Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Pará e o Comitê Rio Maria divulgaram nota, no dia 22 de junho, denunciando a morosidade da justiça paraense e as manobras judiciais orquestradas para garantir a liberdade dos fazendeiros Valter Valente, Geraldo de Oliveira Braga e Jerônimo Alves Amorim. 3 de julho de 2010


Por Marcio Zonta
de Marabá (PA)
Do Brasil de Fato

Os três são mandantes impunes de assassinatos contra trabalhadores rurais e líderes sindicais na região. Eles permanecem livres pois os crimes, cujas ações judiciais tramitaram por mais de 20 anos, terminaram prescritos.

Em entrevista, o advogado da CPT, Frei Henry Burin des Roziers, explica e comenta estes casos. Para ele, a justiça paraense é muito bem alicerçada para cometer arbitrariedades, anulações e fazer vista grossa em benefício dos latifundiários do estado. O religioso também destaca as principais áreas de conflitos agrários na região e fala sobre sua atuação no estado desde a sua chegada, em 1990.

Brasil de Fato – Há quanto tempo o senhor está no Brasil e, especialmente, trabalhando no Pará?

Cheguei em 1978. Sou dominicano e vim para o Brasil visitar todas as comunidades dominicanas. Meu primeiro contato com a região Norte do país, mais intenso, foi quando fi z um estágio num curso da CPT: fui informado de que era uma região de conflitos agrários e que seria importante conhecer. Porém, fui morar no Pará mesmo em 1990, vindo de Goiás, mas quase não fiquei. Quis conhecer também os problemas de países como a Guatemala, onde tinha uma repressão terrível nos anos de 1990. Depois de quatro meses na Guatemala, decidi que fi caria por lá. Voltei ao Pará apenas para me despedir dos amigos da CPT e, de passagem comprada para retornar, aconteceu o assassinato do sindicalista Expedito Ribeiro de Souza [presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, município do sul paraense], em fevereiro de 1991. Ofereci-me para ficar e acompanhar o caso. Nesse momento, foi criado o Comitê Rio Maria – que se espalhou pelo Brasil e até pelo mundo para pressionar o andamento do processo – e passei a morar em Rio Maria. Dediquei-me tanto à causa que comecei a trabalhar com todos os assassinatos ocorridos na região, entre eles o do sindicalista João Canuto de Oliveira [morto em dezembro de 1985], colocando esses processos, antes parados, para andar e arrumando testemunhas que, inclusive, só iam depor porque confiavam em mim. Elas tinham muito medo de represálias dos fazendeiros e pediram que eu fi casse até a conclusão dos processos. E aqui estou até hoje, sem conseguir ainda prender ninguém, mas lutando para isso.

O assassinato de Expedito Ribeiro de Souza é um dos mais emblemáticos entre os divulgados na nota do dia 22?

