Novato no governo federal, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Afonso Florence, é responsável por tocar uma ampla agenda de temas incômodos à presidente Dilma Rousseff. Da reforma agrária à regularização fundiária, da reestruturação do Incra aos assassinatos de líderes rurais na Amazônia, além de negociações com movimentos sociais e a turbulenta convivência da agricultura familiar com o agronegócio empresarial. Mesmo assim, em seis meses no Ministério, o historiador baiano de 50 anos tem levado ao pé da letra a ordem de evitar divergências internas no governo, como determina a presidente. Discreto, fala pouco em público. Nos bastidores, é assertivo. Foi assim durante os debates do Código Florestal e tem sido assim na revisão dos índices de produtividade para fins de reforma agrária.
Eleito deputado federal com 143 mil votos, na Bahia, Florence integra a influente tendência Democracia Socialista, da esquerda do PT. Mas sua atuação no ministério, diz, seguirá apenas a "ideologia da presidenta". Afilhado político do governador baiano Jaques Wagner (PT), entende a vigorosa cobrança da militância social no campo, mas defende a integração da agricultura familiar ao agronegócio. E reitera que reforma agrária não rima com luta política, mas com produção: "Proselitismo ou controvérsia ideológica não produzem alimentos".
Em sua primeira entrevista exclusiva, Florence anuncia um redesenho no setor rural, novos eixos de "organização produtiva" e assentamentos com "mais qualidade", além da regularização fundiária da Amazônia Legal. E diz que a liderança, agora, é de Dilma, e não do ex-presidente Lula.
A entrevista é de Mauro Zanatta e publicada pelo jornal Valor, 22-06-2011.
Eis a entrevista.
Qual é o papel central do MDA com Dilma Rousseff?
É outro país, um novo governo. Temos resultados expressivos do último período, um país que cresce e se desenvolve com distribuição de renda, inclusão produtiva e segurança alimentar. As decisões que a presidenta Dilma já tomou põem as políticas para a agricultura familiar e a reforma agrária no centro do modelo de desenvolvimento do governo. Os exemplos são a liberação de todos os recursos do orçamento para obtenção de terra em 2011 (R$ 530 milhões) e para assistência técnica (R$ 127 milhões), a organização econômica da agricultura familiar, seu peso no PIB, a repercussão no setor industrial e de máquinas, na inflação e na qualidade nutricional. A pujança da agricultura familiar encontrou correspondência e apoio estratégico nas decisões da presidenta. É um pilar e o MDA aprofunda seu papel protagonista.
Que tipo de reforma agrária ainda é necessária ao país?
A orientação do governo é fazer a reforma agrária nos termos da necessidade do país, tanto dos demandantes de terra para morar e trabalhar quanto da nação, que precisa de estabilidade demográfica rural, produção de alimentos e paz no campo. O país tem experiência de governos anteriores ao presidente Lula, e não só do governo Lula, que a reforma agrária passa pelo monitoramento da dinâmica do agrário e do fundiário, mas tem a dimensão produtiva, da industrialização e da comercialização. Estamos, nesse momento em que economia nacional vive um crescimento, experimentando um redesenho do rural. A reforma agrária continua na pauta como prioridade do governo e da sociedade, mas ganhando significado correspondente a essa nova dinâmica do rural. Regiões antes deprimidas agora têm novas atividades. Regiões de pecuária agora produzem etanol ou grãos. Temos como orientação aprofundar a reforma agrária com fortalecimento e aperfeiçoamento do MDA e do Incra, mas buscando essa nova dinâmica.
Significa mudar o eixo e a localização da reforma?
É mudar tudo. Fazer uma reforma onde assentados se insiram em uma dinâmica produtiva, de geração de produção, produtividade, oportunidades, qualidade de vida e alimentos ao país, dentro de um novo contexto econômico e político, posterior aos oito anos de Lula. A liderança agora é da presidenta Dilma. Vamos buscar o bom gasto público, apurar a capacidade de obter terras com qualidade, assentar com qualidade, acelerar o processo de inclusão produtiva. Tudo com responsabilidade fiscal e do aperfeiçoamento da gestão pública, em particular no Incra.
Haverá metas para assentamentos?
O estabelecimento de metas sem uma amarração objetiva no que diz respeito a disponibilidade orçamentária e tramitação de processos em órgãos externos ao Executivo, não. O processo de obtenção de terras muitas vezes tem uma postergação externa, tramita no Judiciário, em um juiz de primeira instância. Nossa orientação é trabalhar com parâmetros muito precisos. Teremos o PPA com objetivos, propostas e parâmetros, mas não vamos subir o tom de metas. Vamos buscar efetividade e qualidade nos gastos e ampliar o número de assentados. Reitero a liberação de todo o recurso para obtenção de terras como decisão de grande envergadura. Claro, em todas as áreas o país tem muito passivo, inclusive na área fundiária. Queremos produzir justiça fundiária e paz no campo. Reforma agrária é prioridade nacional.
