Neste Dia Mundial da Alimentação, 16 de outubro, e cerca de quatro anos após o Brasil sair do Mapa da Fome, estudos voltam a apontar a possibilidade de o país voltar a integrar essa estatística. Para denunciar essa problemática, 102 pessoas saíram pelo país na Caravana Semiárido Contra a Fome.
(Por Elvis Marques* | Imagem principal: Joka Madruga / Terra Sem Males)
Já são três anos consecutivos que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO, registra o aumento no número de pessoas que passam fome no mundo – o dado subiu de 815 milhões de pessoas, em 2016, para quase 821 milhões em 2017. “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2018”, recente relatório divulgado pela agência da ONU, revela que, no ano de 2017, uma em cada nove pessoas no mundo foi vítima da fome. Apenas na América Latina e no Caribe são cerca de 39,3 milhões de pessoas que vivem subalimentadas.
A Mapa da Fome é um instrumento que a FAO, através de um indicador chamado “prevalência da subalimentação”, consegue dimensionar e acompanhar a fome em nível internacional. Desde 1990 o mapa mostra o número no mundo de pessoas subalimentadas e quais regiões obtiveram progressos e deixaram essa condição. Quando o indicador está acima de 5%, o país está dentro do Mapa da Fome, e quando fica abaixo de 5%, o país sai do mapeamento, o que ocorreu no ano de 2014 com o Brasil.
À época, a então ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, em sua fala, comemorou a saída do país do Mapa da Fome e ressaltou que um dos principais motivos para ter conseguido bons resultados no combate à fome foi colocar o tema como prioridade. “Se não assumir que combater a fome é essencial, não vai acabar”. Para a titular da pasta do governo Dilma Rousseff, o trabalho não foi um fenômeno isolado de uma ação, mas sim um conjunto de iniciativas convergentes. “Para que resultados como esses aconteçam, tivemos que articular vários setores. Não é um programa ou outro que consegue sozinho. São vários fatores que, juntos, colaboram com o resultado”, argumentou.
Tempos depois, o relatório “Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável”, produzido pelas organizações GESTOS – Soropositividade, Comunicação e Gênero, Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), e pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030, apresentado em 2017, expôs o desempenho do Brasil no cumprimento dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidades (ONU), e apontou o risco de o país voltar ao Mapa da Fome.
Um dos pesquisadores que participou da elaboração do relatório, o economista Francisco Menezes, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e da ActionAid Brasil, listou, em entrevista ao portal Nexo, à época, alguns fatores, ocorridos principalmente entre os anos de 2015 e 2017, que têm contribuído para um possível retorno do Brasil ao Mapa da Fome, como a alta taxa de desemprego, o avanço da pobreza, o corte de beneficiários do programa Bolsa Família e aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 95/2016 do congelamento de gastos públicos por até 20 anos aprovada durante o governo Michel Temer.
Para Menezes, o Brasil deixou de figurar essa lista há quatro anos pois foi aplicado “um conjunto de políticas públicas que permitiu isso. Desde políticas de caráter macroeconômico, como o quase pleno emprego, a formalização do trabalho e a correção do salário mínimo acima da inflação, que não gera efeitos só para quem ganha o salário mínimo, mas irradia para o fortalecimento de economias locais”, conforme entrevista concedida ao Nexo.
Ainda segundo ele, “a transferência de renda do Bolsa Família, que não é um programa de segurança alimentar propriamente dito, também teve impacto. Os recursos são utilizados, sobretudo, em alimentação. E há programas importantes regionalmente. Cito as cisternas no semiárido, a aquisição de alimentos da agricultura familiar — que garantiu um mercado a ela — e o programa de alimentação escolar, que já existia há mais de 50 anos, mas teve seu valor recuperado. A merenda escolar tem um peso muito forte junto a famílias mais pobres”, destacou, também, ao portal de notícias.
Em pronunciamento neste Dia Mundial da Alimentação, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, destacou que para zerar a fome é necessário "união de forças". Confira:
O Índice Global da Fome, publicado na última quinta-feira, 11 de outubro, mostra que o Brasil caiu 13 colocações neste ano em comparação com dados divulgados em 2017, o que reflete, conforme reportagem divulgada pelo portal de notícias da Alemanha, Deutsche Welle, uma tendência na direção equivocada mundo afora. O índice é compilado e divulgado anualmente por organizações como a Ação Agrária Alemã (Welthungerhilfe), Concern Worldwide e pelo Instituto Internacional de Investigação sobre Políticas Alimentares (IFPRI, sigla em inglês). De acordo com esse estudo, o Brasil ocupa o 31° lugar entre 119 países, com 8,5 pontos, valor que, apesar de ter subido neste ano, ainda é considerado baixo pelas organizações que realizam esse estudo.
“O Brasil obteve 5,4 pontos no índice de 2017, indicando que uma menor parcela da população passava fome. No ano passado, o país também figurava entre as nações que conseguiram diminuir a fome em mais de 50% a partir de 2000”, destaca a matéria do periódico alemão. Para se chegar a essas informações, segundo a Deutsche Welle, o estudo calcula o índice de fome com base em dados consolidados e atuais relativos aos indicadores: subnutrição, caquexia infantil (grau de extremo enfraquecimento e emagrecimento), atraso no crescimento e mortalidade infantil.
