Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Para o economista Guilherme Delgado, o governo federal prioriza o agronegócio e reconduz o país a um modelo primário-exportador que concentra a renda

Fonte: Brasil de Fato por Jorge Pereira Filho, 18/04/2008

Se a reforma agrária esteve na pauta das discussões no início do mandato do governo Lula, passados cinco anos a realidade mudou. O assunto pouco destaque ganha na agenda do presidente. Os discursos sobre o tema – uma bandeira histórica do PT e do próprio Lula – foram se tornando cada vez mais tímidos, raros. As inaugurações de assentamentos desapareceram. E a linha mestra do segundo mandato – o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – ignora o tema considerado outrora como uma etapa crucial ao desenvolvimento do país.

A compreensão dessa mudança de postura passa pela análise do estreitamento dos laços do governo petista com os grandes produtores rurais e as transnacionais, evidenciado pela polêmica frase de Lula sobre os “heróis canavieiros”. Para o economista Guilherme Delgado, estudioso do campo e um dos intelectuais que participaram em 2003 da elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), o governo Lula se orienta pela prioridade total ao agronegócio. “Essa reorientação termina por aniquilar uma política de reforma agrária e de reestruturação de setores rejeitados pelo processo primário exportador”, enfatiza.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o economista faz um balanço das políticas do governo Lula para o campo, ressalta as motivações que levaram Lula a apostar suas fichas na aliança com o agronegócio e apontas as conseqüências desse modelo primário-exportador para um projeto nacional de desenvolvimento. Para Delgado, a reforma agrária segue um tema atual e, sobretudo, de amplitude nacional. “Um formato de reforma agrária includente, de desenvolvimento e igualdade não está fora da agenda ao menos que se pense que não há desigualdade no país. O pessoal acha que desenvolvimento é modernização conservadora. É a moda Geisel, desenvolver o modelo do regime militar”, avalia.

Tendo participado da elaboração do programa nacional de reforma agrária, coordenado pelo Plinio de Arruda Sampaio, como o senhor avalia a política do presidente Lula para o campo e o seu programa de reforma agrária?

Guilherme Delgado – Quando houve a iniciativa do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), e olhando em perspectiva, decorridos seis anos, o que podemos dizer é que o governo Lula deu uma guinada em sua política agrária de 180 graus. Em 2003, começou com um programa residual de reforma agrária, continuando as ações anteriores de Fernando Henrique Cardoso, que agia em função de ocupações e ocorrências do espaço agrário. A política foi mudando e, hoje, Lula abandonou qualquer programa de reforma agrária. A manifestação mais concreta disso é a total prioridade que o governo imprime à reprimarização da economia – volta ao modelo primário exportador, que tem o agronegócio como carro-chefe.

Quais as conseqüências dessa nova postura?

Essa reorientação termina por aniquilar uma política de reforma agrária e de reestruturação de setores rejeitados pelo processo primário exportador. A política não abandonou apenas o programa residual de reforma agrária que vinha desde a nova República, como também passou a se orientar pela total prioridade ao agronegócio. Isso acarreta conseqüências desastrosas para o meio ambiente, para o trabalho e para o país como um todo.

Mas essa inflexão da política do governo Lula não foi oficializada nem explicitada durante sua campanha...

Não se escreveu em nenhum documento oficial, é verdade, mas vamos interpretando os fatos e a clara priorização dos setores agroexportadores de uma forma estrutural. É a necessidade de manter em equilíbrio o balanço de pagamentos do Brasil (conta entre o que entra e o que sai do país em dólares) que fez com que o governo elegesse o agronegócio como grande supridor de dólares. O setor foi escalado para suprir os déficits de serviço e do setor industrial.

Manter um equilíbrio entre a saída e a entrada de dólares no país sempre foi um problema para o Estado, como na crise da dívida em 1980. Essa alternativa pelo agronegócio como a solução encerra a questão?

