Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Em 1942, Annemarie Baronesa Conrad (nome de solteira de Ana Maria Primavesi) era a mais nova formanda na faculdade de Agronomia na Universidade de Boku, na Áustria. Aos 22 anos, ela tinha motivos para celebrar: vencera os obstáculos que o Reich alemão impunha aos que insistiam em estudar e estava prestes a realizar seu Doutorado.
Virgínia Mendonça Knabben
Brasil de Fato
 
 
 
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Em 1942, Annemarie Baronesa Conrad (nome de solteira de Ana Maria Primavesi) era a mais nova formanda na faculdade de Agronomia na Universidade de Boku, na Áustria. Aos 22 anos, ela tinha motivos para celebrar: vencera os obstáculos que o Reich alemão impunha aos que insistiam em estudar e estava prestes a realizar seu Doutorado. 

Em seu percurso como estudante, uma das pouquíssimas mulheres no curso de agronomia, Annemarie estudou com professores brilhantes, capazes de formar uma geração apta a lidar com a agricultura em todos os habitats do planeta. Ela persistiu e não se deixou frear pelas inúmeras perdas que sofreu decorrentes da Guerra que marcaria a humanidade. Da dificuldade surgia a oportunidade: assim ela foi sendo enviada de um lugar a outro pela Europa, exigência nazista, na tentativa de desestimulá-la. Não adiantou, e ela não apenas ia, mas sobretudo aprendia, aprendia muito, e se fortalecia.

Sua inteligência era notável e seu brilhantismo também se baseava no fato de que lia muito, o que lia era prontamente memorizado, e tudo se relacionava. Essa capacidade de unir saberes, de conectar fatores, de entrelaçar relações e ver o fenômeno como um todo foram tecendo nela uma rede de compreensão profunda sobre a ecologia, principalmente sobre a dinâmica de vida do solo, sua maior paixão. 

Certa vez, em viagem à Europa Central, a universidade a enviou para fazer estudos sobre geada. Lá ela conheceu as plantações na Bélgica e nos vales dos rios Mosela (entre os limites da França, Luxemburgo e Alemanha), Main (Alemanha) e Reno (Alemanha e França), com suas adegas enormes e diariamente borrifadas com água para manter a umidade do ar. Eram enormes depósitos de vinhos de 120 anos de idade, que aguardavam em garrafas empoeiradas a sua vez de serem degustados. Muitas dessas adegas de vinho ficavam com certos fungos em suas paredes que influenciavam divinamente no sabor final da bebida. Foi nesse período que ela adquiriu a habilidade de detectar o tipo de solo em que foi plantada a uva de cada vinho europeu. Ao degustá-lo, ela percebia no fundo em que tipo de solo fora cultivado.

Aquele período a colocou frente a muitos desafios. Ainda na faculdade, ela voluntariou-se a buscar documentos no Conselho Nacional de Pesquisa em Berlim-Dahlem. Todos sabiam que haveria um bombardeio e por isso ninguém quis ir. Ela foi. Disse: “Todos morrem na hora determinada por Deus, e se era para eu morrer, morreria também em Viena. Se não era para eu morrer, até debaixo de uma chuva de bombas eu iria escapar. Era Deus quem guiava os meus caminhos.” Quando chegou, foi prontamente avisada pelo recepcionista do hotel sobre o bombardeio iminente e que poderia ir para o abrigo anti-bombas que havia sido recém-construído. Ela não quis ir.

Como conseguiria pegar os documentos depois do bombardeio? Não saberia voltar sem ônibus ou metrô, tudo estaria destruído. Seguiu para o endereço, pegou os documentos e o bombardeio aconteceu, matando a população local e as pessoas que se escondiam no tal abrigo anti-bombas. A estimativa foi de cerca de 5.000 vidas perdidas. Ao chegar no hotel, o recepcionista se desesperou. Começou a gritar e a se esconder atrás do balcão, achando que ela tinha ido para o abrigo e morrera junto aos outros. Ela percebeu, e disse: “Olha, o senhor pode sair daí de trás do balcão porque eu não sou um espírito, estou viva”. 

Ao fim da Guerra, a região da Áustria onde ela Morava ficou sob ocupação inglesa, e todos que poderiam representar uma ameaça a essa presença estrangeira foram presos. O pai de Annemarie, Sigmund, foi um deles. Ela também. Nove meses num campo de concentração inglês, (não nazista), como forma de “quebrar” a força de qualquer resistência à nova ordem.

Estas são apenas duas passagens de sua biografia, uma história de vida que conta sobre perdas e dores, todas elas transformadas em força. Imbuída de uma missão íntima, solitária e visionária, Annemarie era como um soldado que não tomba em batalha.

Quando relembro sua passagem pelo Brasil, encarando aqueles que a desacreditavam e tentavam intimidá-la em seus ensinamentos, digo que ela tirou de letra, porque já havia vivido o pior que a humanidade poderia produzir. Num jogo de egos, a “Guerra” se fazia presente mais uma vez, com outra vestimenta.

Ana persistiu. Viajou, escreveu. Ensinou, desbravou, iluminou a mente das pessoas. Sobretudo as encantou porque conseguiu reconectá-las à natureza com sua fala descomplicada, carregada de humildade. Era pura agroecologia, a ciência da humildade, uma palavra que em sua origem vem de “húmus” e significa “terra”. 

Assim, de pouco em pouco, numa época sem celular, internet e redes sociais, ela foi irradiando seu conhecimento e conseguiu transitar entre as fronteiras que se estabeleceram no meio agrário. Na “Guerra” que nem sabia que existia e que enfrentou “simplesmente” ensinando o que sabia, ela angariou seu próprio exército, com soldados munidos de enxadões e livros de sua autoria, lutando pela vida do solo.

Foi ficando conhecida com o passar das estações, a seu tempo, como é na natureza. Aqui e ali, no boca a boca de quem a assistia nas palestras, cursos, assistências técnicas, nas visitas e compromissos de assessoria, ela ecoava. O que ela ensinava dava certo, era simples, dependia de um olhar mais atento. Perguntar o “por que aconteceu” antes do “como resolver” era o óbvio que ninguém enxergava. 

Esse exército de pessoas que a segue percorre todas as terras, sem fronteiras. Entre as fronteiras há apenas gente, como ela dizia. E toda gente precisa de água, alimento, abrigo, cuidado. Essa gente é uma só, gente que hoje se alimenta de seus saberes e que não tem (ou tem) ideia de como Primavesi permeia cada migalha de pão, cada folhinha de hortaliça, cada alimento colhido, deixando para trás um solo vivo, e não exaurido. Tirando da terra o alimento, devolvendo ao solo o que ele precisa para ser sempre fonte de renovação de vida.

Isso é agroecologia, a agroecologia da Primavesi. É preservar o micro, observar o detalhe, ater-se ao pequeno, valorizar o simples, acreditar no invisível sob os nossos pés. De baronesa a camponesa, e com este título de nobreza passando despercebido aqui nesse texto e por toda a sua vida, nossa generala da Agroecologia se firma como referência de conduta, sabedoria e sobretudo, humildade. Ela era, simplesmente, agricultora.

 

*Virgínia Mendonça Knabben é geógrafa e professora. Em 2016, publicou a biografia Ana Maria Primavesi: histórias de vida e agroecologia, que deu início à reedição da obra de Ana Maria Primavesi, pela editora Expressão Popular.

** Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho

 

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