Cobrindo o período que vai de 1988 (quando entrou em vigor a atual Constituição, que atribui ao Estado a tarefa da reforma agrária) a 2007, o levantamento mostra que nesses 19 anos ocorreram 7.561 invasões de propriedades rurais no País - uma média próxima dos 400 por ano.
Dá mais de uma invasão por dia. E o primeiro resultado prático do estudo é a constatação de que o mapa de assentamentos do governo não bate com o mapa das invasões - até parece que são dois países diferentes.
Trata-se, provavelmente, do mais amplo estudo sobre o assunto já realizado no Brasil, com o cruzamento de informações de três instituições que fazem medições dos conflitos: Comissão Pastoral da Terra (CPT), Ouvidoria Agrária Nacional e Dataluta (braço estatístico do Nera). Além de apontar números gerais, ele também identifica regiões e cidades onde os sem-terra mais atuaram.
Os números confirmam que o pior cenário localiza-se no Pontal do Paranapanema, no oeste do Estado de São Paulo. As invasões ali começaram na década de 80, ganharam força com a chegada do Movimento dos Sem-Terra (MST), nos anos 90, e ainda não pararam: hoje se irradiam dali para Estados próximos, como Mato Grosso do Sul.
Na lista dos dez municípios com maior número de invasões em todo o País, segundo o Nera, seis ficam no Pontal. Um deles está no topo da lista: é Mirante do Paranapanema, que teve 171 ocupações entre 1988 e 2007, com a arregimentação de 33.165 famílias de sem-terra. Os outros cinco são Presidente Epitácio, Teodoro Sampaio, Marabá, Euclides da Cunha e Caiuá.
Embora o objetivo principal seja traçar um retrato das invasões, o mapa Nera também permite verificar como elas evoluem e identificar áreas com maior potencial explosivo.
Ao comentar o trabalho para o Estado, o historiador americano Clifford Welch, colaborador do Departamento de Geografia da Unesp de Presidente Prudente e um dos coordenadores do levantamento, observou que ganham força no País ações em áreas onde o agronegócio mais se expande. "A expansão do agronegócio, especialmente da soja, que subiu do Rio Grande do Sul, passou por Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, expandiu-se para Goiás e Minas e hoje ganha espaço na Bahia, reduziu bastante o espaço para os pequenos agricultores", disse ele. "Muitos lutam para ter as terras de volta, combatendo a monocultura."
Soja e cana
Essa interpretação dos fatos, segundo Welch, também ajuda a compreender o que ocorre em Pernambuco, segundo maior foco de conflitos no País, depois do Pontal: "Ali não é a soja, mas a cana-de-açúcar, cultura que nos anos 70 e 80 passou por um forte declínio no Nordeste, com a explosão do plantio em São Paulo. Isso abriu espaço para pequenos agricultores. Mais recentemente, porém, os grandes plantadores de cana voltaram a investir pesado no Nordeste, fazendo ressurgir os conflitos com os pequenos."
O historiador notou que os conflitos no Pontal têm sua origem na falta de legalidade dos títulos de propriedade rural. "Muitas terras ali são griladas", afirma.
Nos anos 80, com o final da construção de grandes barragens hidrelétricas na região, um numeroso contingente de peões permaneceu por ali, procurando o que fazer, e acabou engrossando os primeiros movimentos de invasões de terras. "Argumentam que aquelas terras são públicas e, de acordo com as leis em vigor no País, devem ser destinadas à execução da reforma agrária."