Bem, até 2003, a conta corrente do Brasil é altamente deficitária. A partir de então, passa a ser superavitária por conta do setor primário exportador – sobretudo, o agronegócio e a mineração. Isso garante a situação de solvência das contas externas, essas reservas (em dólares) atingem um pico e, agora, começam a cair. Ocorre que vivemos uma situação de desindustrialização e o aumento da dependência externa no campo industrial. Esse arranjo no campo da política agrícola e na macroeconomia se levou a escolher a atividade primária exportadora como eixo na reativação da economia. Ou seja, a opção hoje é aumentar a produção de commodities, como a soja, a celulose, a carne, os biocombustíveis. Esse quadro, que depende de uma situação favorável no comércio internacional, cria uma certa especialização, um lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho. E esse lugar é precário.

No momento, estamos exportando enormemente por conta do aquecimento internacional, principalmente na China e na Índia. Os preços dessas commodities estão caros, o que garante a entrada de dólares. Mas essa estratégia, no longo prazo, é altamente precária. Começamos a ter déficit, isso não compromete o equilíbrio, é verdade, mas é um sinal. Numa política aberta ao fluxo de capital e entrada, você faz pressões enormes nas contas de serviços. E não compensa. Mais dias menos dias é um problema que vai se acumulando. A balança tende ao desequilíbrio e vai aparecer em uma crise de liquidez internacional. Nenhum país se desenvolve assim, apostando no setor primário exportador como o setor chave. Quando a demanda externa desaquece, há uma falta de ligação desse setor primário com o restante da economia. Essa opção primário-exportadora vem do governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, mas foi aprofundada pelo governo Lula. Isso representa um desastre para o desenvolvimento brasileiro. Concentra a riqueza nos detentores de patrimônios, tendo como base a grande aliança de grandes indústrias e grandes proprietários latifundiários.

E como fica a reforma agrária?

Essa aliança impede a grande reforma agrária, mesmo a residual que havia sido feita no primeiro mandato do governo Lula. Fica inviável até mesmo administrar os assentamentos existentes, porque as áreas são objetos de cobiça da invasão do agronegócio, interessado em expandir cana, soja. Como o governo não possui um projeto alternativo para trabalhar nessa perspectiva, o programa de assentamento fica refém de se transformar puramente de subsistência. Vejo o futuro não como pessimismo, porque as coisas são reversíveis no tempo e na história, mas no quadro do establishment e na inserção externa do Brasil de forma dependente, a reforma agrária se torna um evento impossível e improvável de se dar. Claro, no sentido de uma reforma agrária que promova a distribuição de renda e a equidade. É impossível expandir ao mesmo tempo o agronegócio e a agricultura familiar. O processo de reprimarização da economia, a volta para o setor agroexportador, engole a agricultura familiar e transforma-a em empreendimentos residuais e inviáveis. O que precisa ser revisto é o modelo primário-exportador.

Uma das promessas do governo Lula para a reforma agrária era a de que investiria mais em qualidade do que em quantidade. No entanto, o acesso aos recursos do Pronaf é limitado (15% de contratos liberados) e a maior parte dos assentamentos estão na região Amazônica.

Embora na Amazônia tenha mais terra, não é lá que há mais força de trabalho. Nesse cenário, estamos discutindo três medidas tomadas que tornam o país refém dessa reprimarização. A primeira é a MP 422, que dispensa a licitação para a venda de terras públicas do Incra até 1,5 mil hectares (leia artigo). A outra é a MP 410, de 2007, que permite que você contrate assalariados rurais sem contrato de trabalho até dez meses. E, por fim, tem o caso da Raposa Serra do Sol, território demarcado há três anos, invadido pelos grileiros e que não consegue se instalar legalmente porque se arma uma campanha de mídia e apoio do Judiciário contra os territórios. Há uma orquestração nacional em defesa do modelo primário-exportador. Contra essa visão, tudo é colocado como atraso. Mas o atraso é justamente esse modelo, a aliança do grande capital com a grande latifundiária. O atraso é priorizá-lo em detrimento do crescimento industrial, do setor de serviços, da agricultura sustentável, da participação da familiar.

