Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Nos dias 12 e 13 de julho último, no Rio de Janeiro, a Rebrip (Rede Brasileira para a Integração dos Povos) realizou o Seminário Agrocombustíveis e a Agricultura Familiar e Camponesa. A proposta do seminário era a discussão da relação entre o avanço da produção de agrocombustíveis como nova matriz energética e sua relação com a agricultura familiar e camponesa. Especificamente, preocupam as condições de desenvolvimento da produção deste produto na agricultura brasileira e as efetivas condições de inserção dos agricultores familiares e camponeses nesta cadeia, além dos problemas ambientais. Outro tema de interesse e preocupação foi a ação do governo federal neste tema, interferência esta ainda não totalmente clara para os participantes e, no mínimo, controversa em relação às condições de consolidação da agricultura familiar na opinião de vários movimentos e pesquisadores presentes no seminário. O evento, contando com a presença de movimentos sociais, ONGs e pesquisadores de universidades brasileiras, debruçou-se sobre essas questões, podendo ser dividido em três grandes momentos. Um primeiro foi a apresentação de trabalhos científicos de pesquisadores do CPDA (Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP – Universidade de São Paulo. Um segundo momento da discussão constou das apresentações das visões, objetivos e experiências dos movimentos e ONGs sobre o tema dos agrocombustíveis e, num terceiro momento, a discussão sobre as estratégias de atuação frente ao atual momento de produção deste tipo de combustível no Brasil. Os estudos apresentados pelos pesquisadores deixaram claro que: 1. Há um novo momento de articulação do capital mundial que, a partir do aumento da liquidez oriunda da reintensificação da atividade e do comércio mundial puxados pela economia asiática, principalmente, busca novas formas de acumulação em investimentos produtivos pelo mundo. Como o Brasil é lugar de oferta de produtos da terra para o capitalismo mundial, há acertos entre fundos de pensão, de investimentos, etc, buscando financiar a produção no Brasil de álcool e óleo diesel a partir de matéria-prima vegetal (soja, mamona, girassol, dendê, cana-de-açúcar, etc). Neste sentido, os pesquisadores alertaram para a necessidade de estudos sobre o significado para a agricultura familiar e camponesa da associação entre a indústria e o grande capital financeiro. Na realidade, argumentam que esta associação pode estar trazendo uma nova etapa na lógica de reprodução do capital na agricultura que fatalmente trará mais dificuldades para processos autônomos de inserção dos agricultores dentro das cadeias produtivas. 2. Nesta associação entre a indústria e o capital rentista mundial, há a iminência da hegemonia deste capital sobre a pesquisa que se faz no setor. Os estudos deixaram claro que o que interessa para o capital mundial não é a produção de álcool a partir da cana-de-açúcar, caso da matriz energética brasileira, mas a investigação para o desenvolvimento de uma alcoolquímica, entendida como a cadeia produtiva de subprodutos do álcool que se pode formar à jusante e montante da produção do combustível. Como o capital que hegemoniza trabalha em escala mundial, o desenvolvimento da pesquisa para a produção de álcool a partir de outras matrizes (milho, celulose, etc) pode trazer, no futuro, problemas para a vantagem comparativa que hoje possui o álcool com base na cana-de-açúcar produzido no Brasil. A biotecnologia, desenvolvendo bactérias específicas para a decomposição dos açúcares presentes em outras matérias-primas, dentre as quais a celulose, principalmente, segundo estes estudos, parecem ser os mais promissores. 3. A matriz energética do futuro, pelo menos com o nível de tecnologia atualmente disponível, não será de matriz agrícola. Para chegar a esta constatação basta verificar que para que os norte-americanos substituam 10% de sua utilização de gasolina por álcool, há necessidade de uma área correspondente a toda área agrícola do Brasil. No caso de uma hipotética substituição de toda a matriz energética por agrocombustíveis, o cálculo é de que seria necessária a existência de um planeta três vezes maior. 4. Está havendo a entrada cada vez maior no Brasil de empresas mundiais com o objetivo de explorar a produção de agrocombustíveis. Tal entrada ocorre com a formação de empresas com capital aberto e ou fechado, que não adquirem diretamente a terra, mas ao adquirirem as empresas, donas de terras, se tornam donas de parte importante do território brasileiro. 5. Há riscos ambientais muito grandes em relação à produção de agrocombustíveis, caindo por terra a falsa idéia até então dominante de que seria uma matriz energética limpa, não geradora de poluição. Pelo contrário, a utilização de água somente na fase industrial da produção de álcool demonstra que para cada litro de álcool é necessário o consumo de até 100 litros de água. Além disso, o desenvolvimento de bactérias capazes de transformar em álcool a celulose, por exemplo, pesquisada no mundo por empresas também de capital mundial, fatalmente trará, sempre segundo os estudos, pressão sobre florestas cultivadas e ou os remanescentes de florestas nativas na América Latina e Ásia. 6. Nestas condições, e como resultado dos estudos apresentados no seminário, não dá para dizer que a produção de agrocombustíveis