Confira análise de Plácido Junior e Ruben Siqueira, ambos da CPT, sobre o X Encontro Nacional Fé e Política e a conjuntura nacional. O evento ocorreu no fim do mês de abril em Campina Grande, Paraíba.
“Se o Senhor estivesse aqui, não haveria golpe!” Esta afirmação, entre outras de “não haveria” inspiradas no episódio da ressurreição de Lázaro (Evangelho de João, capítulo 11), foi feita numa das celebrações do X Encontro Nacional Fé e Política, acontecido nos dias 22 a 24 de abril de 2016, no campus da UFPB em Campina Grande-PB, reunindo cerca de 800 participantes. Houve estranhamento de alguns, o que já é boa notícia. E serve de mote para a reflexão que nos provocou aquele encontro, primeiro de que participamos, a respeito do que – parece-nos – estão devendo os cristãos na crise do que generalizadamente se chama esquerda, há muito se arrastando, em especial com a experiência dos governos petistas.
É de reconhecimento geral, na militância cristã e nos estudos sobre o assunto, a grande contribuição que as Igrejas da América Latina, postadas ao lado do povo – no caso da Católica por volta do Concílio Vaticano II (1962/65) –, deram e dão à luta política e à afirmação da cidadania neste País de “história lenta”, como dizia José de Souza Martins. Atribui-se a estes setores do cristianismo – das Comunidades Eclesiais de Base e das Pastorais Sociais, com apoio da direção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil à época – uma das três vertentes que constituíram o PT, como expressão criativa e inovadora da esquerda social e política, em feliz encontro, construído na resistência à Ditadura Civil-Militar, capaz de se impor na e como (re)democratização real. As outras duas seriam o novo sindicalismo nascido no ABC paulista e os intelectuais e militantes de esquerda retornados do exílio com a anistia em 1979. Há quem interprete o processo ocorrido desde então como hegemonização destas duas (ou mais da primeira) e alijamento ou contenção da vertente cristã, tida como “xiita” pelo Lula, sobretudo porque prezava os “núcleos de base”, onde efetivamente “o trabalhador faz política”...
O Movimento Fé e Política, criado em junho de 1989, no auge deste engajamento, “com o objetivo de alimentar a dimensão ética e espiritual que deve animar a atividade política”, “não propõe diretrizes para ação política dos cristãos, nem se comporta como se fosse uma tendência político-partidária, mas que luta pela superação do capitalismo por meio da construção de um sistema sócio-econômico solidário e respeitoso da vida do Planeta” (cf. www. http://fepolitica.org.br/historico/). Como tal, se propõe ecumênico e suprapartidário. Notabilizou-se, sobretudo pelos encontros nacionais, momentos importantes de troca de experiências, auscultação das ideias e sentimentos dos militantes cristãos e síntese animadora dos caminhos a seguir.
Neste sentido é que o X Encontro, mesmo tendo possibilitado valiosas percepções, interações e afirmações de fé partilhadas com os companheiros e companheiras de caminhada sobre a gravíssima conjuntura nacional e global, permeando também o eclesial, teve certa dose de decepção. O tema “Bem-viver: águas da solidariedade, sementes de esperança” prometia um olhar poderoso para frente, uma vez este se consolidando entre nós como um horizonte de consenso motivador da luta, dentro e fora dos meios eclesiais, em vista das cada vez mais evidentes e perturbadoras danações socioambientais do capitalismo e da resposta resistente e resiliente dos povos originários pela permanência da vida comum a todos e a tudo conectada, como reconhece e exalta a “Laudato Si”, do Papa Francisco. Algo que diz respeito, em especial, não só a católicos e cristãos em geral, mas a todos e todas, também e principalmente à coisa pública e sua gestão política. Como tal, uma resposta também à crise atual da esquerda.
O encontro contaminou-se pela precipitação absurda e inimaginável (?) da conjuntura política com o golpe “temerário” – o impedimento da presidenta Dilma sem base legal, numa evidente manobra de tomada do governo pela oposição sem votos, à mercê do neoliberalismo global, a dupla Temer / Cunha à frente, agora evidenciada como a sinistra que antes, como aliada, não era... O encontro enviesou-se também ele pela urgência da luta contra o golpe e olhou menos do que se esperava para o futuro pós-tudo isso e que depende também, sobremaneira, de como se enfrente este momento presente de difícil transição.