O momento de maior prestígio do MST e da causa da reforma agrária ocorreu no final da década de 90. E um dos fatores que contribuíram para chamar a atenção para o problema foi o massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996. No episódio, em um choque com a polícia morreram 19 trabalhadores que faziam uma marcha reivindicando terras para a reforma agrária. Aquela região, nas imediações de Marabá, também figura como um dos focos de maior tensão do País
Ocupações vão continuar, garante Stédile
Para líder do MST, direita está usando Judiciário e imprensa para impedir pobres de lutar por seus direitos
Roldão Arruda
"Toda região com grande concentração de pobres e redução do espaço para a pequena agricultura, tende a se tornar um foco permanente de luta pela conquista da terra", disse ao Estado o economista João Pedro Stédile, um dos principais líderes nacionais do MST, ao comentar os números do levantamento feito pelo Nera, apontando a permanência dos conflitos no País. "Enquanto o governo não resolver os problemas dessa gente, ela vai estar disposta, dia após dia, ano após ano, a participar das ações de ocupação das grandes propriedades."
Para Stédile, as ocupações vão continuar em todo o País. No entanto, ele admitiu que, embora as ações dos sem-terra tenham aumentado durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na comparação com o governo anterior não foi um avanço tão intenso quanto se esperava. A causa disso teria sido a decepção dos trabalhadores: "Houve até um certo refluxo em áreas onde a reforma agrária parou. É uma mostra do desencanto, do desânimo das pessoas que, depois de acampadas durante anos, não vêem o governo agir."
Esse refluxo não deve ser interpretado, porém, como o fim da luta: "A companheirada recua, espera, mas não desiste."
?GOVERNOS FROUXOS?
O Estado também ouviu o presidente da União Democrática Ruralista (UDR), o proprietário rural Luiz Antonio Nabhan Garcia. Ao falar sobre a situação da região do Pontal do Paranapanema, que abriga a sede da UDR, na cidade de Presidente Prudente, e é apontada no levantamento como principal foco de conflitos do País, o ruralista também culpou o governo.
"Os conflitos persistem há quase 30 anos no Pontal por causa de governos frouxos", disse Nabhan. "Pela legislação em vigor no País, quem age fora da lei tem de ser punido. Isso não ocorre com os sem-terra, que invadem propriedades privadas, por causa de uma explícita má vontade de sucessivos governos, tanto na esfera federal quanto na estadual. Acham que punir os sem-terra é antipático. Temem contrariar eleitores para os quais os sem-terra são as vítimas, os coitadinhos dessa história. Nós, os proprietários, ficamos no meio desse jogo político, dessa barbaridade."
Sobre a afirmação do MST de que as terras do Pontal são quase todas terras públicas, devolutas, e por isso devem ser incorporadas à reforma agrária, o fazendeiro disse: "Isso é uma lenda criada pelo MST, uma espécie de combustível para suas ações. O volume de terras devolutas no Pontal é mínimo. Se tivessem boa vontade e firmeza, os governos já teriam resolvido o problema há muito tempo."
CAMPANHA
No sábado à tarde, ao discursar durante uma solenidade de entrega de casas para os moradores da Comuna D. Tomás Balduíno, na zona rural de Franco da Rocha, interior de São Paulo, Stédile afirmou que foi deflagrada no País uma grande ofensiva para frear as ações de movimentos populares, de sem-terra, indígenas e quilombolas. "A direita, os conservadores, os ricos, os detentores de privilégios neste País estão usando o Judiciário e a imprensa para evitar que os pobres lutem por seus direitos."
O bispo d. Tomás Balduíno, fundador e conselheiro da CPT, também disse que os pobres da zona rural enfrentam um momento difícil, com a concentração cada vez maior de terras e o avanço da cana-de-açúcar. "Em Goiás, onde eu moro, tenho visto os canaviais tomarem todas as terras", disse.
As 61 casas da comuna foram construídas com o apoio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e recursos da Caixa Econômica Federal, no total de R$ 1 milhão. De acordo com a presidente da Caixa, Maria Fernanda Coelho, o dinheiro vem de um programa especial, estimulado pelo presidente Lula, para a construção de habitações na zona rural, em parceria com setores sociais organizados. Para ela, "o MST representa um dos setores mais bem organizados de nossa sociedade".
Jornal O Estado de S. Paulo, 07/08/08.