Maria, ratifica que "não é normal existir um caso em que um trabalhador está desaparecido há mais de 20 anos e o Estado não se movimentar em nenhum momento para tentar trazer uma solução para a família e a sociedade como um todo".
Caso Manoel Luiz
Manoel Luiz da Silva foi assassinado no dia 19 de maio de 1997, em São Miguel de Taipu (PB). Ele foi baleado por capangas da Fazenda Engenho Itaipu, de propriedade de Alcides Vieira de Azevedo. Outros três trabalhadores que acompanhavam Manoel Luiz presenciaram o crime, mas não ficaram feridos.
Apesar da grande repercussão à época, foram identificadas diversas falhas e omissões durante a investigação policial. Em 2003, dois capangas foram levados a júri, mas acabaram sendo inocentados - o terceiro capanga, apontado como autor dos disparos, nunca foi encontrado. O fazendeiro sequer fora investigado, apesar das denúncias de violência contra ele.
O assassinato de Manoel Luiz impôs um dano irreparável à sua família. A esposa, Edileuza Adelino de Lima, faleceu em 2005 após sofrer de depressão e alcoolismo desde a morte do marido. O filho do casal, Manoel Adelino de Lima, que na época do assassinato tinha quatro anos, foi criado por parentes e não teve condições de concluir os estudos.
"Eu não tenho recordação do meu pai porque eu era muito pequeno quando ele morreu. Mas a perda dele impactou muito na minha vida, na vida da minha mãe. Eu precisei começar a trabalhar com nove anos de idade, por isso não tive a oportunidade adequada de estudar. E depois que minha mãe faleceu, eu fui criado por tia, tio, avó", relata Manoel Adelino, que, recentemente, retornou à região após viver seis anos em Santa Catarina.
Hoje com três filhas, Manoel Adelino espera que a morte do seu pai não seja em vão e que, de alguma forma, a justiça seja feita. "Eu espero que o Brasil cumpra com suas responsabilidades. Não só diante da morte do meu pai, mas de várias outras mortes que ocorreram injustamente. Eu carrego muita dor em pensar que uma pessoa que tirou a vida de outra nunca pagou pelo que fez", afirma.
Conquista da terra
O sangue de Manoel Luiz e Almir Muniz precisou ser derramado para que o direito a um pedaço de terra fosse garantido.
Desde 1998, a Fazenda Taipu, área então reivindicada pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais acampados na época, dá lugar ao assentamento Novo Taipu, em São Miguel do Taipu.
Em 2004, a Fazenda Tanques, no município de Itabaiana, foi desapropriada para fins de Reforma Agrária. O assentamento recebeu o nome de Almir Muniz.
Fotos: Ruggeron Reis/Justiça Global