Evidencia-se ainda mais na conjuntura recente que a relação dos governos petistas com os movimentos sociais, ou a esquerda social em geral, permeou-se menos pela potencialização desta força poderosa de transformação social e política, mas muito mais pelo disciplinamento e canalização, cooptação mesmo em muitos casos, conforme requeria a coalização ou o pacto social garantido por Lula. Do lado de cá, somada à adesão ao projeto político petista, a necessidade de movimentos sociais acessarem ao Estado, tido também como programas e recursos públicos. Acuados pela conjuntura, ainda não nos demos à crítica e à autocrítica... Nós, cristãos na política, porém, já não temos porque não nos perguntar como aí nos portamos. Fica a impressão que também concedemos, em nome da realpolitik, pouco afeita a utopias, o que levou a perder incidência a ético-política que o Evangelho exige incondicionalmente.
Os ganhos sociais do lulapetismo – como designam alguns críticos – reais e importantes, sem dúvida, mas relativos, funcionais e compósitos com a coalização político-econômica, em que o capital concede porque mais ganha, parece que também a nós nos seduziram ou a contragosto aceitamos. Ao ruir o esquema, dada a crise econômico-geopolítica global – que derrubaram as exportações e commodities agrícolas e minerais em que se baseava afinal o “sucesso” do arranjo governista – e a eficiente manipulação da mídia empresarial, tais ganhos se tornaram em perdas e insatisfações populares. Resposta de beneficiados assistenciais e não de trabalhadores cidadãos conscientes de direitos, de quem e para o que se acreditava o PT dos primórdios.
Durante o encontro, nenhuma autocrítica foi feita. É de se estranhar, uma vez que são em momentos como esse que abrimos portas ou janelas para enxergar o velho e semear o novo. Nosso passado recente nos compele a pensar o Estado e os governos que queremos. Acreditamos que os governos petistas resolveriam nossos problemas? Aprendemos, decepcionados, a mais querer autogovernos? É por aí? Como? A fé cega é ineficiente. É momento de repensar o sal e o fermento e a massa (cfr. Mateus 5,13-14). No último Congresso da CPT, marcado pela “Memória, Rebeldia e Esperança dos pobres da terra”, realizado em Rondônia, em julho de 2015, um camponês falou e disse: "Nossas sementes são as comunidades. As lideranças transgênicas estão acabando com as comunidades”. Será que nesses anos de caminhada, não colaboramos de diversas formas para a emergência de lideranças “transgênicas”? E o que seriam hoje as “crioulas” ou “nativas”? Em vista da mesa farta e sadia do Reino que há de vir, mas já está no meio de nós (Lucas 17, 20-21).
O afastamento da Presidenta Dilma se deu pelos acertos e, também, pelos equívocos que os governos petistas cometeram ao longo de seus mandatos. Acreditar na aliança de classes, fazer para os pobres ao invés de fazer com eles e elas, conter e não potencializar a organização, a mobilização e a autonomização da base popular, priorizar o campo institucional como principal arena na luta política, não democratizar a terra, a mídia e o poder... foram alguns destes equívocos (opções deliberadas?). Se quisermos semear esperança temos que, no mínimo, refletir criticamente sobre nossas práticas nos espaços em que atuamos e nas alianças que fazemos, com quem e para que fazemos.
Aparece, então, neste momento – e o X Encontro não fugiu à regra –, como única saída, imposta sem mais a todos e todas de esquerda, a defesa do mandato da presidenta. Defesa do que mesmo? Da democracia, claro, ainda que eleitoral e viciada, mas na crença de que por ora é a possível e provisória. Mas também da volta do mesmo? Não há como não admitir que houve um “estelionato eleitoral” nas últimas eleições, o que não é motivo suficiente para impedimento da presidenta, mas é inaceitável para nós que não votamos no programa do adversário e querermos democracia substantiva, com efetiva participação e incidência popular. Um “estelionato” que já vinha acontecendo e ao qual já devíamos, nós cristãos de fé e política, ter reagido com mais coragem e ousadia. Ou conformar-se com ou mesmo compor (e agora recompor) o projeto governista do PT era (é) o único que fazer? Em vista do que mesmo depois?
Diante deste quadro – de tanta complexidade, aqui rapidamente traçado – desejávamos que, pelas virtudes do Evangelho e da militância que por ele se pauta, o X Encontro Nacional Fé e Política, ainda que impactado pela conjuntura imediata, ousasse olhar e propor mais à frente e a fundo, almejando transformação das estruturas, não mudanças consentidas, a retardar o substancialmente novo. O povo de novo sujeito, não objeto ou cliente. Com opção decidida pela retomada do trabalho de base – a exemplo da época originária do PT – e pela construção da autonomia política real dos grupos, comunidades, setores e classes populares. Além de querer que Jesus estivesse aqui (onde ele estava?) para nos ajudar a deter um golpe que já vinha sendo dado...
Por Plácido Junior (CPT Nordeste 2) e
Ruben Siqueira (CPT Bahia / Nacional)