Confira artigo de frei Luciano Bernardi sobre a importância do Pacto das Catacumbas, que ontem completou 50 anos, e foi um marco no compromisso da Igreja dos pobres.
“Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra,
porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes,
e as revelaste aos pequeninos”. Mt 11, 25
“Com los pobres de la tierra
quiero yo mi suerte hechar”
frei Luciano Bernardi*
Fazer memória do chamado “pacto das Catacumbas”[1], para várias pessoas da minha geração, além da memória de um momento empolgante da igreja católica, significa fazer ressoar na realidade de hoje, posturas e atitude concretas sintonizadas com o evangelho e a prática de Jesus. Cinquenta anos atrás, este pacto provocou na história pessoal dos meus 19 anos e na história de muitos jovens, surpresa e entusiasmo. Este “pacto” não ficou ausente, pelo contrário, se aninhou entre as motivações mais profundas de muitos de nós e desembocou em muitos, inclusive em mim, na decisão de olhar, desde a Itália onde vivíamos, para o Brasil. O Brasil e a América Latina dos pobres e dos sonhos de dom Helder Câmara e de uma maneira nova de viver o evangelho, em fraternidades franciscanas. No desdobramento, da minha formação, amadureci, 8 anos depois do pacto das catacumbas, a decisão, de assumir o Brasil, como campo de vida e missão. O miolo motivador, em todos esses anos, foi sempre o mesmo: a coerência, de viver o evangelho, como batizados/as religiosos, religiosas, padres, leigos/as ou bispos, precisa incluir sempre “ser pobre e estar com os pobres”. Daqui não tem retorno e nem possibilidade de escapar.
Para os leitores tento ilustrar o pacto das Catacumbas pegando carona numa personalidade cristã que, mesmo não tendo participado diretamente deste pacto, a gente admirou e tornou-se para várias gerações, uma referência: Arturo Paoli, recentemente falecido com a veneranda idade de 103 anos. Me ajudara nesta breve ilustração um texto de uma historiadora italiana que nos forneceu reflexões e detalhes [2]
Arturo viveu as intuições e as motivações que esse seleto grupo de profetas/pastores assumiram no pacto das catacumbas; foram posturas e atitudes diferentes e questionadoras frente à instituição e aos comportamentos clericais comuns. Contracorrente, estas atitudes estão retornando a tona hoje e se concretizando por meio da personalidade de papa Francisco. Arturo Paoli, diante do “planeta dos pobres”, desde jovem, mas com maior vigor a partir de sua vivência latino-americana, foi um dos que mais radicalmente apontaram a necessidade de entrar neste “planeta” e se embeber dele num caminho sem retorno, como foi o caminho de Francisco de Assis ou de Vicente de Paula, só para citar duas personalidades indiscutíveis. Os pobres são o rosto de Cristo. Por isso a opção pelos pobres é radical, tendo presente também que são os pobres os que tornam clara, sem ambiguidades, a mensagem da justiça e da paz, valores imprescindíveis do Evangelho.
A polícia argentina, como também as polícias ligadas às várias ditaduras latino-americanas dos anos 70, incluindo a brasileira, buscaram Arturo e tantos outros e outras, como um agitador político, mas na realidade eles foram movidos pela solidariedade e pelo chamado “zelo apostólico” que os levaram a expressar avaliações muito severas e a fazer opções de campo inevitáveis, muito distantes das frequentes e tradicionais “prudências eclesiásticas”.
A assembleia dos bispos em Medellín (1968) proclamou, em alto e bom som, “a opção preferencial pelos pobres” e convidou também bispos e a igreja em geral a viver pobremente, com indicações que eram um eco claro do Pacto das Catacumbas.
Nós, que fazemos memória deste pacto de 50 anos atrás, não conseguimos esquecer a angústia e o momento delicado pelo qual passamos no final dos anos 80 e em seguida... quando fomos investidos por uma sensação de isolamento, quando não de condenação da teologia da libertação que estava dando seus primeiros passos em direção à espiritualidade do pacto das catacumbas. Lembro, ainda hoje, um sorriso, amargo e discreto, de um bispo, vivendo pobremente, ameaçado pela solidariedade que prestava aos posseiros de sua diocese. Eu assistia, ao lado dele, o Jornal Nacional da globo. Após a notícia da publicação do documento papal censurando a teologia da libertação, na conclusão do Jornal, o âncora de sempre dessa emissora, concluía, com voz grave e pausada, enfatizando: “O papa deixou bem claro, neste documento, que Jesus salva, Marx, não. Boa noite!”.
Não se pode negar, na nossa visão, que houve um desacerto entre a visão e a metodologia, que se solidificaram, ao redor de papa João Paulo II e Bento XVI em vista da continuidade e da manutenção. Ainda hoje, no meio do episcopado, há dificuldade em reconhecer que o Concilio Vaticano II, o mesmo que “originou “o “pacto das Catacumbas”, com suas propostas concretas e históricas, fruto do Espírito e encarnadas, estava apontando outros passos de uma nova floração para a velha árvore eclesial... e não somente para uma reciclagem...
Numa correspondência de 1984 a uma amiga de São Leopoldo (RS), Arturo Paolo lembrava uma conversa tida com o bispo de Caxias do Sul (RS), dom Moretto, após o conhecido documento de Ratzinger que censurava a Teologia da Libertação. Arturo comentava que o decreto de advertência do Santo Ofício, “poderia ajudar a controlar nossa linguagem que, às vezes, com boas intenções, pode ressoar mal... eu também confesso- dizia ele - posso ter dado motivo de crer que meu linguajar era mais político que religioso. Aí – continua sempre Arturo, o bispo me interrompeu: “Nada disso! Discordo de você porque a razão pela qual nos lhe aceitamos e aprovamos, é exatamente esta: sentimos que você está na linha da teologia da libertação, mas você não se desliga da linguagem da fé. Confesso – acrescentava Arturo, na citada correspondência à historiadora que nos refere este fato – que esta declaração não buscada mas espontânea, me deixou alegre”.
Parafraseando o escrúpulo de Arturo e o encorajamento do bispo dom Moretto, quem sabe, poderíamos dizer que no dia em que bispos, pastores e padres, religiosos e religiosas, animadoras e animadores das comunidades de nosso Brasil de hoje, declararem algo análogo, dirigindo-se a todos e todas que lutam e sofrem sinceramente por um mundo mais justo, participativo e humanizado, por causa da fé e da prática evangélica, até entregando suas vidas, nós da CPT e das outras pastorais, ficaremos mais alegres! E o evangelho de Jesus, sem nenhum triunfalismo, será realmente uma boa notícia de Deus para quem precisa dela. Como brotou espontâneo e nos encheu de ânimo ouvir isso dos pobres, no recente Congresso Nacional da CPT em Porto Velho-RO, no julho passado.
De uma coisa eu tenho certeza: entre os germes abençoados que fizeram brotar a CPT e outras pastorais dirigidas aos pobres, com certeza, está o “pacto das catacumbas”!
*Coordenador da CPT na Bahia.