“A situação de sucateamento do Incra reflete, também, a exemplo do que ocorre com várias outras instituições do governo federal”, constata o presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
A opção do Estado brasileiro pela expansão do agronegócio e exportação de commodities para o mundo fez com a que a reforma agrária deixasse de ser uma prioridade, “o que constrange parcela do PT”, aponta Gerson Teixeira.
Tal posição, assegura, “não pode ser assumida explicitamente por razões políticas. Então, se mantém o discurso do compromisso com a reforma agrária, mas se pratica o definhamento da capacidade operacional do órgão responsável pela sua execução”. O projeto do agronegócio reflete no Incra, que vem recebendo constantes críticas por causa da atuação nos últimos anos.
Na avaliação de Teixeira, a crise por que passa a instituição é consequência do fato de o Incra ter se transformado “em uma verdadeira confederação de autarquias estaduais para atender a interesses locais, em muitos casos, descolados do projeto nacional de reforma agrária”.
Para ele, o discurso de que a realização da reforma agrária tem alto custo financeiro é “falso”. “O que não dizem (e não enfrentam) é que esses custos nada têm a ver com as necessidades reais de financiamento da obtenção de terras e, tampouco, com as necessidades de recursos para o desenvolvimento dos assentamentos. Na verdade, esses custos refletem ralos institucionais que irrigam os cofres do latifúndio com recursos do Tesouro”, esclarece.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Teixeira também analisa a atuação do MST no processo de reforma agrária, e diz que a posição do movimento é “difícil”. “A hegemonia absoluta do agronegócio lançou o MST para situação de impasse. Não pode aceitar essa estratégia que vem desde 2003, mas não pode se insurgir contra os aliados sob pena de várias consequências no campo institucional, inclusive, a de ficar vulnerável à sanha da direita pela criminalização das lideranças do Movimento”, assinala.
Gerson Teixeira é engenheiro agrônomo, especialista em desenvolvimento agrícola pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ), e doutorando em Teoria Econômica pela Universidade de Campinas (Unicamp).
Confira a entrevista.
A que atribui a crise vivenciada pelo Incra atualmente?
A reforma agrária não é prioridade do governo, o que constrange parcela do PT. Contudo, essa posição não pode ser assumida explicitamente por razões políticas. Então, se mantém o discurso do compromisso com a reforma agrária, mas se pratica o definhamento da capacidade operacional do órgão responsável pela sua execução, e são mantidas legislações e normas sobre a matéria, amplamente restritivas das possibilidades de mudanças estruturais na posse ou no uso da terra no Brasil.
Idealmente, desde os interesses do projeto estratégico que tem o agronegócio no seu núcleo, o Incra seria transformado em um órgão de terras de âmbito nacional com atribuições de política fundiária para regularizar posses e ocupações e, assim, garantir segurança jurídica para os investimentos capitalistas na agricultura.
Qual é a avaliação para os índices da Reforma Agrária no governo Dilma Rousseff terem sido os piores da última década?
Como disse, a reforma agrária não está na agenda de prioridades do governo. E isso está desse modo por algumas razões. A central está associada ao projeto estratégico de interesse das empresas transnacionais que controlam de forma direta ou indireta o agronegócio brasileiro da "meia dúzia" de produtos nobres.
Afora outros fatores, a rendição interna a esse projeto traduziu a aceitação da tese sobre a inexorabilidade de um processo de primarização intensiva da economia por força da divisão internacional do trabalho, dada que no caso agrícola nos projeta como um "fazendão" do mundo.
E essa "duvidosa opção" foi facilitada pelo período recente de boom nos preços das commodities agrícolas, que tem proporcionado bilhões de dólares para o país em receitas das exportações agropecuárias, o que têm sido fundamental para a administração das transações correntes.
Essa estratégia levou à plena abertura ao capital externo, inclusive na apropriação das terras. Foram desenvolvidos amplos e diversificados instrumentos de estímulos econômicos e financeiros ao agronegócio, com inovações recentes introduzidas pelo Novo Código Florestal para os agronegócios verdes tendentes a estimular fenômeno de reconcentração fundiária. Foi flexibilizada a política ambiental; estabelecido estado de vulnerabilidade para as áreas protegidas como um todo; implementado o PAC para permitir a saída pelo Pacífico para os produtos primários brasileiros; e viabilizada a criação de "empresas brasileiras de classe mundial" para a disputa desses mercados.
Mudança política
Por razões óbvias, esse cenário não comporta uma política efetiva de democratização da terra e das políticas agrícolas. Primeiro, por que iria transferir para os camponeses fração do território rural cada vez mais disputado pelo empreendimento capitalista e, segundo, pelo fato de que iria desagradar a extensa base ruralista do governo com as consequências previsíveis no Congresso.
Contudo, no plano do discurso, destaco os falsos argumentos de cunho fiscalista usados para a demonstração dos custos exorbitantes do programa de reforma agrária. O que não dizem (e não enfrentam) é que esses custos nada têm a ver com as necessidades reais de financiamento da obtenção de terras e, tampouco, com as necessidades de recursos para o desenvolvimento dos assentamentos.
Na verdade esses custos refletem ralos institucionais que irrigam os cofres do latifúndio com recursos do Tesouro. Temos a excrescência dos juros compensatórios que incidem sobre os valores da desapropriação, desde a data da contestação judicial pelos latifundiários dos preços ofertados pela terra pelo governo, até o dia o dia do efetivo pagamento definido pela Justiça.
Essa verba infla de forma exponencial, indevida e imoral o custo do programa de reforma agrária. Enquanto a Selic está em 8% ao ano, os juros compensatórios alcançam 12% aa. Na média, aumentam em mais de 50% o valor principal da indenização.
