Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

 O assassinato de uma criança de nove anos — que estava escondida debaixo da cama junto com sua mãe — denotou a tensão agrária gerada pelos conflitos da posse de terra que se arrastam há décadas na Zona da Mata Sul de Pernambuco. Jonatas de Oliveira dos Santos foi morto a tiros na casa onde morava no engenho Roncadorzinho, zona rural do município de Barreiros (PE).
 
O alvo principal dos assassinos seria o pai da criança, Geovane da Silva Santos, que foi baleado, mas sobreviveu. Ele é presidente da Associação dos Agricultores Familiares do local. A comunidade onde Jonatas morava tem 76 famílias, que vivem em uma área da antiga usina Santo André, falida há 22 anos. Do total, 30 eram trabalhadoras da extinta empresa e são credoras da massa falida.

(Carlos Madeiro - UOL)

A tensão em Roncadorzinho foi alertada por órgãos que atuam em eventos agrários em ofício endereçado ao governador Paulo Câmara (PSB) em 15 de abril de 2020. "São cerca de 400 moradores, com mais de 150 crianças, com residência há mais de 40 anos, conforme constatado pela própria autoridade policial em levantamento realizado em 18 de dezembro de 2019. Nos últimos anos, a comunidade vem sofrendo diversas ameaças e violências", diz o texto.

Ao UOL o governo informou que criou um programa para prevenir conflitos agrários, ligado à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos —após o assassinato de Jonatas (leia mais abaixo).

Segundo as entidades autoras do ofício, pouco foi feito para proteger a comunidade até agora.

Na Mata Sul de Pernambuco, usinas de cana-de-açúcar foram, historicamente, símbolo do poder econômico. Mas desde os anos 1980 elas começaram a ir à falência com a crise do setor sucroalcooleiro. As terras ficaram na dependência de ações judiciais, que correm a passos lentos e criam uma disputa extraoficial, que envolve especulação agrária e até grupos armados que atuam intimidando moradores.

Suspeitos presos
A Polícia Civil prendeu dois homens e apreendeu um menor na quarta-feira (16). Eles são suspeitos de participação na morte do menino e na tentativa de homicídio do pai. Outro envolvido foi identificado, mas já estava no sistema carcerário, após ser preso pela polícia em 2018.

"Os trabalhos investigativos prosseguem na busca de outros envolvidos e na elucidação da motivação e dinâmica desse crime bárbaro. A Polícia Militar está presente no município e em toda região por meio de policiamento de área e especializado para prevenir e combater todas as formas de conflitos, delitos e agressões", disse, em nota, a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco.

Na quinta-feira passada (17), a Justiça decretou a prisão temporária por 30 dias de dois suspeitos.

À Fetape (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco), a polícia teria afirmado ter indícios de que o crime teria sido motivado ao "assédio de traficantes interessados em adquirir terras no Engenho Roncadorzinho". Ainda segundo a Fetape, a polícia diz que não havia vínculos da família com a rede de tráfico.

Essa motivação, porém, é contestada por Geovane. "A versão que a policia passou não procede, não. Está contrariando tudo", disse, apontando a disputa pelo uso das terras como causa do crime.

 

LEIA TAMBÉM: Caso do menino morto em PE: Dois homens foram presos e um menor foi apreendido

Nesta sexta-feira (18), um ato reuniu políticos e entidades na comunidade para cobrar justiça. Moradores relataram às comissões da Câmara e do Senado as ameaças que eles sofrem na região.

No ano passado, a comunidade sofreu um atentado, por pouco não aconteceu uma tragédia. Foram 14 homens armados que invadiram área que tinha trabalhadores com cachorros, spray de pimenta, e partiram para cima da gente."
Antônio Cícero, da comunidade Barro Branco, em Jaqueira (PE)

Histórico de tensão
A presidenta da Fetape, Cícera Nunes, afirma que os conflitos no campo na Zona da Mata Sul existem desde a fundação da federação, há 70 anos.