Mas ainda cabe a reforma agrária nos dias de hoje?
Depende de quem pensou e o quê pensou. Tem muitas formulações. Vamos fazer a reforma que o país precisa. Não é para atender luta política, É para garantir acesso à terra a quem nela precisa produzir e viver, garantir produção e produtividade aos assentados, alimentos para nutrir o país e também para conter a inflação. Criar um círculo virtuoso e dinâmico no rural.
Então, não haverá espaço para ideologia?
O que estou dizendo é ideológico. Ou não é? Esperem em mim a ideologia que a presidenta lidera, não esperem a sua ideologia. Esperem em mim a ideologia da presidenta.
E a relação com os movimentos sociais do campo?
Há mecanismos regulares de mediação isonômicos. Os movimentos sociais de luta pela terra e da agricultura familiar encontram no MDA e no Incra mecanismos permanentes de mediação. Além disso, a presidenta Dilma determinou a consolidação dos processos de negociação, em todas as áreas, sob coordenação da Secretaria-Geral da Presidência, do ministro Gilberto Carvalho. A pauta dos movimentos contêm muitos itens de responsabilidade de outros ministérios. Não é só terra.
Mas isso não esvazia o MDA?
Pelo contrário. O papel do MDA é executar a política pública de reforma agrária e da agricultura familiar, e não negociar com os movimentos. Essa é uma função fundamental, mas não é atribuição legal da política pública que nós temos. A mediação é da Secretaria-Geral, como o ministro Luiz Dulci já fazia. Vamos aperfeiçoar mecanismos de negociação com os movimentos, mas coordenar, elaborar a política pública, gerir o fundiário nacional e fazer a reforma agrária e a organização produtiva. Vamos dar muita atenção à capacidade de produção e produtividade nos assentamentos da reforma agrária.
Dificulta ser um ministro menos próximo da presidente Dilma?
Primeiro, não há distinção entre as atribuição dos ministros Gilberto Carvalho e Luiz Dulci. Ele coordenava e o MDA acompanhava. Exatamente como houve nesse ano. Agora, como posição de governo, teremos regularidade, com a mesa aberta para negociação a cada dois meses. É um avanço do conjunto. Também não há distinção maior de distância minha em relação à presidenta do que havia com o ministro Guilherme Cassel. Fui secretário do governador Jaques Wagner, coordenei o PAC Habitação, convivi regularmente com a presidenta Dilma, então ministra da Casa Civil. Tinha relação muita direta com o governador, convivi muito intensamente com a ministra Dilma. Também convivi com a ministra Miriam Belchior e o ministro Márcio Fortes.
Mas o senhor tem essa proximidade?
Tranquilizaria a todos os interlocutores que o governo é muito profissional. Qualquer membro, independente da origem partidária, tem encontrado instrumentos de gestão e órgãos colegiados. Isso tem funcionado muito a contento. Todos os ministros estão muito integrados. Com relação ao MDA, os anúncios da presidenta são a prova mais cabal do grau de prioridade que ela dá ao ministério, independente de quem seja o ministro. Mas se não tiver esse lado picante, tem muita gente que não fica satisfeita.
A presidente reclamou do programa Terra Legal. O que fazer para regularizar as terras?
O Brasil tem um passivo fundiário monumental. Em milhares de municípios, nem a prefeitura tem escritura. Na Amazônia Legal, em terras da União, 200 municípios não têm escritura. O Terra Legal criou uma secretaria nacional de regularização no MDA, com um braço no Incra, e em alguns casos em convênio com os municípios. Salvo casos pontuais, a lei é de 2009, temos previsão de emitir 20 mil títulos este ano. A presidenta determinou mais celeridade. Mas tem que georreferenciar. Teve litígio de empresas, tivemos que licitar. A empresa ganhou tinha que fazer licenciamento ambiental para retirar o arvoredo porque não pegava o ponto focal. Ou seja, tivemos distintos obstáculos. O Terra Legal, grosso modo, está dentro do calendário. Mas não estamos satisfeitos com ele, o país precisa de soluções mais céleres. Estamos criando dois escritórios em parceria com o Amazonas, um em Boca do Acre e outro em Humaitá, e uma série de outras providências com Rondônia para assegurar a execução mais efetiva.
Como o MDA atuará para evitar novas mortes de líderes rurais na Amazônia?
Florence: O MDA sempre estará no centro quando o interesse nacional, de preservação da vida e do desenvolvimento sustentável do rural estiver pautado. Nesse caso, é caso de polícia. Mandante e assassinato. Tem que ser preso, julgado e, confirmados os indícios, condenado. Alguns assassinatos foram cometidos onde já há regularidade fundiária. Mas há uma série de problemas. Não nos isentamos, vamos para dentro do problema para ajudar a resolver. Quem tomou a frente, agora, foram os ministérios da Justiça e da Defesa, mas estamos com um conjunto de providências de regularização fundiária, organização produtiva, em parceria com governadores, para apoiar alternativas sustentáveis a assentamentos e aos povos da floresta, aos extrativistas. Vamos criar um ambiente econômico mais dinâmico que permita à floresta ficar de pé onde tem que ficar de pé ou, onde tenha produção agrícola, que tenha mais rentabilidade. Que o comércio ilegal de madeira, que os crimes não sejam tão sedutores como vinham sendo no passado. Vamos avançar no bojo do Brasil sem Miséria, com a Bolsa Verde. E estamos aperfeiçoando a terceira geração de programas para assentamentos e comunidades rurais na Amazônia.
