Há pouco mais de uma semana, Nilcilene Miguel de Lima, 45, se viu obrigada a se desfazer repentinamente de sua lavoura no assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável Gedeão, na zona rural de Lábrea (a 702 quilômetros de Manaus). A causa: a ousadia e a certeza da impunidade por parte de pistoleiros e madeireiros havia atingido também os policiais da Força Nacional de Segurança que a escoltavam havia seis meses.
A promessa de uma emboscada, que antes era restrita a Nilcilene (obrigada a usar permanentemente um colete à prova de bala), também havia chegado aos soldados enviados pelo Ministério da Justiça para proteger a agricultora. Sem dar outra alternativa, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), que pedira a escolta, a retirou do assentamento.
Perseguida e ameaçada de morte seguidamente desde 2009, quando começou a denunciar retirada de madeira de assentamentos e expulsões de extrativistas e pequenos agricultores de seus lotes pelos pistoleiros, Nilcilene hoje é uma mulher arrasada. Não consegue esconder sua contrariedade por ter perdido sua plantação de café, banana e pupunha e se afastar dos amigos e vizinhos, muitos dos quais inteiramente dependentes de sua liderança.
Mostra-se indignada por saber que suas denúncias foram em vão. Ninguém, nenhuma autoridade, foi ao local, verificar o que está acontecendo na área, comprovar a retirada de quase toda a madeira dos assentamentos e atestar se as licenças de plano de manejo são corretamente empregadas. E não apenas isso: se os detentores destes planos tinham, de fato, direito a eles.
A reportagem do jornal A Crítica foi ao encontro de Nilcilene. Sua nova moradia deve ficar no sigilo. Sequer ela sabe se vai continuar morando ali - diz que tem certeza que será morta caso seu paradeiro seja descoberto.
Tudo em Nilcilene, da expressão facial que traduz ira e preocupação à voz embargada e ao mesmo tempo tomada de indignação, revela a desolação de alguém que não foi levada a sério, que foi sacrificada ao sair de sua terra e permanecer longe da família e dos amigos.
Leia a seguir a entrevista que Nilcilene concedeu à repórter do jornal A Crítica, Elaíze Farias:
Como você se sente desde que foi obrigada a sair de sua terra?
Estou indignada. É uma tristeza. Eu falo assim, mas é com ódio. Havia sido tudo queimado e eu estava começando de novo. Agora tive que abandonar tudo e os bandidos, os pistoleiros, os madeireiros ficaram. Soube que fizeram festa quando saí de lá, mataram um boi. Isso deixa qualquer pessoa indignada. Eu acreditava que quem era para sair eram os grileiros e pistoleiros, não a pessoa que estava lutando realmente pelo meio ambiente e pela vida do ser humano. Mas quem saiu foi eu. Enquanto isso eles estão lá dando risada, tranquilos.
Que ameaças você vinha recebendo desde que passou a viver com escolta?
Eles diziam que meu corpo estava protegido, mas a minha cabeça não estava. Falavam que nem a Força Nacional podia com eles. Diziam “somos mais nós!”, para provocar.
O que você deixou na sua terra?
Deixei cinco mil pés de pupunha, 600 pés de banana, mais de 3,5 mil pés de café, plantei açaí. Sabe... (olhos marejados, voz embargada) As pupunhas estão boas de tirar, está produzindo. Dá pra tirar o palmito.
O que sentiu quando lhe comunicaram que tinha que sair? Você já previa isso?
Eu sentia isso com muito medo. Os soldados da Força Nacional avisavam que se houvesse uma emboscada não escapava ninguém, nem eles. E eles não queriam mais entrar (no assentamento). Me tiraram do assentamento e me levaram para outro lugar. Quando eu estava nesse outro local, me ligaram dos Direitos Humanos e avisaram que iria ter uma reunião. Na volta, virei uma prisioneira num quarto de hotel. Enquanto isso, os grileiros e os pistoleiros continuam tirando madeira.
