Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Atualmente muito se discute acerca da necessidade de diversificação da matriz energética mundial, ante a proximidade da escassez de petróleo e da preocupação crescente acerca do aquecimento global

* Fernando G. V. Prioste

Nesse contexto o Brasil figura como um dos expoentes mundiais devido à produção de álcool combustível derivado da cana de açúcar.

Com o objetivo de consolidar-se mundialmente na produção de energia “limpa” e renovável, bem como visando incrementar as exportações o Governo Federal cada vez mais subsidia as usinas canavieiras na produção de álcool combustível.

Entretanto, não se discute a contento nos grandes meios de comunicação, quais os efeitos danosos para o meio ambiente, decorrente da grande produção brasileira de cana de açúcar; como as usinas canavieiras dominam o mercado brasileiro de comercialização de álcool combustível, nem mesmo a opressão sofrida por milhares de trabalhadores e trabalhadoras, rurais e urbanos(as), decorrente da histórica sistemática de produção das usinas canavieiras.

É sabido que há mais de quatrocentos anos Pernambuco produz grande parte da cana de açúcar transformada em álcool combustível e em açúcar no Brasil. Contudo, é pouco divulgado que os incentivos às usinas canavieiras pernambucanas atendem mais a interesses particulares dos produtores, indiretamente contribui com a monocultura desastrosa ao meio ambiente, com o desmatamento da mata atlântica, com a poluição dos rios pernambucanos decorrente de sistemáticos derramamentos de vinhoto, com a precarização do trabalho, a concentração de renda, bem como ajuda a consolidar grandes latifúndios neste estado historicamente oligárquico.

Contudo, nesta semana o Governo Federal, através da Gerência Regional do Patrimônio da União (GRPU) em PE, inovou no tratamento dado às usinas canavieiras de Pernambuco e abriu novos caminhos para a distribuição de terras, de riquezas, de conservação do meio ambiente e de emancipação das populações tradicionais ribeirinhas.

A GRPU, órgão estadual responsável pela administração de terras da União, negou pedido de revigoração de aforamento pleiteado pela Usina Trapiche S/A. Tal negativa importou em reconhecer que as terras da União, que estavam cedidas as Usina Trapiche desde 1889 por meio de um contrato de aforamento, devem retornar à administração da União e serão destinadas à criação de uma Unidade de Conservação Federal, do tipo Reserva Extrativista de Desenvolvimento Sustentável.

Essa decisão do Governo Federal importou em retomar cerca de 1500 hectares de terras que compreendem parte de cinco engenhos, áreas de mangue e 17 ilhas que compões o estuário do rio Sirinhaém, no município de Sirinhaém, litoral sul de Pernambuco.

O respaldo jurídico.

A Usina Trapiche era foreira da área por ser a última sucessora da antiga Companhia Agrícola Mercantil de Pernambuco, primeira foreira da área em 1889.

O processo administrativo aberto em decorrência da concessão do aforamento já tinha um Termo de Reconhecimento de Commisso, leia-se caducidade da concessão do aforamento, desde 20 de março de 1926. Apenas em oito de setembro 1972 foi requerida a renovação do aforamento, pedido esse flagrantemente extemporâneo. Ainda assim, em 20 de setembro de 1972 a antiga DSPU, órgão então responsável pela administração do patrimônio da União, novamente publicou uma declaração de caducidade objetivando reabrir prazo para que se fizesse a revigoração. Mesmo diante dessa manobra os procedimentos previstos e requeridos pela DSPU para revigoração do título não foram realizados até a presente data.

Esses fatos por si já seriam bastante para a negativa da renovação do aforamento, posto que o silêncio da União não basta para caracterizar uma revigoração tácita, e os procedimentos que deveriam ser adotados não se realizaram por culpa da própria foreira que não atendeu aos requerimentos feitos. Entretanto esse não foi o maior motivo legal ensejador da retomada das áreas pela União.

A negativa da revigoração de aforamento tem como maior respaldo jurídico o art. 120 do decreto n° 9.760/1946, a saber:

Art. 120. A revigoração de aforamento poderá ser negada se a União necessitar do terreno para serviço público, ou, quanto às terras que trata o art. 65, quando não estiverem as mesmas sendo utilizadas apropriadamente, obrigando-se, nesses casos, à indenização das benfeitorias por ventura existentes.

Utilizando desse dispositivo legal, entre outros, a GRPU, atendendo a pedido do IBAMA para a criação de uma Unidade de Conservação Federal, do tipo Reserva Extrativista de Desenvolvimento Sustentável, negou a revigoração do aforamento argumentando que os atuais entendimento a cerca do serviço público abarcam o necessário ao desenvolvimento de projetos públicos, sociais ou econômicos de interesse nacional, à preservação ambiental e à proteção de ecossistemas naturais. Assim, o pedido feito pelo IBAMA requisitando a área foi fundamental para caracterizar a prevalência do interesse público sobre o particular, embasado a decisão inédita.

O início da resolução de um conflito.

A retomada das terras pela União abre caminho à resolução de um conflito que se arrasta a cerca de vinte anos.

A Usina Trapiche por ser foreira da área das 17 ilhas que compõe o estuário do Rio Sirinhaém iniciou um processo de expulsão de populações tradicionais de pescadores que residiam nas ilhas há mais de setenta anos. Para conseguir expulsar as famílias 56 que viviam na área a usina utilizou-se de estratégias ilegais ameaçando a vida dos pescadores por intermédio de pistoleiros, destruindo os meios de sobrevivência dos pescadores através da destruição de roçados de subsistência e das arvores frutíferas lá há muito estavam plantadas.

Para dar uma conotação de legalidade ao procedimento de expulsão dos pescadores a Usina Trapiche realizava “acordos” em que os pescadores eram obrigados a deixar as ilhas em troca de casas na cidade de Sirinhaém. Além das casas não atenderem aos interesses dos antigos moradores das ilhas, estes acabaram ficando alijados de seu meio de sobrevivência, a pesca e o cultivo da terra, engordaram êxodo rural e as filas dos pobres nas cidades.

Hoje apenas duas famílias ainda resistem bravamente ao processo de expulsão desencadeado pela usina!

A criação da reserva extrativista na área retomada pela União é fruto da mobilização de entidades da sociedade civil e dos pescadores das ilhas de Sirinhaém, que protocolaram no IBAMA um pedido para a criação da mesma com mais de 230 assinaturas. Mesmo a iniciativa para o cancelamento do aforamento não foi uma atitude de iniciativa do GRPU, deu-se através do incansável e persistente trabalho de entidades de direitos humanos e da resistência das populações tradicionais.

A criação da reserva vai possibilitar a sobrevivência digna de diversas famílias de pescadores, a recomposição da mata atlântica e uma maior vigilância contra os constantes derramamentos de vinhoto no rio Sirinhaém, pelas diversas usinas que beiram o seu leito, além de contribuir para a reforma agrária, a amenização das desigualdades sociais e a realização de um estado menos injusto.

Esse foi um passo muito importante, mas absolutamente não é o fim da luta. Deve-se ainda contar com o IBAMA para a efetiva criação da Reserva Extrativista de Desenvolvimento sustentável, da manutenção da acertada posição por parte do GRPU e da concordância do judiciário.

Essa tomada ideológica de atitude por parte do Estado, indo contra interesses das usinas que supostamente alavancam o “límpido” desenvolvimento energético alternativo brasileiro, dão a entender que o governo, apesar de não ser pelo povo, ainda abre espaços para suspiros de um outro mudo possível. * Advogado da Terra de Direitos

 

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