Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Para atender ao aumento do consumo de álcool combustível, muitos produtores do Centro-Sul vêm mudando o perfil de suas propriedades.

A cana chega, ganha espaço e briga com culturas antes tradicionais na região; é o que vem ocorrendo em Quirinópolis e outros municípios da região.

O trabalho noite e dia das usinas compõe o novo cenário agrícola em vários municípios do sudoeste goiano. Até o final deste ano, a área plantada com cana-de-açúcar em Goiás deve subir quase 40% em relação a 2006. Onde antes a soja, o milho e a pecuária imperavam, hoje tem cana a perder de vista – inclusive deixando ilhados, silos utilizados na armazenagem de grãos. Parte de um silo em Quirinópolis já foi arrendada como depósito de açúcar.

Até dois anos atrás, a cana nem fazia parte das estatísticas agrícolas de Quirinópolis; hoje, ela ocupa milhares de hectares.

O agrônomo João Martins é o gerente agrícola da primeira usina instalada no município.”A mudança foi muito grande. Se imaginarmos que hoje temos 32 mil hectares de cana aqui e antes era soja, houve nessa região já uma redução de 32 mil hectares de soja. É um volume considerável”, avalia.

A cana só atingiu a dimensão atual na região porque chegou no momento certo, em meados de 2004, quando a soja enfrentava preços baixos. “Nós chegamos exatamente nesse instante, onde as pessoas estavam totalmente sem entusiasmo pela soja. Então, para nós, foi uma grande facilidade convencer os agricultores da região a trabalharem com cana”, conta João Martins.

Uma estrada de chão, de terra vermelha, bem característica da região, divide a propriedade do seu João Malquias da do seu vizinho. Tem cana dos dois lados, mas nem sempre foi assim. “Toda vida foi soja de lá e soja de cá. Toda vida foi soja aqui na região”, lembra seu João Malaquias.

O agricultor conta como abandonou a soja na sua propriedade, em 2005. “Eu estava muito endividado, devia naquela hora R$ 2 milhões de reais”. João Malaquias conta que precisou vender uma parte das terras. “Eu vendi essa área em proporção de R$ 5 mil o hectare, e hoje está valendo R$ 10.300 o hectare. Em dois anos, duplicou o valor das terras na região de Quirinópolis”.

As terras de seu João Malaquias hoje são arrendadas para a usina plantar cana. “Graças a Deus. Se não fosse a usina eu não sei o que seria de mim esse ano”, diz.

Em outra propriedade, a chamada irrigação de salvamento não pára: é que o plantio nas terras da família do seu Jourival Barbosa Queiroz foi feito quando o período de chuvas já tinha terminado. Agora, ele o filho, Cássio, conferem o crescimento da cana plantada numa área onde, na última safra, a soja rendeu 55 sacos por hectare.

Seu Jourival preferiu usar a área de soja para plantar cana, em vez de usar a área de pastagem. “A área de soja, ela já está corrigida. A área de pastagem vai demandar uma correção mais cara em calcário e em gesso. E a área de soja ela está mais fácil de ser trabalhada, então tem um custo mais baixo. E conseqüentemente a gente espera que ela tenha uma produção maior do que uma área que sai da pastagem e passa para cana”, explica.

O filho de seu Jourival, Cássio Caiado Barbosa, diz que gastou R$ 2.100 por hectare para implantar a lavoura de cana. “Nos devemos ter o retorno nos próximos cinco anos”.

Em Quirinópolis, os pecuaristas também cederam ao assédio econômico da cana.

Os troféus que ainda hoje tomam o escritório do seu José Eduardo Fleury são a memória da época em que seus animais venciam muitos concursos pelo país. Mas nem seu maior campeão, o touro Regente, ele mantém na propriedade hoje em dia: no último ano, a cana entrou em 2.300 hectares da fazenda. Para a pecuária, ficaram menos de cem hectares.

“Eu tive que me desfazer do meu rebanho, de 96% deles, em torno de 2.500 bois”, conta seu José Eduardo, que também é presidente do sindicato rural da cidade. “A cana foi chegando e foi acabando com os pastos, e o rebanho indo embora. Para você plantar um hectare de cana, nós que saímos do pasto, o custo que nós fechamos está em torno de R$ 4.100 por hectare”.

Mesmo sem seus animais de elite, ele faz questão de mostrar o curral que ainda preserva na propriedade. “Esse curral aqui, eu que fiz. A gente já vê e fica triste, você já começa ver grama nascendo, mato, a porteira estragando. Já não temos aquele zelo, porque já saíram daqui mais de duas mil cabeças da fazenda”, diz José Eduardo.

“Eu acho difícil eu gostar tanto da cana quanto eu gostava de produzir gado. Porque você nunca quer sair da pecuária”, confessa José Eduardo. “Eu ouvia da família da minha esposa sempre uma frase: ‘segura no rabo do boi que você vai para frente’. Eu estou segurando um pouco a pecuária por uma questão de amor, mas meus filhos e minha filha já falaram que são os bois mais caros do Brasil. É boi comendo capim onde se pode por cana”, brinca.

Polêmica A multiplicação dos canaviais em toda a região Centro-Sul do Brasil é polêmica.

Em São Paulo, o presidente da Federação Estadual dos Trabalhadores na Agricultura, Braz Albertini faz um alerta: “Nós temos uma preocupação muito grande com a expansão da cana da forma como ela acontece, porque você exclui todo mundo da zona rural. Você não tem mais um time de futebol, você não tem uma quermesse, você não tem mais uma comunidade na zona rural”, critica.

O representante da ONG WWF-Brasil, o biólogo Carlos Alberto Scaramuzza, também se preocupa. “A gente sabe que uma paisagem agrícola saudável, tanto para os rios como para a natureza, é uma paisagem com diferentes tipos de cultura, com florestas ao longo dos rios e com reservas nas florestas legais”, alerta.

