Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Na tarde do dia 11 de agosto, durante o Encontro-Celebração dos 30 anos da CPT NE2, aconteceu um momento chamado "Fila do Povo", em que os participantes contaram suas memórias de fatos que marcaram a vida e o serviço da CPT NE2. Os depoimentos abordaram os conflitos, as prisões, assassinatos de lideranças camponesas, a conquista da terra prometida e a continuidade da luta.

O camponês João Luiz, do Assentamento Quirino, contou como iniciou na CPT. Ele foi chamado em 1986, na cidade de Areia, sertão paraibano.  Junto à CPT, realizou uma reunião com agricultores da fazenda Quirino, em São Miguel de Taipu, para discutir a questão da terra. A notícia teve repercussão na cidade e o proprietário reprimiu os trabalhadores. Deste modo, o sonho ficou adormecido por muitos anos, mas teve continuidade, passando por diversos conflitos até ser realizado.

“Eu agradeço muito pela fidelidade e compromisso com os trabalhadores, porque ela não nos abandona. De 1997 até 2010, quando conseguimos a conquista da propriedade, a CPT esteve ao nosso lado fornecendo apoio moral, político, jurídico e tudo o que precisávamos. A CPT sempre esteve presente. E, por isso, eu tenho muita gratidão e estou aqui, junto com vocês, e que sejamos profetas do povo, para continuar nessa caminhada”, disse João.

Do mesmo assentamento, a camponesa e ex-coordenadora da CPT, Socorro Gouveia, trouxe o resgate histórico desde a década de 1970. Ela falou sobre o trabalho do MEB (Movimento de Educação de Base), dos padres italianos na região e das dificuldades enfrentadas devido ao conservadorismo por parte do bispo do período. Na década de 80, foi iniciado, com a Pastoral da Juventude, o trabalho nas comunidades. “Naquele tempo começávamos a direcionar pela teologia da libertação, mas o bispo não sabia que a gente estava discutindo essas coisas”, relatou Socorro.

Para Socorro, o final dos anos 70 e início dos anos 80 foi muito difícil devido à ditadura militar. “Quantas e quantas reuniões nós fizemos escondidas, com medo. Quando aconteceu a ocupação da fazenda Acauã foi um rebuliço danado. Muita perseguição e prisões. Mas, foi a retomada da discussão da reforma agrária no sertão. A história mostra o quanto isso tudo foi importante pelas conquistas que temos hoje: mais de 30 assentamentos, as famílias vivendo bem, tiveram sua cidadania conquistada e seguimos na luta. Então, estamos todos de parabéns!”, finalizou.

Após o relato de João Luiz e Socorro, o professor Marco Mitidiero, na mesa desse momento no evento,resgatou alguns fatos relativos à fazenda Quirino. Segundo ele, em 2008, o neto do fazendeiro e seus capangas, invadiram a casa de um posseiro, destruíram tudo da casa, roubaram o dinheiro, espancaram o filho do posseiro e estupraram a esposa. Como a mulher estava de regra, introduziram um vidro de perfume alfazema em sua vagina na frente de todos.

Também como parte desta mesma história, aconteceu o sequestro e o espancamento do professor economista da UFCG, Fernando Garcia. Foi um dos primeiros professores universitários vítima do conflito no campo no Brasil. Essas situações foram denunciadas no Plenário da Câmara e, somando-se à outras violências enfrentadas nessa batalha, culminou na desapropriação da área.

Para Mitidiero, a história do assentamento Acauã se destaca pela coragem de afrontar não somente os coronéis do sertão paraibano, como o poder nacional brasileiro. Isso porque o proprietário daquelas terras, além de ser da oligarquia Gadelha – dominante no estado da Paraíba, era casado com a filha do vice-presidente da República à época, Marco Maciel. Foram sete ocupações, sete despejos e sete presos. A prisão dos sete, incluindo dois jovens da Alemanha, deu um caráter mundial ao caso, que fez a luta tomar outro rumo.

Em Alagoas, a CPT passou por algumas mudanças desde a fundação da regional. Carlos Lima, coordenador no estado, contou que quando chegou na CPT em Alagoas, não havia o “C”. “Era apenas Pastoral da Terra, porque a CPT Alagoas havia saído da regional e fundou a Pastoral da Terra de Alagoas”, explicou. Quando ele se tornou coordenador da Pastoral, a partir de uma articulação, chamada Mundo do Trabalho, da qual Socorro Gouveia fazia parte, aconteceu uma reaproximação. “Em 1993 ou 1994, começamos o diálogo. Depois, chegou padre Alex, sobrinho do padre João, que tinha feito experiência como seminarista na Paraíba e tinha uma grande influência da CPT da Paraíba”.

