Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

O direito à propriedade e o direito do consumidor são supervalorizados no país, mas não são Direitos Humanos. Estes, que segundo a Constituição, prevalecem sobre os demais, balizam a luta dos movimentos sociais do campo.

Dois direitos são absolutamente sagrados no Brasil: o direito à propriedade e o direito do consumidor. Ambos estão previstos na Constituição e regulamentados em normas específicas. Na ordem político-cultural hegemônica, não admitem questionamento e se enraízam no senso comum através das mais diversas e numerosas formas, manifestadas em adágios – “o cliente sempre tem razão” – ou mesmo em nomes de instituições – “Tradição, Família e Propriedade”. Abstenho-me de emitir opinião política sobre a TFP. Basta navegar pela sua página na Internet (http://www.tfp.org.br) para compreender os objetivos e a ideologia de tal organização.

Apesar do amplo reconhecimento social e da legalidade jurídica, tanto o direito à propriedade quanto o direito do consumidor carregam consigo a pecha de não serem direitos humanos. Só possui propriedade quem detém capital ou quem recebe herança. Só é consumidor quem possui recursos para concretizar o ato de consumo. São, portanto, direitos ordinários, resultados diretos e inegáveis do processo histórico, político e cultural no qual está inserido o nosso país.

Para as mentes desatentas, vale lembrar o que afirma o inciso segundo do artigo quarto da nossa Carta Magna: “Art. 4º: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II - prevalência dos direitos humanos”. Bem como se faz necessário comentar o princípio da função social da propriedade. Diz o artigo 186 da Constituição:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Se a prevalência dos direitos humanos e a função social da propriedade fossem efetivamente respeitadas pelo Executivo, pelo Legislativo e, sobretudo, pelo Judiciário, provavelmente não existiriam tantas ocupações de terra no Brasil. A reforma agrária, processo indissociável da democracia na Europa e nos Estados Unidos, continua sendo “coisa de comunista” para a elite brasileira.

Ademais, caso a função social da propriedade fizesse parte do senso comum geral, seria considerado ilegítimo – e até imoral – o fato de um único proprietário possuir 4.140.767 hectares (sim, quatro milhões, cento e quarenta mil e setecentos e sessenta e sete hectares!), caso da MANASA – Madeireira Nacional S/A, área equivalente a quase duas vezes o tamanho do estado de Sergipe.

Mas o problema da concentração fundiária no Brasil é bem mais complexo do que esse exemplo ilustra. Segundo a reportagem “Concentração de terra na mão de poucos custa caro ao Brasil”, de Fabiana Vezzali, da Agência Repórter Brasil:

“Cerca de 3% do total das propriedades rurais do país são latifúndios, ou seja, tem mais de mil hectares e ocupam 56,7% das terras agriculturáveis – de acordo com o Atlas Fundiário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em outras palavras, a área ocupada pelos estados de São Paulo e Paraná juntos está nas mãos dos 300 maiores proprietários rurais, enquanto 4,8 milhões de famílias estão à espera de chão para plantar”.

Estas famílias – que, certamente, não estão entre aquelas defendidas pela TFP – são despojadas de direitos, mas precisamente incluídas na engrenagem perversa do capitalismo. São vítimas diretas da estrutura que sustenta o pomposo agronegócio: trabalho escravo, desemprego em massa, êxodo rural, devastação ambiental, fome, condições precárias de saúde e moradia, utilização de venenos (agrotóxicos) em larga escala, calote nos cofres públicos (que gerou a alcunha “agrocalote”), entre outros “efeitos colaterais”.

Diante de tal cenário, e de um Estado historicamente dominado por uma classe, a reação não é difícil de ser compreendida. Não é à toa, aliás, que as principais características da relação Estado/sociedade no Brasil são o clientelismo, o paternalismo, o autoritarismo e o assistencialismo – este último, como forma de mascarar ou atenuar o peso da realidade sobre a maior parte da população, tática que tem como aliada a falsa idéia da passividade e do conformismo do povo brasileiro.

Caso essa tese – da passividade e do conformismo – tivesse a mínima consistência, seria natural conceber como “afronta ao Estado de Direito” a existência e a ação do MST, da CPT, do MPA, do MAB, da CONTAG, do MMC, dentre tantos outros movimentos contemporâneos, e das Ligas Camponeses, de meados do século passado.

Mas a verdade atestada pela História é que o povo brasileiro nunca aceitou a submissão à plutocracia que controla o “Estado de Direito” e busca se passar por democracia. A reação a essa plutocracia, que alterna momentos de hegemonia (supremacia cultural e institucional) e de dominação (força e coerção), é tão pujante que a contra-reação, in extremis, é a bala.

Nas últimas duas décadas, foram assassinados no campo mais de 1500 líderes e militantes de movimentos sociais. Tais crimes jamais figuram em manchetes, capas ou editoriais de jornais, revistas, rádios, televisões ou grandes portais de Internet. Do outro lado, as ocupações de terra já mereceram até projetos-de-lei que as classificavam como atos de terrorismo.

O massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, quando foram assassinados 19 trabalhadores rurais é, simultaneamente, um símbolo da violência sistemática praticada contra os movimentos sociais e da luta por reforma agrária. Não à toa, esta data foi estabelecida como o Dia Internacional de Luta Camponesa.

Em geral, juízes, legisladores e gestores públicos no Brasil não reconhecem nem respeitam os tratados de direitos humanos. Mas são justamente estes instrumentos que conferem legitimidade política à ação dos movimentos sociais contestadores da (des)ordem vigente no Brasil.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, já no seu preâmbulo afirma que é “essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”.

Num modelo de sociedade onde o capital é a principal medida das coisas, e não o ser humano e suas necessidades essenciais (traduzidas em direitos humanos), a expressão da tirania não precisa se traduzir na forma de uma ditadura ou de qualquer outro regime opressor. Ela se manifesta por meio da exclusão de parcelas imensas da população do acesso efetivo a direitos imprescindíveis à vida digna como alimentação, trabalho, moradia, saúde, educação e tantos outros.

Para quem não vive cotidianamente aquilo que o grande geógrafo Milton Santos denominou de “experiência de escassez”, é extremamente fácil, cômodo e confortável tomar por “radicais” as ações dos movimentos sociais. Difícil é tentar compreender – e, mais ainda, levantar a voz e agir contra – as raízes históricas que dão origem à realidade na qual vivemos e pela qual somos todos, em distintas medidas e formas, responsáveis.

É possível negar e não aceitar a realidade e suas causas. Mas não é possível se esconder dela e de suas conseqüências

Fonte: Agência Carta Maior

Por Rogério Tomaz Jr., jornalista da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

 

Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Rua Esperanto, 490, Ilha do Leite, CEP: 50070-390 – RECIFE – PE

Fone: (81) 3231-4445 E-mail: cpt@cptne2.org.br