Com o violento processo de colonização portuguesa no Brasil, a terra era vista como riqueza em abundância que precisava ser violada em prol do enriquecimento português. Deste modo, o latifúndio voltado para a monocultura, com o trabalho de escravizados para a produção do que seria exportado se estabeleceu até o século XVIII como modelo de exploração, o plantation, principalmente com a cana-de-açúcar.
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O que poderia ser visto como um capítulo distante da história do país, na verdade é o ponta-pé, ou um deles, para a trágica e atual história de violência que acontece no campo brasileiro, fruto de interesses políticos e econômicos do grande capital que negam a reforma agrária, cercam territórios de populações originárias e tradicionais e entregam tudo ao agronegócio.
No Brasil há um conflito no campo a cada quatro horas, é o que indica os dados do relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o “Conflitos no Campo Brasil – 2022“. Com a compreensão de que o governo de Jair Bolsonaro foi o grande responsável pela violência em relação à posse da terra, e que há muito a ser feito para desfazer a necropolítica da gestão passada, é necessário entender também outras questões que se relacionam diretamente com o tema, como a disputa pela água, a preservação do meio ambiente e o papel da mídia.
É com essa preocupação que conversamos com o geógrafo Plácido Junior, que integra a Comissão Pastoral da Terra e ecoamos o relatório realizado pela instituição. Confira a entrevista completa:
Centro de Cultura Luiz Freire: De acordo com o relatório “Conflitos no Campo Brasil – 2022”, realizado pelo Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), mais de 2.000 casos de conflitos no campo foram registrados em 2022 no país, envolvendo mais de 900 mil pessoas, com 47 assassinatos confirmados. Estes dados trazem consigo uma série de reflexões do modelo político-econômico acerca do campo brasileiro. E um dos questionamentos que surge é: No Brasil, latifúndio e violência são sinônimos?
Plácido Junior: Sim, sem dúvidas. Latifúndio é violência! O latifúndio é/foi estruturado sobre bases violentas, opressoras, de expropriação do campesinato, das comunidades tradicionais e dos povos originários, como também da natureza. A origem do latifúndio é a usurpação, a espoliação da natureza, a exploração da classe trabalhadora, do campesinato e dos povos originários e comunidades tradicionais.
Basta ver nossa formação territorial. Ela se deu sobre o genocídio indígena, trabalho escravizado, destruição na natureza. Em 2022, a cada quatro horas ocorreu um conflito no campo brasileiro. Nesse mesmo ano, ocorreram 47 assassinatos, um dos maiores números dos últimos anos. Vejamos o que está ocorrendo na Zona da Mata em Pernambuco, onde centenas de camponeses e camponesas vivem sob ameaças de serem despejadas das terras que vivem há décadas. Quando não são despejadas por ordem judicial, são expulsas pelos empresários que querem tomar suas terras. Essa é a forma pelo qual o latifúndio se constrói. A violência é inerente ao latifúndio, seja produtivo ou não.
Centro de Cultura Luiz Freire: O conflito em torno da terra é o que possui maior quantidade de casos registrados (1.572), conforme o relatório da CPT. Contudo, o conflito também está em outros contextos, como pela água (225), por exemplo. Quais os impactos destes conflitos pela água, entendendo a sua importância também nas relações culturais e econômicas de populações tradicionais e campesinas?
Plácido Junior: O tema da água no Caderno de Conflito da CPT é bastante importante. A sua incorporação, por parte da CPT, se deu pela percepção do aumento desse tipo de conflitos no País. A rigor é uma escolha didática, pois no universo camponês, das comunidades tradicionais e dos povos originários, não há separação entre a terra e a água. Ninguém planta na terra sem água. A água como um bem vital também está em disputa.
É preciso observar que os conflitos pela água são “ações de resistência, em geral coletivas, que visam garantir o uso e a preservação das águas; contra a apropriação privada dos recursos hídricos, contra a cobrança do uso da água no campo, e de luta contra a construção de barragens e açudes” (Caderno de Conflitos, 2022).