No ano passado os trabalhadores lutaram e conseguiram reforço orçamentário de R$ 400 milhões para o Incra, mas foram os advogados dos fazendeiros que comemoraram. Rasparam quase tudo por ordem judicial. Considere-se também a remuneração excessiva dos Títulos da Dívida Agrária – TDAs em alguns casos, corrigidos pela TR+6%. Enfim, são anomalias em benefício do latifúndio que encarecem o programa e que ardilosamente são usadas para condená-la.
Há anos fala-se que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra trata-se de um órgão sucateado e inoperante. Nesse tempo todo não foi possível torná-lo um instrumento mais eficaz? O que acontece com o Incra?
Além de refletir a periferização política da reforma agrária, a situação de sucateamento do Incra reflete também, a exemplo do que ocorre com várias outras instituições do governo federal, o resultado das reformas neoliberais empreendidas pelo governo FHC. Esse governo promoveu a distinção ridícula entre carreiras de Estado e de governo, criando uma burocracia de segunda classe da qual o Incra faz parte.
Para restabelecer um padrão mínimo da sua capacidade operacional para a missão da reforma agrária, haveria a necessidade de várias medidas do governo, tais como a requalificação profissional, concurso público para a reposição do enorme hiato de quadros que se aposentaram ou estão em processo; revisão das desigualdades remuneratórias internas; e definição de plano de cargos e salários compatíveis com a missão.
Além disso, o Incra precisa de modernização tecnológica e de condições de logística capaz de dar suporte às suas atividades.
Uma das razões para o travamento do Incra estaria no fato de que se transformou num espaço de disputa entre correntes internas do PT e do MST. Como o senhor vê essas disputas e que prejuízos trazem para a reforma agrária?
Na verdade, a disputa pelo Incra, em especial, pelas superintendências estaduais, envolve todos os partidos da base do governo. Por conta disso, o restante do corpo do Incra não responde à cabeça, criando, assim, situação insuperável de impasse administrativo.
Nos estados, os dirigentes do Incra respondem aos grupos que lhes dão sustentação, por vezes simplesmente sobrepondo o comando central. Assim, o Incra foi se transformando em uma verdadeira confederação de autarquias estaduais para atender a interesses locais, em muitos casos, descolados do projeto nacional de reforma agrária.
Quais foram as mudanças introduzidas por Dilma Rousseff no Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA e no Incra? Comenta-se que a presidente deseja uma reforma agrária que se oriente por decisões mais “técnicas”. Que orientações são essas?
A presidente tem razão ao exigir eficiência e competência nas ações do Incra e MDA. Contudo, isso depende das medidas antes colocadas de recuperação do Incra, no caso, e de revisão da legislação que inviabiliza financeiramente a reforma agrária.
O fato novo é que, neste momento, com um presidente do Incra organicamente ligado à Democracia Socialista – DS do RS, certamente será quebrada a relação de desconfiança política que há muito prevalece entre ministros do MDA e presidentes do Incra, de outras correntes do PT e com maiores afinidades com os movimentos sociais.
Contudo, trata-se de uma mudança que não tem nenhum significado em termos de mudança de postura em relação à reforma agrária. Até poderemos ser surpreendidos com alguma recuperação da performance do programa de reforma agrária, nos limites aceitáveis pelo projeto estratégico do agronegócio, mas isso não será em decorrência substancial da mudança no comando do Incra.
Por outro lado, Dilma vê a reforma agrária como uma linha auxiliar ao seu projeto de Erradicação da Miséria. É correta essa visão?
Um verdadeiro programa de reforma agrária é essencial para a superação da miséria e para outro projeto de nação no Brasil. Com o que temos tido mais recentemente atenuam-se os efeitos da miséria, mas sem superá-la sequer entre as famílias assentadas que, em parte, notadamente na Amazônia, apresentam-se em condições materiais que constrangem os indicadores básicos da cidadania.
Qual a avaliação o senhor faz sobre a posição do MST diante dos resultados pífios da reforma agrária no governo Dilma? Muitos consideram que o Movimento está muito cordato com a presidente.
A posição do MST é difícil. A hegemonia absoluta do agronegócio lançou o MST para situação de impasse. Não pode aceitar essa estratégia que vem desde 2003, mas não pode se insurgir contra os aliados sob pena de várias consequências no campo institucional, inclusive, a de ficar vulnerável à sanha da direita pela criminalização das lideranças do Movimento.
Como alternativa ao arrefecimento da luta pela terra, o MST passou a combater fortemente o agronegócio. No entanto, ainda que refletindo diagnóstico tecnicamente correto, no plano político essa reorientação das lutas não acumulou ao ponto de impor qualquer ameaça ao agronegócio. Tanto que, por exemplo, nos anos recentes passamos a liderar o consumo mundial de agrotóxicos.
A luta pela terra, além de ter proporcionado a cultura que permeou o desenvolvimento do MST e a sua ampla legitimação política, é a luta que unifica todos os movimentos de origem camponesa. Além do mais, ampliar a participação dos camponeses na apropriação dos territórios significa muito mais que uma conquista corporativa dos camponeses.
Bem mais, também, que uma justa e necessária conquista relacionada à distribuição mais simétrica da terra. Sobretudo, a expansão do território camponês é um ato pela soberania nacional no controle do nosso território e da riqueza e diversidade dos nossos recursos naturais, atualmente sob fortes ameaças de controle externo.
Enfim, a luta pela terra potencializa as disputas com o próprio agronegócio e, por extensão, possibilita condições de luta por um modelo de agricultura em maior grau de harmonia com o meio ambiente e com os propósitos da segurança e mesmo da soberania alimentar.
6 de agosto de 2012, Do IHU On-Line