Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Usina São José, produtora de etanol e açúcar em Igarassu (PE), tenta desde janeiro de 2023 tomar posse de 340 hectares arrematados em leilão judicial para ampliar sua área de canavial. O Engenho São Bento, como é denominada a área, é ocupado há cerca de 40 anos por famílias que vivem do cultivo de alimentos.
 
POR POLIANA DALLABRIDA | EDIÇÃO BRUNA BORGES
 
EM ITAMBÉ (PE), 43 famílias vivem na iminência de serem expulsas da comunidade Engenho São Bento, área onde vivem e produzem há quase quatro décadas. A Usina São José, uma das maiores produtoras de açúcar e etanol do Nordeste e fornecedora de empresas como Ambev, Raízen e Shell, pretende expandir sua produção de cana-de-açúcar no local. 

O terreno de 340 hectares ocupado pelas famílias na Zona da Mata Norte de Pernambuco foi arrematado em leilão judicial em junho de 2022. A área foi colocada à venda com o intuito de regularizar os débitos trabalhistas da então dona do Engenho São Bento, a Usina Maravilhas, que declarou falência em 2012 e deixou centenas de trabalhadores desamparados. Ao menos 27 das 43 famílias do Engenho São Bento são compostas por ex-trabalhadores da Maravilhas. Destes, 17 ainda não foram indenizados. 

Desde janeiro de 2023, ao menos seis audiências de conciliação foram realizadas na tentativa de buscar soluções ao conflito fundiário instalado no Engenho São Bento. Além de representantes das famílias, órgãos como a Comissão Pastoral da Terra, o Ministério Público de Pernambuco e a Defensoria Pública de Pernambuco acompanham o caso.

Comunidade Engenho São Bento onde 43 famílias vivem e produzem alimentos há quase quatro décadas. Área foi arrematada pela Usina São José em leilão e agricultores tentam evitar expulsão (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)

A última audiência judicial foi realizada no dia 2 de julho. Representantes da São José e da 3R Empreendimentos e Participações Societárias, empresa do mesmo grupo e responsável formal pela aquisição da área, apresentou sua mais recente proposta aos moradores: mantê-los em suas casas no meio do canavial da empresa, “mediante construção de cinturão a evidenciar área dos moradores e o que seria de cultivo da usina”, indenizá-los pelo valor de R$ 1 mil por hectare pelas áreas cultivadas, que passariam a ser utilizadas exclusivamente para o cultivo da cana pela usina, e contratá-los para compor a mão de obra. 

Além do valor oferecido pela usina, considerado baixo, os moradores alegam que a empresa desconsidera parte das áreas cultivadas, que estariam em período de descanso quando o oficial da Justiça fez a avaliação do imóvel. “Todo o canto tem roça plantada. Eu nasci e me criei aqui, e não quero sair do meu canto, não”, afirma Dária Fernandes de Oliveira Santos, de 65 anos.

“Uma solução consensual não foi possível porque a empresa nunca se disponibilizou realmente em chegar a um acordo”, avalia Leonardo Caribé, promotor do Ministério Público de Pernambuco, que acompanha o caso. “O único acordo que eles entendem viável seria indenizar os trabalhadores para que eles deixem a terra”. 

Apesar das diversas tentativas de contato, a Usina São José não respondeu os questionamentos enviados pela Repórter Brasil. O espaço segue aberto para manifestações futuras.

Tratores, seguranças e advogados

O Engenho São Bento, que tinha avaliação inicial de R$ 6,7 milhões no leilão, acabou sendo arrematado por R$ 2,7 milhões. A presença de famílias e casas na área é descrita nos documentos do leilão judicial. “Ou seja, a São José, através da 3R, comprou essas terras mesmo sabendo que tinha moradores”, ressalta José Plácido da Silva Junior, coordenador da Comissão Pastoral da Terra no Nordeste, entidade que atua na defesa das famílias do local. 