Denúncia e anúncio
Proposta pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e com objetivo de denunciar a possibilidade de o Brasil voltar a figurar esse mapeamento da FAO, a Caravana Semiárido Contra a Fome foi construída conjuntamente por movimentos, entidades e organizações da sociedade civil, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Via Campesina, Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG), Frente Brasil Popular, Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Movimento Camponês Popular (MCP), Levante Popular da Juventude, Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) e Comissão Pastoral da Terra (CPT).
No dia 27 de julho a caravana partiu da cidade de Caetés, em Pernambuco, com 102 pessoas, que percorreriam mais de quatro mil quilômetros, passando pelos municípios de Feira de Santana (BA), Belo Horizonte (MG), Guararema (SP), Curitiba (PR) e, por último, Brasília (DF). “Infelizmente, os retrocessos nas políticas públicas nos levaram a fazer essa caravana. A gente sempre diz que não era o nosso sonho fazer uma ação dessas, pois claro que não queríamos a volta da fome para o nosso país”, explica Cristina Nascimento, que contribuiu com a organização e coordenação da caravana. Para ela, a problemática da fome “mobiliza outros temas, pois sem terra e sem água a gente não vai poder produzir alimentos”.
Entrevista: “É no Semiárido que a vida pulsa. É no Semiárido que o povo resiste”
A frase acima é de Cristina Nascimento, coordenadora do Centro de Estudos do Trabalho e Assessoria ao Trabalhador (Cetra), sediado em Fortaleza (CE), uma organização não-governamental que há 37 anos atua no estado na agricultura familiar, convivência com o Semiárido e agroecologia. Confira, abaixo, a entrevista com a militante social:
Como foi a experiência de participar da Caravana Semiárido Contra a Fome diante da conjuntura política que nosso país vive?
Participar dessa Caravana, para mim que tem uma formação em Assistência Social e minha militância é pela convivência com o Semiárido, foi algo muito bonito. A gente participar de um momento quando várias organizações, agricultores e agricultoras, jovens, e vários movimentos que se reuniram para denunciar a volta do Brasil ao Mapa da Fome.
E chamarmos a sociedade para conversar e dialogar e trazer a reflexão crítica da realidade que a gente vive, isso foi fundamental e nos alimentou muito com a certeza de que nós construímos estratégias no Nordeste de combate à fome, de convivência com o Semiárido, e nós sabemos que a fome é algo que não pode mais voltar, pois temos condição no Brasil de não termos mais essa situação.
Infelizmente, os retrocessos nas políticas públicas nos levaram a fazer essa caravana. A gente sempre diz que não era o nosso sonho fazer uma ação dessas, pois claro que não queríamos a volta do fome para o nosso país. Em Curitiba, onde o presidente Lula está preso, para nós foi a maior expressão da falta de democracia e da injustiça em nosso país, e a caravana também passou lá para dizer que nossa fome não é só de comida, mas também de democracia e de justiça.
Integrantes da Caravana Semiárido Contra a Fome em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) em Brasília. Crédito: Elka Macedo / ASA
A caravana ocorre em um momento em que o povo brasileiro tem perdido diversos direitos, e que, também como consequência, o Brasil corre o risco de voltar ao Mapa da fome. O que representa essa ação neste cenário?
Muitas vezes a gente acha que a fome é algo que está distante da gente, mas é só sair de casa que a gente vê como a situação de miséria está presente em nosso cotidiano. Há 2 anos ou 3 anos essa não era a rotina das nossas cidades, principalmente as do interior. Mas a gente está vendo que esse retorno da fome não é só falácia, é algo que já está muito presente em nossas vidas.
O Semiárido, por exemplo, foi a região em que a gente mais avançou na questão do combate à fome, isso a partir do acesso às políticas sociais, a partir da captação de água para uso humano e para produção de alimentos agroecológicos. Saímos pelo Brasil para falar disso e debater, porque não dá para a gente apenas ver os retrocessos acontecendo. Essa crise foi construída porque o povo saiu do orçamento do governo brasileiro, e o impacto do golpe [contra a presidenta Dilma Rousseff] foi na classe trabalhadora.
Inclusive a gente fez um documento junto com o Consea [Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional] que foi protocolado junto aos ministros do STF [Supremo Tribunal Federal] colocando que o direito à alimentação é um direito constitucional e a PEC [Proposta de Emenda Constitucional] do congelamento dos gastos públicos, assim como os cortes no orçamento que já foram feitos em 2018, são atentados à vida do povo brasileiro.
Por fim, após todos os dias de caravana, o que mais te marcou, Cristina?
Acho que o primeiro ganho foi a nossa união no campo popular e clareza de que o projeto que nós queremos para o país não é o da fome, mas é um projeto de vida digna e de fartura. E o nosso principal ganho, que avaliamos esses dias, foi que a fome é uma pauta que estava invisibilizada e a gente trouxe para sociedade, para os movimentos, e também para o próprio governo e para o Congresso Nacional.
*Setor de Comunicação da Secretaria Nacional da CPT.