"A gente atua ali desde sempre, antes mesmo da [usina] Santo André falir", afirma. "Quando as usinas foram falindo, nós trabalhamos para garantir a segurança das famílias na massa falida, mas também para se articularem com poderes políticos da região. Essas famílias não estão invadindo terras, elas são credoras, mas sofrem grande pressão", diz.

Segundo a Fetape, das cerca de 45 usinas que existiam e atuavam no estado, apenas 12 estão hoje em funcionamento —metade delas na Zona da Mata Sul. Algumas chegaram a ter falência decretada pela Justiça, enquanto outras foram à falência "de fato", ou seja, sem processo.

Quem está lá, está há centenas de anos, também é dona da terra porque são credores. A gente não quer a terra toda, só o suficiente para sobreviver e o restante passe para os demais credores."
Cícera Nunes, Fetape

Segundo informou o TJ-PE (Tribunal de Justiça de Pernambuco) ao UOL, há dois recursos sobre o conflito no 2º grau do Judiciário envolvendo o engenho Roncadorzinho. Ambos envolvem a empresa Agropecuária Javari, que pediu reintegração de posse. A coluna tentou contato desde a semana passada com a empresa, sem sucesso.

A Javari, segundo apurou a reportagem, é uma arrendatária de parte do terreno da antiga usina Santo André e quer a saída dos moradores para ampliar a área de plantação.

"A Defensoria Pública se manifestou requerendo uma busca consensual do conflito. Assim, em sessão realizada pelos desembargadores da 2ª Câmara Cível, foi determinada a intimação do Núcleo de Mediação do TJ-PE para a tentativa de conciliação", informou o judiciário.

1.500 famílias em áreas
Bruno Ribeiro de Paiva é advogado da CPT (Comissão Pastoral da Terra), da Fetape e de muitos dos posseiros da região. Ele afirma que a situação de tensão em áreas de usinas falidas envolve hoje um conjunto de cerca de 1.500 famílias em oito municípios da Zona da Mata Sul pernambucana.

Para ele, o cerne da questão está justamente na ausência da regularização da área, que deixa a terra sem dono.

Isso formou um ciclo de ameaças e conflitos que não vai cessar sem uma ação fundiária. Sem isso, gera-se uma cobiça de pequenas e grandes empresas e de grupos locais com algum tipo de poder econômico. É muita terra, muita gente envolvida e ameaça de várias fontes." Bruno Ribeiro de Paiva, advogado

Segundo Bruno, com a pandemia de covid-19 e o agravamento do cenário financeiro das famílias, a situação ficou ainda pior.

Programa criado
O governo do estado informou ao UOL que, após o assassinato de Jonathas, o governador Paulo Câmara (PSB) assinou um decreto destinando R$ 2 milhões para a criação do Programa Estadual de Prevenção de Conflitos Agrários e Coletivos, no âmbito da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos.

"O programa vai concentrar a política pública de apoio às pessoas ameaçadas por sua atuação na defesa de minorias e em causas como os conflitos rurais em todo o Estado. Atualmente, 45 lideranças rurais e suas famílias estão sendo acompanhadas pela SJDH. A capacidade de atendimento será multiplicada em cinco vezes", diz.

Já a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco informou que vinha monitorando os conflitos agrários em Pernambuco através do Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, criado em 2012.

Entre as medidas que já vinham sendo adotadas está a inclusão de lideranças no programa de proteção, além da instalação de câmeras de segurança nas residências dos ameaçados, realização de rondas policiais diárias e mediação das questões processuais junto ao Poder Judiciário."
Secretaria de Justiça e Direitos Humanos

Já o MP (Ministério Público de Pernambuco) disse ao UOL que ficou acordado que a polícia enviará semanalmente um relatório para "agilidade de adoção de medidas nas investigações para alcançar de forma mais rápida a autoria do crime". "A Promotoria de Justiça Agrária e o Gaeco/MPPE foram acionados para atuar nas respectivas atribuições", completa.

 

 

 

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