Em janeiro de 2023, seguranças, advogados e tratores entraram na área para tentar ocupar o terreno que foi comprado pela usina sucroalcooleira. “Aqui era uma tranquilidade. De um dia para o outro, veio esse pessoal todo. Trouxeram até um trator de esteira para derrubar as casas. Foi uma coisa muito triste, mas o povo se uniu”, explica Dária Santos, que vive na região há 40 anos. Após a tentativa de retirada das famílias, os integrantes do Engenho São Bento se organizam para impedir sua expulsão da terra. 

“Eles devem ter pensado que, como o povo do São Bento não tem advogado, não paga sindicato, não tem Sem Terra, é um povo evangélico que não faz confusão, seria fácil chegar aqui com trator e derrubar as casas. Quando eles chegaram, a gente não tinha nem advogado. Dias depois, na primeira audiência no Fórum de Itambé, estávamos com seis advogados para defender a gente”, explica Valdeci Vicente dos Santos, esposo de Dária, que foi o primeiro agricultor a receber o documento do oficial da Justiça sobre a tentativa de retirada das famílias.

Fornecedora de gigantes do setor sucroenergético

Uma das maiores processadoras de cana do Nordeste, a São José é fornecedora de empresas como Ambev, Raízen, e dos postos das bandeiras Shell e Petrobras – este último administrado pela Vibra. Em 2023, 45% do faturamento da usina se concentrou nas vendas para Ambev e Raízen, segundo demonstrações financeiras publicadas pela empresa.

Menos conhecida que a Ambev, maior fabricante e distribuidora de bebidas do Brasil, a Raízen é uma gigante do setor de biocombustíveis. Na safra 2022/2023, a companhia, criada a partir de uma joint venture entre a petroleira americana Shell e a brasileira Cosan, foi responsável por 30% do comércio global de etanol. A empresa também é responsável pela distribuição e venda de combustíveis em postos da marca Shell no Brasil e na Argentina. Além do abastecimento de automóveis, o combustível produzido pela Raízen é vendido para companhias aéreas.

O setor da aviação vem aplicando sua busca por combustíveis mais sustentáveis. Em janeiro de 2024, o então presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, se reuniu com representantes de usinas do Nordeste para discutir a produção de combustível de avião (SAF) a partir do etanol produzido pela indústria sucroalcooleira da região.

Políticas socioambientais para fornecedores

Todas as companhias mencionadas possuem extensos materiais sobre políticas socioambientais e critérios que devem ser seguidos por fornecedores em relação ao respeito aos direitos humanos e estabelecimento de diálogo com comunidades impactadas por seus empreendimentos. 

Em seu Código de Conduta para Fornecedores, a Raízen afirma esperar dos seus parceiros de negócios a “manutenção de um diálogo pertinente e adequado com as comunidades da área de influência de sua operação” e que “se preocupa com ações que visem a identificação, monitoramento e mitigação dos possíveis impactos sociais junto a esse público”. 

A Ambev, por sua vez, é ainda mais clara em relação a conflitos fundiários. Em sua Política Global de Fornecimento Responsável, a companhia afirma que “os Parceiros de Negócios devem conduzir a devida análise e diligência em torno dos direitos e títulos fundiários durante o desenvolvimento de novas oportunidades de negócios” e que devem “buscar consentimento livre, prévio e esclarecido, e dispor de um mecanismo de reclamação para resolver quaisquer disputas sobre títulos fundiários”.

No Guia de Conduta Ética para Fornecedores, a Petrobras afirma que seus fornecedores se comprometem a “comunicar às comunidades do entorno as atividades que impactem seu cotidiano, de forma a minimizar impactos/risco” e os encoraja a “estabelecer relacionamento com as comunidades situadas na área de abrangência, com base no diálogo contínuo e transparente”.

Em seu Código de Conduta para Fornecedores, a Shell afirma “reconhecer que o diálogo e o envolvimento regular com as partes interessadas são essenciais” e pede que seus fornecedores, nas interações com funcionários, parceiros comerciais e comunidades locais, “procure ouvir e responder a eles de forma honesta e responsável”.

