Durante uma semana, a repórter Manuela Azenha viajou pelo interior de Pernambuco. Passou por Salgadinho, Limoeiro, Carpina e Paudalho, antes de chegar à capital, Recife. Na Zona da Mata, notou o estímulo que os programas sociais como o Bolsa Família e o Chapéu de Palha, do governo estadual, deram à economia. Mas observou, também, que não houve mudanças econômicas estruturais: a posse da terra está mais concentrada do que nunca. Constatou, igualmente, a importância dos movimentos sociais: foi a organização dos trabalhadores rurais pernambucanos, que vem desde os anos 50, nas Ligas Camponesas, que permitiu aos cortadores de cana locais terem melhores condições de trabalho relativamente aos colegas que atuam em outros estados do Nordeste.
O relato da repórter começa com uma entrevista com uma liderança histórica dos canavieiros:
A Zona da Mata de Pernambuco reúne o maior número de movimentos sociais que lutam pela terra no Brasil. Também conhecida como “região canavieira”, é uma das principais potências econômicas do Nordeste. Sem conseguir estabelecer um processo de desenvolvimento que dinamizasse e diversificasse a economia, o estado perpetuou o modelo de produção em que a monocultura da cana-de-açúcar resultou em grande concentração de terra. A Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco (Fetape) atua em todo o território do estado e é determinante na negociação entre usineiros e trabalhadores rurais. José Rodrigues da Silva, cinco vezes presidente da Federação e atual diretor de políticas salariais, traça um panorama da situação dos trabalhadores rurais de Pernambuco.
Viomundo – Pernambuco é um dos estados com maior concentração de terra no país. Qual a relação da monocultura da cana-de açúcar com este cenário?
José Rodrigues da Silva – A monocultura da cana concentrou e ainda concentra as terras da região da Zona da Mata. No período em que o governo incentivou a cana-de-açúcar, esse cultivo estendeu-se até uma parte do agreste. Isso foi tirando muitos trabalhadores que moravam em sítios e, pelo incentivo do ProÁlcool [1], o pessoal foi deixando de plantar agricultura de subsistência. Assim foram tirando antigos moradores de suas propriedades, arrendavam as terras dos trabalhadores, derrubando os sítios e plantando cana-de-açúcar. Mesmo sabendo que essa terra não era apropriada para cana de açúcar, depois de um ou dois anos de plantio a cana não dava mais. Chegou aqui no estado de Pernambuco uma média de produção de 50 toneladas por hectare. E essa é uma média muito baixa, que na verdade não compensava o plantio da cana. Então o governo veio com o subsídio, pagava complemento, incentivando o plantio.
Viomundo –E depois que o governo parou com os incentivos, nos anos 90, como ficou a indústria da cana?
José Rodrigues da Silva – Quando acabou o incentivo, o pessoal foi deixando de plantar nessas áreas que não eram apropriadas para a cana, mas os sítios não voltaram para os trabalhadores. A terra ficou concentrada nas mãos dos proprietários, usando para outras coisas, como pecuária, por exemplo. Os trabalhadores ficaram com dificuldade de ter suas terras de volta. O que aconteceu com a retirada do incentivo aqui na Zona da Mata foi que muitos proprietários, pequenos senhores de engenho, tiveram seus terrenos desapropriados. Alguns engenhos ficaram abandonados, sem condições de produzir, empresas de cana-de-açúcar tiveram de ser desativadas e ocorreram algumas desapropriações de usinas e engenhos particulares. Mas ainda assim a terra é muito concentrada no estado de Pernambuco.
Viomundo – Qual a avaliação do senhor em relação à política do governo Lula de incentivo à produção do etanol?
José Rodrigues da Silva – Existe uma preocupação muito grande do movimento sindical a nível nacional quanto a essa política de incentivo de produzir o etanol, o combustível. A preocupação é que os trabalhadores que trabalham no setor canavieiro são de área primária, não é fácil conseguir trabalho em outras atividades. Como é que eles ficam? Que política o governo tem para eles? Essas empresas vem com um meio de produção modificado, onde pouca mão-de-obra é utilizada, sendo substituída por máquinas. Mudou-se o formato de trabalho. Hoje, a gente vê no Sul o grande desemprego porque o corte de cana está sendo feito pelas máquinas. Uma máquina substitui mais de 100 trabalhadores fazendo o mesmo serviço. Aqui em Pernambuco a mão-de-obra diminuiu, mas não no corte da cana, porque o relevo é acidentado e não conseguiram introduzir as máquinas. Mas substituiu-se em outras atividades. Além de cortar a cana, tinha que transportá-la até os caminhões, por exemplo. As máquinas já fazem isso e eliminaram essa mão-de-obra. No ano passado, cortava a cana crua, hoje só cana queimada. E a cana queimada não envolve a mesma mão-de-obra, com tombador, gente carregando a cana com animais. Em 1979 quando reiniciamos a campanha salarial aqui pela primeira vez desde o golpe de 1964, a gente contava com 240 mil trabalhadores em Pernambuco, na cana-de-açúcar. Hoje nós não temos nem 100 mil. Reduziu mais de 50% [o número de trabalhadores] desde aquela época. Então nós tivemos essa redução em Pernambuco mesmo sem eliminar o corte manual da cana.