vá necessariamente melhorar as condições de vida da agricultura familiar e camponesa. Pelo contrário, o alerta é de que há uma relação grande entre a ação das empresas com o domínio da tecnologia, que trará dificuldades para os agricultores. Em relação a possíveis ganhos de tecnologia para as empresas brasileiras, podendo significar então uma nova inserção do país na divisão internacional no trabalho, com este deixando de ser ofertante de produtos da terra, verifica-se que na realidade não passam de ilusões. Para chegar a esta conclusão, basta verificar o que está ocorrendo com a atual organização do setor, onde há a entrada de capital mundial na exploração direta no processamento, na pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia. Neste sentido, sabendo que houve no Brasil até os anos 1980 o desenvolvimento do Proálcool, com base numa matriz desenvolvida por empresas estatais, que poderiam desenvolver uma alcoolquímica, mas que foi abortada, e como agora esta cada vez mais fica nas mãos de empresas não brasileiras, se pode então julgar melhor as razões do retorno deste tipo de tecnologia: como o império não admite experiências científicas e tecnológicas que não estejam sob seu controle, aquela experiência foi abortada, com sua retomada somente quando esta passa para seu controle. 7. Com estas características, a situação atual do setor está levando para um aumento considerável da produção de automóveis com a tecnologia do álcool ou do carro bicombustível, também denominado por parte de alguns de flex fuell. Assim, os estudos demonstram que 62% da frota de carros produzidos no país já têm esta tecnologia. A tendência é deste tipo de automóvel atingir em pouco mais de 5 anos uma participação superior a 80% da produção total de automóveis no Brasil. 8. Com isto, há uma tendência de crescimento da área ocupada e produção de cana-de-açúcar no país. Segundo o IBGE, a produção de cana no país já ocupou, em 2006, 7,04 milhões de hectares, 46% acima da área do início da década, enquanto a produção atingiu 457,98 milhões de toneladas, quase 41% acima da produção de 2000. Segundo o MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) a produção na safra 2007/08 passará dos 20 bilhões de litros, 90% acima da produção de 2000 enquanto o consumo chegará a pelo menos 16 bilhões de litros, 30% acima do consumo daquele mesmo ano. 9. Conseqüentemente, verifica-se a continuidade do papel do Brasil na divisão internacional do trabalho, que é o de exportador de produtos da terra. Isto porque, nas condições acima descritas, as exportações devem chegar em 2007 a mais de 4 bilhões de litros de álcool, o que significa um aumento de mais de 1660% desde o início dos anos 2000. Fica, assim, clara a razão do incremento da produção no território brasileiro que é o atendimento dos mercados forâneos. 10. Isto ocorre sem um aumento mais significativo no número de ocupações e emprego no campo, seja na produção de cana-de-açúcar, seja na produção de álcool. Segundo o IBGE/PNAD, o número empregos gerados pela produção de cana-de-açúcar em 2005 foi de 519,197 mil, apenas 25% acima daquele criado em 2000, mas bem abaixo do número de empregos gerado pela cana em 1992, de 674,63 mil empregos diretos. As discussões posteriores do seminário foram no sentido de entender as visões e objetivos dos movimentos ali presentes (Fetraf/Brasil, Contag e MST) no que diz respeito a seus projetos para o setor de agrocombustíveis no Brasil. Esta fase, contudo, pautou-se muito mais pela discussão da relação de cada movimento com a política nacional de agrocombustível, oficialmente denominada de Programa Nacional de Biodiesel. No geral, pelo menos no discurso, não há grandes diferenças de projeto entre os três movimentos, todos interessados com a “inserção” dos agricultores familiares e ou camponeses na cadeia, sem uma discussão de fundo das relações que produzem o atual estágio de organização da mesma, nem com projetos que modifiquem a fundo sua estrutura atual. Neste sentido, nenhuma organização apresentou uma alternativa radical ao projeto oficial de “biocombustível” atualmente operada pelo governo. As diferenças, a nosso ver, são apenas pontuais e conjunturais, na forma de operação do referido Programa. A Contag demonstrou claramente sua estratégia colaboracionista ao governo ao divulgar suas atividades de busca de inserção dos agricultores a projetos de empresas, buscando organizar os mesmos com o intuito de oportunizar a estes mais uma alternativa de renda nos estabelecimentos agrícolas. Esta estratégia, apenas facilita a vida das empresas, que utilizam uma estrutura supostamente sindical para reduzir seus custos de implantação de projetos. A linha de um sindicato que defenda os interesses dos trabalhadores, na tentativa de controlar os meios de produção para a construção de um outro regime sócio-metabólico entre sociedade/natureza é totalmente deixada de lado por esta estratégia. Esquece-se, a Contag, que na realidade as empresas necessitam de um número de agricultores na atualidade, mas que este número no futuro será menor, dada a necessidade da competição intercapitalista. Parece que a Contag não sabe como funciona o capitalismo. Do lado da Fetraf/Brasil e MST, por outro lado, houve críticas maiores ao programa oficial de “biodiesel”, pautando-se pela necessidade do governo gestar ações que garantam a existência