Você ficou decepcionada com a solução dada pelo governo federal quanto à sua proteção?
Eu achava que iria ter alguma solução, uma investigação. Houve outra coisa que eu achei um absurdo. Na primeira reunião nos Direitos Humanos me falaram que tinham “concluído” a emboscada, que havia sido investigado. Mas na última reunião falaram que não tinha sido feito nada. Que não tinham enviado nenhum documento. Por que a Força não foi na delegacia e registrou uma queixa? É preciso uma investigação em cima da Força.
E depois da sua saída?
Soube que os assentados estão indo embora. Se tiver muito devem ser apenas 10 pessoas. Só os madeireiros estão vivendo dentro do assentamento Gedeão. Eles estão comandando. Se for feita uma vistoria, não tem mais madeira. Eles estão expulsando os seringueiros, embora muitos ainda estejam resistindo.
O que você gostaria que as autoridades fizessem na área?
Já pedi várias vezes que fizessem investigação. Pedi nos Direitos Humanos, em vários lugares. Tenho certeza que o Governo do Estado do Amazonas sabe. Eu queria que os governos olhassem para as comunidades. Que regularizassem logo as terras. Queria que dessem valor aos seringueiros, que são os legítimos defensores da natureza. Eu falei com o Luiz Antonio (superintendente do Programa Terra Legal) de uma área de 100 mil hectares que está sendo vendida pelos grileiros. Ele disse que não poderia fazer nada. Hoje me sinto até doente. Se ele não pode, quem vai poder?
Sem a presença do Estado, quem ainda defende a região?
A gente não sabe por que dizem que tem esse tal de Meio Ambiente (se referindo ao órgão estadual). Esse Meio Ambiente não está defendendo o meio ambiente. Quem defende o meio ambiente são os seringueiros, os índios e os pequenos produtores. Mas muitos já perderam a vida. Tem que existir Meio Ambiente que defenda mesmo e que não seja só do papel. Que trabalhe, que faça fiscalização em todos os lugares, em todos os assentamentos.
Como os madeireiros invadem e expulsam os assentados?
Os pistoleiros vão lá com a arma e expulsam os pequenos produtores. Tem o caso da dona Antônia. O grileiro chegou, cercou a terra e ela teve que sair. Ela não tinha para onde ir. Vivia há dez anos na terra. E agora não tem direito a nada. Os seringueiros que aceitam sair dali vão para Califórnia (distrito de Rondônia) passar fome. Como aconteceu agora mesmo com o seu Francisco. Deram 24 horas para ele sair. E eles vão grilando e fazendo “plano de manejo”. Sabe por que isso acontece? Porque não tem presença do Estado. E quando tem, faz isso: aprova projeto de manejo em cima de grilagem. A gente queria mais o Ibama, quando agia. Mas a gente nem sabe o que ele faz.
Como os madeireiros têm acesso a esse plano de manejo?
Os grileiros expulsam e depois vão atrás dos planos de manejo. Eu acho isso um absurdo. O Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas) aprova os planos de manejo em cima da terra da União, em cima da grilagem que os grileiros estão fazendo. Estão tirando madeiras, carradas e carradas. Já cansei de denunciar, mas eles não vão lá fiscalizar. Dentro do assentamento Gedeão tenho certeza que já retiraram todas as madeiras.
O que acontece com os que não aceitam a autoridade dos madeireiros?
Ou você trabalha para eles e acha que está protegido ou tem que ir embora. Os fazendeiros fizeram reunião com os produtores para eles pagarem a estrada com madeira. Por que o governo não faz estrada? A gente sabe que teve projeto para lá. Mas a gente não sabe para onde foi o dinheiro.
Como é feita a retirada das pessoas que não querem trabalhar para eles?