O ex-ministro da agricultura Roberto Rodrigues, hoje coordenador do Núcleo de Agronegócio da FGV, reconhece que existe risco. “O risco é o da monocultura – seja de cana, seja de soja, seja de laranja, seja de café. Qualquer monocultura é um risco, porque uma quebradeira desse produto pode quebrar a região”.

Em Brasília, o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes comenta a principal ação do governo para conduzir a expansão da cana: o zoneamento. “O governo já decidiu: vai fazer um zoneamento agrícola primeiro, no sentido de definir quais as áreas, sob o ponto de vista de solo e de clima, onde se pode plantar cana no Brasil. Um outro mapeamento: quais são as áreas onde o governo não quer que se plante a cana, onde vai ser proibida a plantação de cana – aí, como exemplo, estariam os biomas amazônico e Pantanal, e outros que ainda serão definidos, para conduzir esse avanço da cana”, explica Stephanes.

A preocupação também já chegou ao campo: nem todo mundo recebe a cana de braços abertos. Com a expansão da cana-de-açúcar pelo sudoeste goiano, o município de Rio Verde resolveu frear o avanço da cultura> uma lei municipal de novembro de 2006 limita o plantio da cana em 10% da área agrícola; dos 500 mil hectares voltados para as mais diversas lavouras e criações, a cana pode ocupar 50 mil hectares – e o produtor só planta se tiver uma autorização.

O agricultor Bruno Selaysin é um dos produtores de cana do município que já tem autorização da prefeitura para produzir cana. “Antes da prefeitura lançar essa lei, eu já plantava cana”, conta. Ele começou com 40 hectares há dois anos; hoje, já tem 600.

Seu Bruno conta que nem todos receberam bem a lei de Rio Verde. “Uns receberam bem, outros não tão bem. Eu acho que é normal acontecer desse jeito, como toda lei... tudo que é novidade existe os prós e os contras. Mas gerou polêmica”.

Gerou polêmica porque Rio Verde é um dos maiores produtores de grãos de Goiás e importante criador de frangos e suínos – uma cadeia produtiva que, na opinião do secretário municipal de Agricultura, Paulo Martins, não pode ser ameaçada.

“Nós temos aqui indústrias colocadas desde o início dos anos 70. Você tem desde a soja lá no campo até o frango, que é exportado”, argumenta Martins. “Para você ter uma idéia, nós temos 400 agrônomos atuando no campo hoje. Se nós voltarmos essa área toda para cana, nós não teríamos mais do que dez, 15 agrônomos para acompanhar tudo isso – porque é uma cultura só, monocultura bem mais direcionada nesse caso”.

A Perdigão, por exemplo, só veio para Rio Verde atraída pela fartura de grãos para alimentar os frangos e suínos de seus parceiros. “A cana-de-açúcar está em alguns municípios próximos que eram fornecedores de grãos nossos. Hoje, já não são mais”, diz o gerente de suprimentos da empresa, Marco Antônio Trichez. “Se a expansão continuar, provavelmente a gente tenha que buscar produtos mais longe”.

Na Comigo, a maior cooperativa de agricultores de Goiás, a restrição ao plantio da cana também foi bem recebida pelo presidente Antônio Chavaglia. E ele faz um alerta ao agricultor: “A orientação é que de maneira alguma ele arrende a terra para usina, porque na hora que ele arrenda para a usina, ele não vai na fazenda, não leva a família nem os filhos. Então, ele perde o domínio da sua propriedade e deixa de ser um produtor rural. Ele passa a ser um arrendatário, que vai receber um salário anual por aquela atividade que ele tem”, diz.

Já existe uma contestação judicial feita pelo Sindicato das Usinas de Açúcar e Álcool de Goiás para derrubar a lei. “Você não pode chegar para um proprietário rural que paga seus impostos, que tem a sua reserva legal, que tem um uso legal da sua atividade e proibí-lo de usar qualquer tipo de atividade agrícola na sua terra, seja o plantio de melancia, de tomate, de laranja ou de cana-de-açúcar”, argumenta Igor Montenegro, presidente da instituição. “Você pegar uma atividade agrícola específica e falar para o produtor que ele não pode fazer aquilo na terra dele é tolher o direito de livre uso da sua propriedade privada, o que é proibido pela Constituição Federal”.

Na única usina instalada em Rio Berde, o diretor George Iplinsk já sabe o que vai fazer se precisar de mais cana. “Se precisar de mais, nós vamos recorrer ao município vizinho, Montividiu, que está na divisa e tem uma legislação mais flexível”, afirma.

O prefeito Paulo Roberto Cunha se mantém inflexível e diz que o agricultor de Rio Verde que plantar cana sem autorização pode ser multado em pouco mais de R$ 5 mil por hectare. “Essa lei tem uma razão de ser. Assim como é de competência do município tratar do uso do solo urbano, é de competência dele tratar do uso solo rural”, justifica.

O prefeito discorda do argumento de que então deveria haver limites também para outros tipos de cultura. “Não enquanto a outra atividade não é desempregadora e a única cultura. Você tem a soja como uma cultura que permite a cana chegar até aqui”, explica. “Nós chamamos a cana para conviver conosco. Nós não proibimos a cana. Não somos contra a industrialização da cana, mas queremos que ela seja limitada”.

Ainda é cedo para saber se a lei de Rio Verde vai vingar ou não – nos tribunais e também no campo. Será que, na prática, ela vai limitar o avanço da cana e da monocultura? A polêmica existe e pode contribuir para um caminho que preserve empregos, meio-ambiente e a economia local.

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