Viomundo – A indústria da cana é a principal atividade econômica da Zona da Mata?
José Rodrigues da Silva –Na Zona da Mata, por mais que se tenha tentado diversificar a monocultura, não diversificou. Nós do movimento sindical temos tentado isso para melhorar a questão da desconcentração das terras em Pernambuco. Mas, na verdade, a terra está concentrada nas mãos dos usineiros e eles nunca tentaram outro tipo de cultura a não ser o da cana-de-açúcar, que é o mais lucrativo. Não conseguiram sair dessa, a não ser com pequenas variedades que criaram plantação de eucalipto, seringueira na Mata Sul, o que também não gera mão-de-obra. É ainda pior que a cana porque, depois de plantar, acabou-se praticamente a mão-de-obra daquela região. Então também não seria a solução para manter a mão-de-obra na região. Outras atividades de monocultura, como a da fruticultura, nunca tentaram fazer porque as terras estão concentradas nas mãos de quem quer plantar cana.
Viomundo – Há quantos anos o senhor trabalha em movimentos sociais de trabalhadores rurais?
José Rodrigues da Silva – Eu estou com o movimento sindical há quase 40 anos. Na região canavieira, com a federação, de 1978 para cá, então são mais de 32 anos de trabalho. Não significa que a Fetape só tinha esse trabalho. Quando eu assumi a Fetape, em 1978, a gente tinha um trabalho mais amplo e as brigas coletivas maiores no sertão eram por conta de barragens que eram construídas, porque as empresas estavam entrando nas terras da população, como no caso da barragem de Itaparica. Não queriam indenizar o pessoal, dar outro local, pagar benfeitoria, tivemos que entrar nessa briga no agreste e no sertão. Fui presidente da Federação por 15 anos, foram cinco mandatos consecutivos. Quando saí da presidência, a gente criou secretarias específicas. Fiquei na de política salarial e estou lá até hoje. Desde 1979, quando foi determinado um salário mínimo. Os trabalhadores viviam sem salário, perderam os direitos coletivos, depois do golpe o povo ficou calado por 15 anos e a gente retornou essa luta com muita força. Em 1979, fizemos uma greve e conquistamos o retorno do salário dos trabalhadores e uma tabela de tarefas que fazia com que os trabalhadores de produção deixassem de ser explorados, tabela que existe até hoje.
Pernambuco é o único estado da região que tem uma tabela de produção que regulamente o salário. Por exemplo, um trabalhador que tira três mil quilos de cana em um dia já cumpriu sua tarefa do dia e vai para casa. Se ele fizer 6 mil quilos, ganhou duas diárias. Os demais estados da região tem piso salarial mas o corte da cana é ainda por tonelada. Então ele tem que cortar mais tonelada do que aqui. Em Alagoas, por exemplo, para ganhar o mesmo salário que aqui ele corta 4 toneladas de cana por dia, mais ou menos.
Viomundo – Essa tabela não estimula o trabalho exaustivo, já que quanto mais cana cortada, mais diárias o trabalhador recebe? Qual é a posição da Fetape?
José Rodrigues da Silva – Em toda atividade de produção é assim, a época de safra é quando o trabalhador ganha dinheiro. Em São Paulo, os trabalhadores tem que cobrir um cota muito mais alta que no Nordeste e por isso trabalham até a exaustão, mesmo. Em Pernambuco, para cobrir a diária de 3 toneladas não precisa nem trabalhar o dia inteiro. A média de produção aqui no Pernambuco é de 2 diárias, 2 diárias e meia. Existem empresas que oferecem prêmios no fim do ano aos trabalhadores que mais cortarem cana e nós não somos a favor. Advertimos contra essa política, aconselhamos os trabalhadores a não entrarem nessa.
Viomundo – Como o senhor entrou para o movimento sindical?