Sim, pelo modo como a justiça paraense tratou a condenação do mandante, o fazendeiro Jerônimo Alves de Amorim, além de todas as ilegalidades que surgiram ao longo do processo, com a conivência do Tribunal de Justiça de Belém. A condenação de Jerônimo foi extremamente difícil. Um dos líderes da bancada ruralista no Congresso, o deputado federal Ronaldo Caiado [DEM/GO], dizia na imprensa que não aceitaria que “nosso companheiro Jerônimo” fosse preso. Assim, Jerônimo só teve sua prisão decretada em 1993. Mas, até 1997, ele passeava de camionete, carregado de pistoleiros fortemente armados, pelas ruas de Rio Maria, sorrindo. E isso com a prisão pedida. A justiça do Pará não tinha coragem de prendê-lo. Só depois de uma forte pressão internacional, quando fomos atrás do chefe da Polícia Federal de Brasília pedindo sua prisão, é que ele foi preso pela Interpol; e no México, num cruzeiro marítimo que fazia com sua mulher em 1999. Levado para Belém, Jerônimo permaneceu preso até 2000, quando começamos outra briga: marcar o seu julgamento. Foi outra tormenta, pois, quando marcavam a data, os jurados designados para o caso desistiam por medo ou porque eram comprados por Jerônimo. O julgamento quase não acontece porque ninguém queria participar. Então, apelamos para a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Reunimos-nos com o arcebispo dom Thomás de Alquino e fizemos uma campanha muito forte para o julgamento ser realizado. Por fim, com muito empenho, conseguimos. [Em junho de 2000,] Ele pegou 19 anos e seis meses de prisão em regime fechado. Mas, mesmo assim, Jerônimo coordenou de dentro da cadeia a criação de um clima de terror na região de Rio Maria e Xinguara [PA], quando sua fazenda começou a ser ocupada por trabalhadores rurais sem-terra. A “operação” resultou na morte de mais duas pessoas a seu mando. Em seguida, seus advogados pediram sua transferência para perto de sua família, em Goiás. Mesmo com ele respondendo a outros crimes no Pará, o Tribunal de Justiça de Belém, ilegalmente, aceitou o pedido. Pessoalmente fui ver o promotor do caso em Belém, indagando sobre essa transferência, mas o Tribunal de Justiça de Belém já tinha decidido e o caso passou à tutela do Tribunal de Justiça de Goiás. Lá, ele teve todas as mordomias, como autorização para ir a festas de família no interior do estado. Finalmente, o mais deprimente. Em 2001, Jerônimo já cumpria sua pena em prisão domiciliar graças a um atestado de doença que lhe foi dado após uma junta de médicos militares ter diagnosticado um glaucoma e um câncer de próstata e, em seguida, ter sido pedido pelos seus advogados um indulto por ter uma doença incurável. Porém, em nenhum lugar o laudo atestava que ele tinha uma doença incurável, que estava em fase terminal de sua vida. Por isso, o juiz de primeira instância negou, mas um desembargador, em dezembro de 2001, concedeu o indulto, após apenas um ano e meio preso. Ele está muito bem de saúde até hoje. Sabendo disso, ainda fizemos a última tentativa de pedir uma indenização para a viúva de Expedito, mas ele nem compareceu na audiência. Mandou apenas um advogado que a todo instante o consultava por telefone sobre o valor pedido pela viúva de Expedito. Conclusão, o advogado disse: “meu cliente não aceita esse valor”, audiência encerrada.

Os crimes cometidos por outros dois fazendeiros, contra líderes sindicais, divulgados pela nota, aconteceram na mesma época do assassinato do Expedito. Existe uma articulação entre fazendeiros para assassinar lideranças locais dos trabalhadores?

Sem dúvida. Os fazendeiros tinham articulado o assassinato de várias lideranças, como João Canuto de Oliveira, Braz Antonio de Oliveira, entre outros. Vale lembrar, que o Braz era diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria e foi morto junto ao seu companheiro de luta Ronan Rafael Ventura, em abril de 1990, por uma máfia a serviço desses fazendeiros, em especial, de Geraldo Oliveira Braga. Aliás, com relação à morte desses dois companheiros, existe uma outra barbaridade cometida pela justiça do Pará. Após 19 anos de tramitação e morosidade, no dia 16 de fevereiro de 2009, o Supremo Tribunal Federal declarou a prescrição do crime. Braga, hoje com 74 anos, é dono de um grande latifúndio em Minas Gerais. E os fazendeiros Adilson Laranjeira e Vantuir Gonçalves de Paula, que mandaram matar o sindicalista João Canuto de Oliveira, foram condenados, em 2003, a 19 anos e 10 meses de prisão. Contudo, eles nunca foram capturados para cumprir pena. Um deles até morreu de morte natural, em 2007.

Então, há uma articulação entre os fazendeiros e a justiça do Pará para que os assassinatos de lideranças permaneçam impunes?