Já o Manual de Fornecedores da Vibra reforça que a empresa e seus fornecedores devem “zelar pela segurança das comunidades” onde atuam e “mantê-las informadas sobre impactos e/ou riscos eventualmente decorrentes” das suas atividades.

A Repórter Brasil apresentou o conflito fundiário do Engenho São Bento às empresas e as questionou sobre seus critérios para seleção de fornecedores.

A Ambev afirmou que “não é parte no caso” e que ainda não há decisões finais sobre o processo. “Caso seja comprovado algum fato que não condiz com as nossas políticas, tomaremos as ações pertinentes”, diz o posicionamento da empresa.

A Raízen afirmou que “acompanha processos judiciais e avalia constantemente a situação de seus parceiros de acordo com o seu código de conduta de fornecedores” e que “reforça que toma suas decisões de negócio pautadas pela ética, integridade e compliance”.

Procurada, a Shell afirmou que o assunto deveria ser tratado junto à Raízen, empresa licenciada da marca Shell e responsável pelos postos e distribuição de combustíveis.

Os postos da bandeira Petrobras são administrados pela Vibra, empresa de capital aberto. Procurada, a empresa afirmou que tem uma política rigorosa quanto à violação de direitos humanos. “Tendo em vista as notícias divulgadas, vamos apurar os fatos, e havendo indícios de potenciais irregularidades que violem nossos princípios e preceitos de integridade empresarial e respeito à vida humana, tornando crítica a relação contratual, o compliance em conjunto à governança da companhia tomarão as medidas previstas.”

As respostas podem ser lidas na íntegra aqui.

Usina possui principal selo de “boas práticas” do setor

O histórico de ocupação do Engenho São Bento é descrito em um relatório produzido pelo Instituto de Terras de Pernambuco (Iterpe) em março de 2023. Segundo o laudo técnico, as 43 famílias possuem entre 1 e 9 hectares destinadas ao cultivo de produtos como macaxeira, milho, feijão e inhame. Além de plantarem para consumo próprio, as famílias comercializam a produção em feiras locais e para compradores regionais. A equipe do Iterpe realizou o levantamento dos cultivos de todas as famílias, registrando que a área efetivamente plantada pelos moradores é maior do que o considerado pela Justiça no processo – diferença essa que altera o montante da indenização aos ocupantes do Engenho São Bento. 

A Usina São José questiona a autenticidade do laudo e considera a disparidade entre área plantada e a considerada pela Justiça como principal fator. “O relatório do Iterpe foi produzido após uma reunião de conciliação com o Ministério Público, e a usina concordou com a produção desse laudo. Agora, quando o laudo saiu desfavorável para ela, a usina diz que o laudo é fraudulento, que não é isento”, diz Jayme Asfora, presidente da Comissão Estadual de Acompanhamento dos Conflitos Agrários de Pernambuco e secretário executivo de direitos humanos da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco. 

Usina São José, sediada em Igarassu (PE), tem o selo Bonsucro, principal certificação de cana-de-açúcar do mundo (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)

Apesar do conflito fundiário, a São José segue com o selo da Bonsucro (sigla para Better Sugarcane Initiative), organização com sede em Londres e detentora do principal programa de certificação de cana-de-açúcar do mundo. Em seus materiais de divulgação da certificação, a Bonsucro afirma que “ao obter um certificado, você poderá melhorar sua imagem, atingir metas de compras sustentáveis e estabelecer parcerias para resolver questões de sustentabilidade conjuntamente”.

A Bonsucro no Brasil foi apresentada ao problema fundiário envolvendo o Engenho São Bento pela organização sem fins lucrativos Oxfam Brasil, que apontou violações, pela Usina São José, aos critérios de certificação e Código de Conduta da entidade.