A forma tradicional de compreender os conflitos no campo prioriza o olhar apenas para a terra. A CPT joga luz nos conflitos por água como parte do processo de apropriação dos territórios camponeses e do processo, que tem se intensificado, de apropriação dos bens da natureza por parte de empresas capitalistas, o que reconfigura os conflitos no campo.
Centro de Cultura Luiz Freire: Combater a violência no campo é também proteger o meio ambiente da exploração predatória?
Plácido Junior: Certamente combater a violência no campo é também proteger o meio ambiente, os biomas e a biodiversidade. No Brasil, os conflitos pela apropriação da terra são atrelados à apropriação dos bens da natureza e às diversas formas de seu uso.
Assim como as pessoas, a Casa Comum está sendo agredida e violentada. O modelo de produção capitalista, como o agronegócio e o modelo de desenvolvimento adotado por vários governos, tem gerado violência no campo e destruição da natureza. A luta é em defesa da vida em todas as suas dimensões.
Centro de Cultura Luiz Freire: Qual o papel do Estado brasileiro, nos últimos anos e no atual governo federal, no combate às violências no campo?
Plácido Junior: Aqui temos duas questões, uma estrutural e outra conjuntural e em ambas os camponeses estão em uma posição desfavorável.
A primeira é que o estado brasileiro foi estruturado para atender o agronegócio, as corporações e as grandes empresas. A formação territorial brasileira é desigual, excludente, colonial e capitalista, apesar da luta de classes fazer com que o Estado incorpore demandas do campesinato. A reforma agrária, por exemplo, é um direito da sociedade e um dever do Estado e que está presente em nossa constituição. Nossa sociedade e o Estado se estruturaram a partir do genocídio indígena, do trabalho escravizado, do monocultivo para exportação e do latifúndio. O Estado faz parte dos conflitos e da violência no campo quando se omite de suas responsabilidades constitucionais, como é o caso da não realização da reforma agrária, ou quando pratica ação de violência, como são os casos de despejos judiciais ou assassinatos de trabalhadores e trabalhadoras envolvendo agentes do Estado.
A outra questão é conjuntural e tem a ver com os diversos governos. Recentemente, tivemos um presidente da República que incitou a violência contra os camponeses e camponesas e facilitou o armamento por parte dos latifundiários. Fruto dessa política genocida foi o aumento da violência no campo.
Vale ressaltar que nenhum presidente da República teve a coragem de mudar estruturalmente o campo brasileiro. Nunca realizaram a reforma agrária e não resolveram a questão das demarcações dos territórios das comunidades tradicionais e dos povos originários, mesmo dispondo de instrumentos jurídicos para realizar tais ações.
Centro de Cultura Luiz Freire: Tendo em vista o olhar criminalizador que a grande mídia tem sobre os movimentos sociais do campo, que leitura você faz da cobertura midiática sobre as violências no campo?
Plácido Junior: Primeiro observamos que a grande mídia é composta por grandes empresas capitalistas, inclusive algumas fazem parte da Associação Brasileira do Agronegócio – ABAB. Nos conflitos do campo, essas empresas têm lado e operam em seu próprio benefício. Nesse processo, há duas movimentações. A primeira é a de negação – de sequer reconhecer que no Brasil há um problema agrário e um campo pluri-étnico espacialmente diferenciado com populações que vivem nos diversos biomas brasileiros. Nesse processo, as corporações midiáticas promovem o silenciamento de uma parte significativa do campo, é como se várias comunidades e povos não existissem.
A outra movimentação é a de impor a narrativa do latifúndio e a do agronegócio como única possibilidade para o campo. Quando as vozes das comunidades aparecem são distorcidas e criminalizadas. É uma luta desigual no campo da disputa de narrativas nos espaços midiáticos.