Os madeireiros botam para correr. Aconteceu com o tesoureiro da associação do assentamento Gedeão. Foi pressão demais. Um rapaz da Força Nacional perguntou o que tinha acontecido e ele disse que tinha sido ameaçado. Disseram “quem for mais próximo dela (Nilcilene) vai morrer”. Aconteceu uma coisa horrível com a mulher dele que não quero dizer aqui porque ela não fez boletim de ocorrência.
E o que aconteceu com as pessoas que fizeram estas ameaças?
São os mesmos caras que tinham ficado lá três dias para me matar, o Negão da Silvana e o Pit-Bull. Eles continuam lá, tirando madeira. Esse rapaz, tesoureiro, vinha preservando um cedro (árvore de madeira nobre) de 100 anos que estava no terreno da família. Foi a primeira coisa que eles (madeireiros) tiraram.
Quem são esses madeireiros que invadem as terras?
É um pessoal de Rondônia. Eles têm serrarias em Califórnia. E outras que continuam abrindo. Têm político grande que apoia eles, que não vou falar porque corro mais risco ainda. Eles dão cobertura para os madeireiros.
Para onde vai essa madeira tirada das áreas?
O que falam é que a madeira está indo para São Paulo.
Por que essas coisas acontecem tão facilmente naquela área?
Porque não tem presença do Estado e não tem fiscalização. Em 2011, o Ibama prendeu o caminhão do Pit-Bull, mas isso ocorreu porque passou por cima (sobrevoo de helicóptero) e os fiscais viram. Mas não que entraram para fazer apreensão de madeira. É uma coisa que não entendo. Por que a justiça, as autoridades, não fazem uma investigação?
Você tem notícias das outras pessoas que moram no assentamento?
Estão tudo indo embora. Só estão ficando os que ficam do lado dos madeireiros. Na linha 1, onde moro, só tem uma moradora. Penso nos outros que ficaram. Eles vieram chorando quando saí de lá. Eu não falei que iria embora. Disse que iria sair para me tratar, que não iria abandonar. Mas acho que eles não acreditaram. E meu marido continua correndo perigo, escondido por aí.
Como é a área do assentamento?
Tem a Linha 1, tem o Ramal dos Goianos, o Ramal dos Seringueiros, o Ramal da Castanheira. Tudo é um assentamento só. O nome vem de um líder que mataram no passado na luta por terra, Gedeão. Não tem nada lá. Não tem energia. Falam que não podem levar porque é área de conflito. Não tem nada a ver. Lá tem 90 crianças para estudar. Não conseguiram pessoas para trabalhar. As crianças estão sem estudar.
Desde quando você morava em Gedeão?
Quando eu vivia em Extrema (RO) conheci o finado Gedeão, que me chamou. Eu era louca para conseguir um assentamento, era meu sonho. E foi isso que eu fiz. Entrei em 2002, mas eu saí e tornei a voltar em 2004. Estou há sete anos em cima desta terra. Mas eu quero voltar. Espero que a justiça faça alguma coisa. Não abandonei. Realmente se eu soubesse que eles não iriam me matar torturando eu voltaria, porque só um tiro não dói tanto.
Em que momento e por que você passou a sofrer perseguições e ameaças?
Foi em 2009, quando denunciei a retirada de madeiras e quando comecei a ver eles tirando castanheiras também dentro do assentamento PDS Gedeão e na gleba Iquiri toda.
O que você espera fazer da sua vida agora?
Sei que os bandidos estão lá e eu tive que sair. Nem sei onde vou ficar. Caso eles saibam onde estou, sei que me matam. Estou doente, tomando remédio, com acompanhamento psicológico. Não sei nem o que te falar. Não tenho mais força para trabalhar. No dia da reunião dos Direitos Humanos perguntei se eu tinha direito à indenização. Me disseram que não. Café, pupunha, reflorestamento que eu fiz também... Não tenho direito a nada sobre tudo que deixei.
fonte: Acritica.com