José Rodrigues da Silva – Eu sou de Bom Jardim, filho de agricultor, praticávamos agricultura familiar. Fui ser assalariado depois de ir para a Zona da Mata. Fui plantar milho, feijão, algodão, aquela coisa toda. Por três meses no verão eu trabalhava na região da mata, fui bóia-fria, como o povo chama, pau-de-arara, um bocado de nome que dá esse pessoal. Comecei a fazer amizade com o pessoal do sindicato e ajudando. As pessoas eram simples, como a gente, e acabei sendo convidado para ficar na presidência do sindicato. Fui eleito presidente com uns 28 anos de idade. Dentro do sindicato, muita gente vem ou através da política ou pela igreja católica. A igreja católica fez muitas lideranças sindicais. Um líder religioso se aproveitava e já se projetava como sindicalista. Eu não vim de nenhum dos dois, foi pelo próprio sindicato que eu assumi a direção. Passei três anos no primeiro mandato, vi que dava para continuar, tentei voltar mas o pessoal não deixava. Concorri pela minha própria chapa, e ganhei com uma diferença de 3 votos. Isso foi em 78. A partir daí , foram 5 mandatos consecutivos como presidente sem concorrente, chapa única. Depois enfrentamos a oposição, queriam aumentar a direção para não perder as frentes de luta e eu saí, vim para o política de salários.
Viomundo – O senhor conviveu com o movimento das Ligas Camponesas?
José Rodrigues da Silva – Pouco, porque quando as Ligas Camponeses estavam em tempo de começar na região, eu estava na roça e não participava de movimentos sindicais. Comecei quase no final das Ligas. O golpe de 64 parou com as Ligas. Foi um período muito difícil porque nos anos 60 até 64, existia muita discussão de falta de proteção legal para os camponeses. As Ligas Camponesas pregavam a questão da reforma agrária, na lei ou na marra. Só que a reforma agrária não tinha regulamento. Então, quando íamos pra marra, a polícia entrava com os cassetetes pro pau. A gente sempre levava a pior, com exceção de alguns terrenos que acabaram sendo desapropriados. Nos demais casos, o pessoal tinha organização e força mas não conseguia avançar. Em 1962, foi criado o estatuto do trabalhador rural que dava o direito trabalhista ao trabalhador assalariado, férias remuneradas. Até então não tinha nada garantido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Para a questão agrária não tinha regulamento.
Chico Julião [2] foi um defensor da Liga Camponesa aqui na região e ele é conterrâneo meu, de Bom Jardim. Formou-se advogado, tornou-se deputado estadual e ficou defendendo a Liga Camponesa. Ele defendia na Constituição e dificilmente o trabalhador saía com vitória nessa questão. Só a partir de 65, já no governo Castelo Branco, criou-se o Estatuto da Terra, que regulamentaria a questão da terra na questão do posseiro, arrendatário. Para aprovar isso, ele teve que mexer com o Congresso, porque o Congresso não queria isso. Os latifundiários sempre foram muito fortes. Acho que foi a única coisa que sobrou do golpe que assegurou a questão da terra. Nessa lei também foi inserida a questão da reforma agrária, mas não a questão agrária que Julião pregava, já exilado. Naquela época era todo mundo preso e exilado. Castelo Branco fez uma lei no regime militar mas, mesmo assim, ninguém falava em reforma agrária. Não permitia arregimentação, não podia sentar, se reunir num evento como hoje, o CONTAG [3], sem o esquema nacional de segurança vigiando. Estava na lei mas ninguém podia falar. A questão da reforma agrária começou a avançar depois da redemocratização. Os exilados começaram a voltar, foi se dando uma abertura.
Viomundo – Como o senhor avalia a questão da reforma agrária desde a ditadura?
José Rodrigues da Silva – Vamos dizer que avançou, mas não que ela está pronta e atendendo aos anseios do povo hoje, porque a reforma agrária tem que ser completa. São três etapas: desapropriação de terra, fazer assentamentos dignos e dar condições financeiras de produção. Isso não foi feito. A reforma agrária começou a alargar com o movimento sindical mas também com o Movimento dos Sem Terra. O MST luta por isso e fez gerar uma certa discussão. Nesse aspecto, você pode equiparar o MST às Ligas Camponesas do passado, ambos pregam a reforma agrária na lei ou na marra. Aí você vê o grande número de assentados embaixo de lonas. A gente nunca pensou que uma reforma agrária viesse desse forma. Um trabalhador tendo que entrar, ocupar a terra, esperar dois, três anos debaixo de lona, levando sol e chuva, sofrendo pressão para conseguir um pedaço de terra. O movimento sindical faz isso hoje obrigado. Ocupa uma terra, e as vezes passa três, quatro anos também embaixo de lona esperando a desapropriação, depois ainda leva um tempo longo para que o trabalhador seja assentado e receba ajuda financeira para trabalhar a terra. O processo precisa ser agilizado. O órgão do governo hoje responsável pela reforma agrária, o INCRA (Instituto Nacional da Reforma Agrária), não atende às necessidades do trabalhadores. Quando essa coisa podia ser diferente. Se existe na lei a desapropriação de terra quando ela é considerada improdutiva, então é possível desapropriá-la imediatamente, mas a estrutura do governo está muito amarrada.