Os partidos políticos do chamado campo progressista apóiam esse modelo?

De certa forma, esse discurso está incorporado pelos partidos – essa posição primária-exportadora. O deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), dito comunista, defendeu em artigo a idéia de priorizar a Raposa Serra do Sol para todo mundo, já que todos são brasileiros. Mas numa sociedade desigual, precisamos tratar os desiguais de forma desigual. Ou seja, proteger os indígenas para preservar culturas milenares para evitar que virem pó. Se não fizermos nada, os canaveiros vão tratar o índio como instrumento descartável no mundo e a a sociedade fica refém do modelo de exportação de commodities. Você vai encher navios de etanol, soja, milho, enquanto os chineses enchem pequenos vagões, fazem fretamentos aéreos, com produtos de mais alta tecnologia. Ao se abandonar a indústria e priorizar a agroexportação, o país inteiro perde. Nossa força de tralho é de 100 milhões de pessoas, onde é que esse pessoal vai trabalhar? Como é que esse pessoal vai produzir se cada vez mais a riqueza é apropriada pelos canaveirios? Nesse quadro dantesco, a reforma agrária não tem vez.

Alguns autores colocam que, no mundo hoje, a reforma agrária deveria ser vista apenas como medida de resolução de conflitos localizados, e não mais como política massiva, visando a redução das desigualdades sociais, em um projeto de desenvolvimento...

Muitas vezes, se coloca a reforma agrária como um programa oficial, mas não encontramos isso. Afirma-se que o Brasil está fora da curva e que, hoje, não se faz mais reforma agrária. A questão é discutir como inserimos os pequenos estabelecimentos. Mesmo no modelo capitalismo, temos variantes da maior diferença. A experiência européia do pós-guerra permite que, sem uma reforma agrária clássica, as pequenas propriedades coexistam sem serem engolidas pelo agronegócio internacional. Esse padrão de desenvolvimento – que chamaríamos de uma política agrária condizente com a realidade – abriria espaço para setores do campo participarem do desenvolvimento de forma mais includente. Mas, para isso, há a necessidade de uma política econômica distinta. Nosso modelo não é parecido com o europeu nem o dos Estados Unidos, apesar de muitos dizerem que é a nossa inspiração. O nosso agronegócio é mais desigual do que o deles. Após a abolição e a guerra civil, houve uma mudança na estrutura de posse da terra e uma ocupação do meio-oeste dos EUA. Já nós chegamos ao século 20 sem fazer nenhuma dessas mudanças. E descartamos fazê-las porque dizemos que passou o tempo. Não se passou do tempo de uma política de igualdade e distribuição. Mudaram, sim, os instrumentos, as estruturas de intervenção. Precisamos de uma política comum que tenha capacidade de impedir o avanço do agronegócio, com a liberdade que tem hoje. Ele não tem obrigações com sua função social, obrigações de posse da terra, de meio ambiente e de respeito às relações de trabalho. O caso brasileiro é ímpar de desigualdade crescente. Um formato de reforma agrária includente, de desenvolvimento e igualdade não está fora da agenda ao menos que se pense que não há desigualdade no país. O pessoal acha que desenvolvimento é modernização conservadora. É a moda Geisel, desenvolver o modelo do regime militar. Agora, o Brasil precisa de uma política clara de contenção da liberdade de ação do agronegócio. Sem isso, a reforma agrária é engodo, tão residual e incapaz de se manter que será engolida.

Mas a renda do agronegócio em alta não deixa a economia do campo mais dinâmica, melhorando a qualidade de vida da população do entorno?