de estruturas produtivas (agroindústrias processadoras) sob o controle de associações/cooperativas ligadas a estas duas organizações. Como pode-se perceber, no geral, estes movimentos não conseguem propor uma ação mais estratégica em relação ao tema, uma vez que acreditam que podem gerir um pequeno negócio dentro de uma cadeia que é atualmente mundializada, opção esta que passa, para ter sucesso, pelo domínio de conhecimentos de processos e de gestão, conhecimentos estes ainda totalmente à margem do que as organizações fazem e ou imaginam. Por um lado parecem desconsiderar as enormes dificuldades que as próprias organizações dos agricultores na atualidade encontram para sobreviver na competição intercapitalista, com pouco capital e pouco, quando nenhum, know how (experiência) de gestão, que os impelem, mais cedo ou mais tarde, à bancarrota ou a se restringir a nichos específicos de mercado, nichos estes específicos inclusive geograficamente, não sendo capazes de alterar a dinâmica hegemônica do sistema. Por outro parecem não entender a fase atual do capitalismo, fase onde os Estados mesmo do centro, quanto mais da periferia e semi-periferia do sistema do capital têm ínfimas condições de interferir nas estruturas dos mercados, regulando a acumulação, como bem demonstra a atuação do Estado brasileiro, o impedindo de tomar outras medidas a não ser arrumar agricultores supridores de matéria-prima para as indústrias de óleo diesel. Na realidade, faz a ação de reduzir, via fundo público, o custo das empresas, pagando técnicos e organizações para procurar e organizar a produção da matéria-prima, além de subsidiá-las diretamente com isenção fiscal. Neste sentido, um dos grandes problemas do seminário foi de não ter discutido a questão da gestão que exige o negócio do agrocombustível. No caso do álcool, há a necessidade de gestão sobre uma base territorial relativamente grande (dado que é viável a coleta de cana num raio de até 100 km da usina), transporte, armazenamento, logística industrial, além de todo o aparato de pesquisa, que pode dar conta, possivelmente em breve, da produção de álcool a partir de outros derivados vegetais, como visto acima, sem falar de suas relações com a indústria automobilística. No caso do diesel a partir de óleo vegetal, a questão é ainda mais complexa, pois para além da relação com a indústria de veículos, todos sabem que a maior resultante do esmagamento de algumas matrizes vegetais (a soja, por exemplo) não é o óleo, mas outros subprodutos, geralmente o farelo e a glicerina. Assim, na realidade verifica-se que o agronegócio do agrocombustível é um sub-negócio da indústria automobilística (álcool e biodiesel) ou da indústria de alimentos (biodiesel), especificamente do grande negócio mundial do farelo e do óleo. Este, no mundo, é dominado por quatro grandes empresas: as norte-americanas Cargill, Bunge e ADM e a francesa Louis Dreyfus. Os agricultores têm que ter em mente que entrar neste negócio é competir com estas empresas, o que exige capacidade gerencial, conhecimento de logística e capacidade de negociação que suas organizações não possuem e estão longe de possuir. Em pouco tempo, estas unidades até poderiam estar negociando o óleo, mas estariam totalmente nas mãos das grandes empresas do farelo, aquelas que dominam o mercado mundial, possivelmente entregando a elas próprias sua produção. Assim, fica patente que a proposta de pequenas unidades de produção de “biocombustíveis” ou álcool, na realidade não passa de “cavalo de tróia” para a continuidade da hegemonia do grande agronegócio sobre o pequeno. Esta opinião é derivada, inclusive, da opinião de um dos pesquisadores presentes ao seminário, que disse claramente não acreditar que pequenas unidades isoladas de produção destes produtos resolvam a questão da matriz energética do futuro. Desta forma, as grandes deliberações por parte das organizações presentes ao seminário foram, positivamente, reconhecendo que conhecem muito pouco da realidade, buscar conversas e diálogo com outros setores do governo que efetivamente definem a política governamental para o setor, além de conversas com organizações empresariais que definem a estratégia do agronegócio combustível no Brasil. Além disso, aprovou-se a continuidade das ações nesta área para a realização de uma “crítica contundente” ao modelo adotado no Brasil. O Deser alerta que dada a complexidade do tema para o agro no Brasil na atualidade, e cada vez maior no seu futuro, seria interessante que as organizações buscassem fazer análises mais aprofundadas da realidade, tanto do ponto de vista dos efeitos sobre o emprego, renda e meio-ambiente, na produção primária dos agrocombustíveis, quanto no setor industrial/financeiro, buscar entender suas lógicas de controle e gestão, se estas estão efetivamente interessadas em buscar “inserir” os agricultores de forma digna e diferenciada na cadeia. Da mesma forma, há que lembrar que a verdadeira crítica é feita na história, ou seja, só é feita quando se consegue alterar os rumos da história. Isto exige conhecimento da realidade e ação, ação consistente com uma teoria derivada da consideração dos profundos condicionantes da realidade. Por conta disso, nos parece que os movimentos sociais estão longe tanto da teoria quanto de uma ação efetivamente transformadora.

 

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