Logicamente. Por isso, nossa luta sempre foi para colocar na cadeia esses fazendeiros criminosos, pois, se a justiça é conivente, a matança continua. E o motivo de toda essa morosidade é que a justiça paraense não é independente, é muito ligada à classe social mais abastada e manipulada pela ideologia de grupos dominantes do agronegócio. Todo esse tribunal de júri é uma farsa, algo para iludir o povo. Como se vai julgar um crime 28 anos depois de cometido? Não tem condições. Outro caso é o do lavrador Belchior Martins da Costa, assassinado em março de 1982, com 140 tiros, a mando do fazendeiro Valter Valente. Hoje, com 80 anos, Valente não será submetido a julgamento. E José Herzog, acusado pelo assassinato, foi julgado e absolvido só no último dia 24 de junho deste ano. Ambos se beneficiaram da morosidade proposital.

E quais são as regiões mais afetadas?

A região mais tensa nesses últimos tempos é a da fazenda Maria Bonita, do banqueiro Daniel Dantas, ocupada pelo MST em Eldorado dos Carajás [PA]. Além desta, há uma região explosiva formada pelos municípios de Santana do Araguaia, Santa Maria e Cumaru do Norte [todas no Pará], onde há extensas fazendas, inclusive do grupo de Daniel Dantas, e infelizmente ainda não existem movimentos sociais organizados. Por isso, as ocupações nessa área sofrem mais com as ameaças de pistoleiros, seguranças de empresas privadas e da própria polícia. Sem contar que essa região também tem um histórico de trabalho escravo. Um exemplo é a fazenda Cristalina, em Santana do Araguaia, que é conhecida como a antiga fazenda da Volkswagen. A empresa recebeu essa fazenda, de 140 mil hectares, nos anos de 1980. Em 2008, quando 84 mil hectares dela foram desapropriados pelo Incra, uma organização que lutava pela terra, a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar [Fetraf], ocupou a área com 600 famílias. Porém, o processo de assentamento até hoje não aconteceu e a situação ficou explosiva porque essas famílias, muito pobres, passaram a sofrer represálias de grupos armados que, inclusive, extorquem dinheiro desses miseráveis.

Qual a principal tarefa da CPT no Pará?

Além da luta contra a impunidade, apoiamos as ocupações de terra, principalmente do MST. Outra vertente é o combate ao trabalho escravo. De 1978 até 2000 havia muito trabalho escravo na região e só conseguimos acabar com parte disso quando pressionamos o Ministério do Trabalho a formar uma frente contra essa vergonha que ainda perdura no Brasil. Antes, a justiça ajudava o fazendeiro, pois ele ia nas repartições públicas e ameaçava, comprava servidores para não ser denunciado, e quando os fiscais ignoravam essas ameaças ou não se vendiam, eles eram assassinados. Só depois que esse grupo formado pelo Ministério do Trabalho começou a agir com um pessoal móvel apoiado pela Polícia Federal é que diminuiu a tensão e o trabalho escravo na região sul do Pará.

Qual reflexão o senhor faz desses vintes anos em que está no Pará, mudou algo?

O que mudou é que agora existem ocupações de terra feitas de modo organizado pelo MST. Agem de maneira focada contra o latifúndio, o agronegócio, têm uma causa e defendem a preservação da região amazônica. Por outro lado, nesses últimos anos, houve muito despejo violento. Outro agravante, sobretudo na região sul do Pará, é que a força do latifúndio agropecuário foi se espalhando muito, tendo uma atuação gigantesca, principalmente do grupo Santa Bárbara, de Daniel Dantas, que fortaleceu muito o grupo de políticos ruralistas.

Para encerrar, quanto “custa” hoje a vida do senhor? E quem quer pagar por ela?

Venho sofrendo ameaças desde 2000 de fazendeiros. A partir de 2005, também comecei a ser ameaçado por dois policiais civis que denunciei pela tortura de uma criança. Um deles ainda não cumpre seu mandado de prisão. Quando Dorothy Stang foi assassinada [em fevereiro de 2005], saiu um lista em que minha morte valia R$ 100 mil. Desde então, a justiça do Pará, contra minha vontade, determinou que um segurança me acompanhasse. Agora dizem que vale só R$ 20 mil, me desvalorizaram [risos]. Mas sei que um fazendeiro da região disse que, se ocupassem a fazenda dele, ele se vingaria de mim e me mataria. De todo modo, estou tranquilo, seguindo meu trabalho.

 

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