Para Carlos Lima, a história da CPT de Alagoas se divide em antes e depois da chegada do Padre Alex Cauki. Antes, a CPT cumpria um papel de assessoria, junto aos canavieiros, ao movimento sindical rural e de apoio às ocupações do MST; depois, passou a ter uma influência mais direta na luta dos camponeses. Além disso, uma das mudanças significativas foi em relação à romaria, que desde 1988 era realizada na Serra da Barriga, em União dos Palmares, e passou a ser itinerante.

“Isso tudo transformou a CPT de Alagoas e, o que culminou na ocupação da Flor do Bosque. E aí veio o apoio de Pernambuco. Padre Alex e Irmã Cícera foram até os municípios de Branquinha, União dos Palmares... dizendo para o povo que vai ter uma grande romaria. Mas, era preciso levar lona, panela... E o povo dizia: ‘Que romaria é essa? Já não tem santo e ainda tem que levar essas coisas todas?’. Ali foi feita a ocupação de Flor do Bosque e foi firmado o retorno da Pastoral da Terra de Alagoas para a regional nordeste 2”, contou Carlos.

A mudança de Pastoral Rural para a Comissão Pastoral da Terra também teve relevância na luta pela terra no Rio Grande do Norte. Júlio, da CPT de Mossoró, acredita que a CPT veio para reforçar e amplia essa luta, que antes já era protagonizada pela Igreja, através do Movimento de Educação de Base (MEB) e da Comissão Diocesana de Justiça e Paz. Segundo ele, a chegada da CPT “fez com que, a região da Diocese de Mossoró, no Rio Grande do Norte, seja a área com maior número de famílias assentadas e de projetos de assentamentos do Incra”.

A importância da formação dos camponeses

Em seu resgate à memória, Júlio também destacou o trabalho vanguardista de formação que a CPT regional nordeste 2 vem realizando nesses seus 30 anos, no sentido de levar aos trabalhadores rurais a compressão do processo de lutas, transformações que estão acontecendo no campo e os desafios.

“Eu lembro que em 1993, a gente já fez uma dinâmica na regional, onde articulou as equipes do agreste, do sertão e da zona da mata por temática. Nós, da equipe do sertão, visitamos o Centro Caatinga, em Ouricuri, Pernambuco, que trabalha com tecnologias de convivência com o semiárido, como a cisterna de placa, o barreiro trincheira, entre outras. Da mesma forma, em 1993, tivemos um grande encontro da CPT de todo o Nordeste para discutir isso, sobretudo a modernização do Capital a partir do Vale do São Francisco, em Petrolina, para compreender o que estava acontecendo e as dificuldades que modelo de desenvolvimento estava trazendo para as comunidades. E, somente 10 anos depois, em 2003, surgiu a ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro). Então, a CPT uma década antes já havia discutido isso em sua formação”, falou.

Segundo Júlio, as discussões fizeram com que a CPT de Mossoró compreendesse, por exemplo, o que está acontecendo hoje na Chapada do Apodi, onde as empresas estão causando danos ambientais, culturais e sociais, por meio da poluição, grande uso de agrotóxicos, destruição da vegetação e expulsão das comunidades, para implantar um projeto depredador. “Portanto, esse processo de formação da CPT tem contribuído muito para compreender, acompanhar e dar continuidade à luta”, encerrou.

A juventude camponesa não deixa a luta acabar

A “Fila do Povo” foi longa. Muitos trabalhadores e trabalhadoras resgataram sua história e da CPT NE2 durante toda a tarde do sábado. Conforme falou Rafael Reginaldo, da CPT de João Pessoa, “a história da CPT se confunde com a história dos trabalhadores”. Ele é filho de assentado da reforma agrária, neto de Dona Helena, que morreu fazendo parte da CPT, em 1996, e que hoje tem um assentamento em sua homenagem.

Rafael, que completa seu aniversário de 30 anos em setembro, um mês depois do nascimento da CPT no seu estado e na regional nordeste 2, recordou: “A gente olha aquela barraca [montada no encontro] e lembra que foi numa barraquinha dessas que a gente passou pelo menos 6 meses morando. Eu lembro de quando eu era criança, deitado na cama de tábua com uma esteira por cima, a chuva passava por baixo e eu colocava a mão para sentir a água passando”.

“Hoje que quero agradecer a Deus, nesta celebração dos 30 anos da CPT, por tudo o que nossa comunidade recebeu. Eu acho que faz muita diferença na história da CPT é a palavra ACREDITAR. Acreditar no potencial da juventude e das crianças. Em 1996, eu era uma criança. Hoje eu sou presidente da Associação Dona Helena e a gente carrega esta inspiração que veio do trabalho que foi desenvolvido nas últimas décadas. Então, a CPT é a mãe que nos ajuda a trilhar nossa caminhada”, disse o jovem.

 

 

 

 

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