Em evento que antecedeu a Conferência da FAO para a América Latina e o Caribe, organizações camponesas e indígenas exigiram o cumprimento de políticas de reforma agrária, acesso à terra e direito à alimentação
Por Verena Glass
Brasília - Apesar dos esforços no âmbito da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), os Estados-membro da ONU pouco têm avançado na implementação de políticas concretas a respeito de questões como reforma agrária, acesso à terra e direito à alimentação.
Essa é a avaliação que organizações camponesas e indígenas que participaram da Conferência Especial para a Soberania Alimentar, os Direitos e a Vida, organizada pelo Comitê Internacional de Planejamento das ONGs e OSCIPs para a Soberania Alimentar (CIP), ocorrida de 10 a 13 de abril. O evento antecedeu a 30ª Conferência Regional da FAO para a América Latina e o Caribe, que ocorre até o próximo dia 18 na capital federal.
Segundo os movimentos, as diretrizes contidas na declaração da Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR), ocorrida em março de 2006 em Porto Alegre, estão longe de serem aplicadas. O direito à alimentação e o acesso à terra enquanto direitos humanos, além do reconhecimento dos territórios tradcionais de forma mais plena, continuam sofrendo rejeições dos Estados por contariarem o direito à propriedade e a chamada "reforma agrária de mercado" - mecanismos de facilitação de compra de terra no lugar de políticas de desapropriação.
Logo após a CIRADR, União Européia e Estados Unidos tentaram reverter a posição da FAO favorável à retomada do debate da reforma agrária enquanto política de combate à fome e à pobreza, recolocando na pauta a estratégia de mercado (compra e venda) para distribuição da terra. Ainda em 2006, a União Européia promoveu um debate sobre o tema, que só não implicou em retrocessos nas diretrizes da FAO, segundo o coordenador da campanha internacional pela reforma agrária da Via Campesina, Rafael Alegria, graças às pressões das organizações camponesas, em especial as africanas.
"Reiteramos que a FAO e os governos devem dar seguimento, de forma efetiva, comprometida e eficaz, aos compromissos adotados na Declaração da Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, CIRADR. Não é aceitável que o seguimiento se limite ao financiamento de uma série de estudos, monitoramentos e consultas de ordem técnica", coloca o documento final (veja a íntegra, em Espanhol) da conferência da CIP.
Na América Latina e no Caribe, o aumento do preço dos itens da cesta básica acabou dando visibilidade ao papel do pequeno agricultor enquanto produtor de alimentos nos últimos anos. De acordo com Fernando Soto, chefe da Subdireção de Assistência para as Políticas da FAO, a despeito do crescimento da região, a região ainda tem 190 milhões de pessoas na pobreza extrema, principalmente entre as populações rurais e indígenas.
Dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) apontam que dos 36,1 milhões de indigentes da região, pouco mais de 50% vivem no campo. A mecanização da agricultura e a biotecnologia fizeram crescer a concentração de terras, na opinião de Soto. Nos últimos anos, só na Argentina houve perda de cerca de 400 mil unidades produtivas.
Dados como esse corroboram a avaliação dos movimentos sociais sobre os impactos da crescente hegemonia do capital multinacional na organização territorial rural da América Latina, que tem substituído o antigo latifúndio improdutivo pelas modernas monoculturas intensivas.
Também faz parte deste quadro o recente fenômeno da "estrangerização" das terras (compra por empreendedores estrangeiros) em vários países da região, como Brasil, Argentina, Uruguai e Colômbia.
O representante da FAO reconheceu ainda que as diretrizes da organização ligada à ONU não tem poder vinculante e não obrigam os governos a adotá-las. Afirmou, porém, que o órgão tem tentado reforçar a implementação da agenda acordada na CIRADR numa série de eventos nos últimos dois anos. Ele reconhece, porém, que a maior parte das conquistas nesse campo se deve à pressão das organizações da sociedade civil.
Soto relata que a FAO deve iniciar um novo projeto de aproximação com os movimentos sociais, que inclui intercâmbios de experiência e capacitação, divulgação dos resultados da CIRADR e a criação de espaços de diálogo com os governos para impulsionar a reforma agrária e o desenvolvimento rural.
Apesar desta aproximação, os movimentos ainda mantém uma postura de descrença com relação à efetividade da FAO nas negociações com os governos dos países-membros da ONU. Segundo o representante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Egídio Brunetto, até mesmo gestões progressistas, como a brasileiro, não têm encaminhado as diretrizes acordadas na CIRADR, optando prioritariamente por políticas de compensação social em que o "Fome Zero [é aplicado] no lugar da distribuição das terras".
Jorge Soto reconhece que o órgão é deficiente, mas defende que, apesar da subordinação do órgão às decisões políticas dos Estados-membro, a FAO tem a capacidade de fazer as denúncias necessárias e intermediar o diálogo entre sociedade civil e governos. É o que será colocado à prova nesta semana, quando os resultados do evento da sociedade civil serão apresentados à 30ª Conferência Regional da FAO para a América Latina e o Caribe.
15/04/2008