Em resposta à Repórter Brasil, a Bonsucro afirmou que a Usina São José é certificada desde 2017, sendo recertificada em fevereiro de 2023, e que “a fazenda onde ocorre o atual caso fundiário não foi incluída no escopo da certificação”. Uma nova auditoria – dessa vez para manutenção do selo – foi realizada em março deste ano. Na ocasião, uma avaliação de risco socioambiental para todas as áreas fora do escopo de certificação foi realizada pela Bonsucro. Os temas, no entanto, se restringiram aos seguintes temas: trabalho infantil, trabalho forçado, quantidade e qualidade da água e conversão de ecossistemas naturais. 

“Desde que soubemos do caso da Usina São José no ano passado por meio da Oxfam Brasil, estivemos conduzindo diversas reuniões com a Oxfam Brasil e com a Usina São José para entender melhor a situação e o que está sendo feito para resolver o problema. Em todas as ocasiões, a equipe da Usina São José demonstrou disposição em colaborar com a Bonsucro e com todas as partes interessadas envolvidas no caso fundiário”, disse a Bonsucro.

“Embora a Usina São José tenha políticas adequadas de devida diligência para detectar tais riscos, uma vez que adquiriu a área através de leilão governamental, eles erroneamente acreditaram que não precisavam examinar esta transação do ponto de vista de direitos humanos e agora estão trabalhando para remediar esta situação”, completa a organização. O posicionamento completo da organização pelo ser lido aqui

Para a Oxfam Brasil, no entanto, a Usina São José não vem respondendo à comunidade ou aos atores da sociedade civil sobre o caso. “O esforço de diálogo da empresa acontece apenas judicialmente”, avalia Gustavo Ferroni, Coordenador de Justiça Rural e Desenvolvimento da instituição. “Também avaliamos que a usina não fez nenhuma devida diligência. Mesmo sabendo que havia famílias na área, a usina não se preocupou com as consequências”, pontua Ferroni.

Histórico de falências e ocupações

O conflito fundiário no Engenho São Bento não é um caso isolado em Pernambuco. Áreas como Barro Branco, Fervedouro, Engenho Una e Batateiros são apenas alguns exemplos de antigos engenhos abandonados por usinas canavieiras em bancarrota. Depois das falências, essas áreas passaram a ser cultivadas por ex-trabalhadores e outros posseiros.

Produtora e processadora de cana-de-açúcar, a Usina Maravilhas se instalou em Itambé nos anos 1980, durante um período de expansão da produção de etanol no Brasil por meio de incentivos governamentais do Programa Nacional do Álcool, o Proálcool. Em 2012, a companhia entrou em falência, demitindo dezenas de trabalhadores. 

“Em muitos engenhos, as famílias estão lá há três, quatro gerações. A usina faliu, não pagou direitos trabalhistas, não ofereceu trabalho, e essas famílias passaram a cultivar nas terras da usina”, explica José Plácido, da CPT Nordeste. “São usinas que faliram há 10, 20 anos. Em alguns casos, as terras das usinas foram incorporadas [por outros setores], e se deu um processo de expulsão das famílias”. 

No estado, cerca de 40 usinas estavam em funcionamento na década de 1980. “As que dão problemas, que deixam conflitos fundiários, são as que foram à falência. As usinas em operação em Pernambuco, que são cerca de 10, não possuem conflitos fundiários em suas terras. Possuem, em geral, uma relação tranquila com a comunidade no entorno”, avalia Asfora, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de PE. “É um problema, portanto, localizado em um número minoritário de empresas do setor. É benéfico para todos que exista paz no campo. Além disso, há terra suficiente para todo mundo”, completa.

Iterpe e Incra estudam a possibilidade de incluir o Engenho São Bento em programas de reforma agrária. Na audiência do dia 2 de julho, no entanto, a São José já declinou da proposta apresentada pelo órgão federal de iniciar estudos para a compra do Engenho São Bento para destinação à reforma agrária. 

 

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