Há um forte descontentamento político no Incra. Há riscos de rebelião e paralisia?
Nomeamos um presidente. É um governo que sucede o presidente Lula. É de coalizão, mas tem nítidas orientações. O Incra participou do programa Brasil sem Miséria na parte de inclusão produtiva e de assentados e acampados. Em relação à composição de governo, não há uma crise. Há uma dinâmica de continuidade e a posição condizente com a base parlamentar e a coalizão que elegeu a presidenta Dilma.
E as nomeações políticas?
Sou gestor público nomeado, meu mandato é delegado pela presidenta. Sou ministro, estou licenciado do mandato de deputado federal. Vamos executar políticas públicas e gestor de cargo de confiança, para mim, é gestor, independente da orientação partidária. É um colega de trabalho, como são os ministros ou gestores do MDA, da Embrapa, do Ministério da Agricultura. Se houver necessidade de posicionar ou reposicionar algum gestor que tenha filiação partidária, a mim não diz respeito qual é a filiação partidária. A presidenta decide e conduz. A nomeação de presidente do Incra é assim e ele tem uma diretoria. A coordenação política dialoga com os partidos e o Congresso. Não há turbulências nessa área. Mas as coisas são dinâmicas.
Haverá ou não a revisão dos índices de produtividade?
Temos uma empresa, a Embrapa, muito conceituada em todas as áreas, e a presidenta tinha decidido que caberia à Embrapa elaborar estudos que subsidiem uma revisão dos índices. E determinou isso. Há atribuições do Ministério Agricultura e, de forma quase que suplementar, o MDA participa da publicação junto com o ministro da Agricultura. Temos estudos desenvolvidos, herdamos esses estudos. Estudo não morre, inteligência não morre, fica na memória. Quando formos convidados no âmbito de governo, vamos apresentar as posições do MDA. Assim que tivermos uma posição, divulgaremos. Um mérito desses seis meses tem sido a unificação de posições. A posição no Código Florestal foi única, consensual. Foi emblemática. Fomos ao colégio de líderes, às bancadas e tivemos interlocução com o relator Aldo Rebelo. É orientação da presidenta, o parâmetro da regra: o governo deve, internamente, formular suas posições e encaminhar seus projetos.
Mas é preciso mudar o texto do novo Código Florestal?
A posição do governo foi muito boa. Garantimos precaução ambiental, regularidade ambiental e flexibilização tendo como parâmetro a agricultura familiar. Fui ao Senado e debati lá. A União deve ter prerrogativa de regular. E a Emenda 164 subtrai prerrogativas da União. Ela retira precauções ambientais que estavam no texto aprovado. Há aspectos referentes à sustentabilidade ambiental e à eventual flexibilização, tendo como parâmetro a agricultura familiar, que podem ser aperfeiçoadas no texto. A expectativa é que, no Senado, se resolve. Mas voltará para a Câmara.
Como fica a relação com o agronegócio empresarial?
Fui à Agrishow e lançamos duas colheitadeiras, de café e de cana, para a agricultura familiar. Hoje, talvez não exista nenhuma cadeia onde o PIB da agricultura e pecuária empresarial não tenha uma composição muito relevante de produção da agricultura familiar. Isso é bom para o país. Na minha opinião, proselitismo ou controvérsia ideológica não produzem alimentos. Fazemos política pública de reforma agrária e agricultura familiar para servir ao país. Para propiciar acesso à terra a quem precisa de terra para morar e trabalhar. Mas também para que essas pessoas produzam para a comercialização e a industrialização. E para o suprimento nutricional do nosso povo. Temos interlocução profícua com segmentos empresariais que hoje convivem com a agricultura familiar e o Brasil tem amadurecido rapidamente nos últimos anos. Há distinção de interesses, e não vou dizer que são interesses comuns, Mas, eventualmente, há interesses comuns. Eventualmente, há divergências no seio empresarial ou diferenças no interior dos movimentos de luta pela terra. A presidenta Dilma lidera uma experiência histórica de transformação social expressa na construção de um modelo que busca um país justo, com oportunidades para assentados e familiares. Isso não tem como fundamento a exclusão de cadeias onde haja presença empresarial. Não há mais estigmatização da reforma agrária e da agricultura familiar. Pelo contrário, há um reconhecimento de sua importância estratégica para a nação.
Jornal O Valor, 22-06-2011