Viomundo – E mais especificamente no governo Lula?
José Rpdrigues da Silva – O governo Lula deu uma avançada na questão do campo, com os recursos para o trabalhador através do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) [4] . Esse avanço foi grande. No governo FHC já tinha Pronaf, dava crédito ao trabalhador, mas quando o Lula pegou o governo estava com dois bilhões [de reais] para todo o país. Hoje nós estamos com mais de seis bilhões. Esse ano, o movimento sindical já conseguiu 16 milhões para crédito agrícola do Pronaf, através da mobilização que tem feito. Ele tem avançado nessa linha. Na questão do salário mínimo, conseguiu avanços substanciais. O salário mínimo passado era muito baixo. Quando a gente fala da questão agrária, os avanços foram muito tímidos porque as estruturas para realizar a reforma agrária não foram mudadas. E com essa estrutura, que é o INCRA, a gente não vai avançar.
Quanto ao programa de aumentar o etanol, o governo está projetando inclusive para o Exterior. É preciso pensar em que benefício traria para os trabalhadores. Se esses incentivos vão aumentar a plantação de cana para produzir etanol e se não vai também motivar a retirada do pessoal do campo, expulsos pela ainda maior concentração do processo de produção. O governo tentou reunir empresários, organizar um grande fórum de discussão, a Contag passou por esse fórum, para tirar uma proposta de um documento conciliatório. Não chegou a ser conciliatório porque o movimento sindical queria uma coisa, o patronato queria outra, o governo outra, e foi tirado um protocolo de recomendação para dar início ao trabalho. Mas essa posição de aumentar o etanol tem que ser casada com uma proposta de atendimento ao trabalhador. Se só pensarmos na questão econômica do país sem pensar no trabalhador, na produção, em como vai ficar esse pessoal, numa proposta de emprego, essa coisa isolada não satisfaz. Já tem esse documento de compromisso assinado pelas partes mas não pode ser só isso.
Viomundo – E a nível estadual, qual a opinião do senhor sobre o governo de Eduardo Campos e a associação feita entre o governo dele e o do avô, Miguel Arraes?
José Rodrigues da Silva – O Arraes tinha todo uma tradição na política dele, foi governador três vezes, teve muita importância aqui no campo. No primeiro governo dele, em 63, fez a primeira administração do campo. Chamou usineiros e fez a regulamentação. Os trabalhadores do setor rural diziam que foi no governo de Arraes que puderam ter condição de dormir em uma caminha. O governo dessa época foi muito querido pelo pessoal do campo, o chamavam de papai Arraes. No mandato seguinte fez muita coisa, pegou a região do agreste, do sertão, implantou o projeto “Vaca na Corda”[5], a eletrificação rural. Não fez grande desenvolvimento do estado porque ele pegou só governo federal contrário a ele aqui. Eduardo já teve outra sorte. Quando chegou já foi aliado de Lula, foi ministro de Lula. Aqui disputaram dois candidatos, um era do PT e um dos PSB, mas Lula apoiou os dois. E Eduardo conseguiu passar pelo candidato do PT e ganhar no segundo turno. Ele retomou o programa “Chapéu de Palha” [6] desde o primeiro ano de governo, que foi lançado no governo Arraes. Tem feito um bom governo.
[1] Programa lançado durante o regime militar para misturar álcool à gasolina e reduzir o consumo da gasolina importada. Ver mais aqui
[2] Francisco Julião foi líder das Ligas Camponesas, predecessor do MST na luta pelos direitos dos camponeses. Ver mais aqui
[3] Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Ver mais aqui
[4] Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar é um programa do Governo Federal criado em 1995. Ver mais aqui
[5] O projeto “Vaca na Corda”, lançado no governo Arraes e já extinto, financiava a compra de vacas leiteiras por famílias pobres.
[6] O programa “Chapéu de Palha” garante um salário mínimo aos bóias-frias durantes as entressafras. Ver mais aqui
Viomundo 15-08-2010
Em Pernambuco, vitórias do movimento social pouco mexem na concentração de terra
- Detalhes
- Categoria: Noticias