Vamos pegar um exemplo clássico: a produção do etanol. Desde 2001 para cá, o Brasil expandiu a produção de cana, que já ocupa 7 milhões de hectares dos 62 milhões de área cultivada, segundo o último censo do IBGE, de 2007. Com essa expansão dos últimos sete anos, que vai continuar, a produção de cana cria em seu entorno um enorme vazio do ponto de vista democrático. É uma plantação contínua, baixo emprego, plana. As relações de trabalho são de superexploração da mão-de-obra. O índice de morbidade maior nos auxílios-doenças concedidas pelo INSS aumentou de 4 mil em 2000 para cerca de 18 mil em 2006. Uma proporção de 400%, um salto extraordinário com mesmo em comparação a setores mais perigosos de trabalho, atividades insalubres. A cana é um verdadeiro morticínio para o trabalhador, a pessoa tem de se ausentar porque não consegue cumprir as metas de produção.

E no entorno da plantação de cana, você tem uma renda da exportação, mas o processo distributivo para a área agrícola, para a usina, as cadeias industriais que abastecem é mínimo. Muito menor, por exemplo, do que na produção de vinhos, por exemplo, no Chile. Ambos os agronegócios são pautado pelo mercado externo, mas o vinho tem de ser pequena propriedade. Não se produz uva com base na plantation. O nosso modelo de commodities – cana, soja, celulose – é o pior do ponto de vista distributivo. É anti-social e anti-ambiental, cria um deserto verde em torno da plantation. Substitui a produção de alimentos, setores de trabalho mais intensivo. Concentra propriedade e renda, sem desenvolver a cadeia produtiva. O etanol é um produto de tecnologia desenvolvida há três séculos. Não há mistério em produzir álcool. O que você faz de novo são adaptações. Não há segredo tecnológico. Basicamente, na sua produção, você só incorpora áreas, água e mão-de-obra barata em pouca quantidade.

Mas é inegável que o crescimento econômico mais recente no governo Lula vem impulsionado pelo marcado interno, o que favorece a agricultura familiar...

Essas questões têm de ser vista no contexto. De fato, a política social do governo desde 2003 teve uma conseqüência benéfica para o mercado interno. Quando você expande o salário mínimo e os benefícios do INSS, há uma expansão da demanda interna. Isso não é obra uma ação específica do governo Lula, mas sim da Constituição, do aparato de bem-estar criado de 1988 para cá. A virtude de seu governo foi dar ao salário mínimo um aspecto mais positivo nesse sentido. Isso gerou um movimento benéfico para os produtores do mercado interno, como a agricultura familiar e o industrial. Mas isso, para se sustentar e não ficar permanente dependente dos eventos da política social, precisam de um projeto de desenvolvimento e de incorporação da força de trabalho, para esta não ficar excluída do mercado produtivo e dependente das benesses da política social. Como você vai ofertar uma cesta básica e vincular setores ligados à pequena agricultura e industrial. Isso não sai espontaneamente. Precisa de uma política, senão o grande ator vai abocanhando os menores. Uma política voltada ao pequeno comércio, à pequena agricultura é essencial para um desenvolvimento mais equilibrado ao setor produtivo.

O governo Lula teria condições políticas de fazer uma reforma agrária como apregoou o próprio PT durante anos, quando chegou ao poder?

Acho que, naquele momento, até a direita aceitava que uma coisa nova seria feita, já que perdeu a eleição. Foi uma enorme covardia política. Uma inibição profunda de andar passos que eram provavelmente possíveis de dar. Agora, com a prioridade ao setor primário, as coisas ficam mais difíceis. Esses elementos colocam areia nos olhos das pessoas para imaginar que as coisas estão resolvidas. Mas não é uma coisa nem outra, nem do ponto de vista da economia nem da desigualdade. A dependência externa só se aprofunda. O agronegócio não mantém a longo prazo equilibrada a conta corrente. Você tem um desequilíbrio externo forte que vai aparecer com o andar do tempo e as mudanças de conjuntura. E as questões sociais não estão resolvidas. O agronegócio não é capaz de criar os empregos para dinamizar o mercado de trabalho a ponto de criar uma possibilidade de uma situação parecida com o pleno emprego. São várias questões para repensar o agrário. E não é algo tipicamente agrário, é nacional.

 

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