Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

No último dia nove de dezembro, por volta da meia-noite, nove homens armados arrombaram a pontapés a porta da casa de Severina. “Eu senti a zoada do carro quando chegou aqui na frente de casa. Foi tudo muito rápido. Quando a gente acordou as crianças, ouvimos a explosão na porta. Eles bateram e já foram pegando a gente e marretando no pau.” Seu esposo, o agricultor José Luis, foi amarrado e espancado no chão da sala. “Aí começaram a bandalheira. Foi uma noite de terror mesmo”.

Severina e José nada puderam fazer para defender seu filho de quinze anos que, torturado, teve seu rosto esfregado à parede até sangrar. Suas duas filhas – uma de dez e outra de três anos – foram espancadas enquanto Severina era amarrada à cama. Severina reconheceu a voz de seu algoz. Era a mesma que há dois dias, por telefone, havia lhe recomendado “vá tratando de comprar um vestido preto pra você vestir pro resto da sua vida!”

“Abra bem os ouvidos e fique sabendo que a gente vai voltar!” foi a última coisa que Severina ouviu dos agressores antes de sumirem na escuridão da madrugada. “Isso ficou na minha mente. A gente sabe que eles vão voltar, mas quando ninguém sabe”.

A família de Severina faz parte de um grupo de posseiros que se organizou para lutar pela terra na Fazenda Quirino, localizada no município paraibano de Juarez Távora. O histórico de violência na região é tão antigo quanto extenso. Até meados da década de noventa, os posseiros estavam submetidos ao arcaico sistema de cambão, através do qual, para garantir suas moradias, eram obrigados a pagar um dia de trabalho não remunerado por semana nas terras do proprietário Alcides Vieira.

Além disso, arcavam com um foro anual no valor de R$ 50 por hectare de roçado trabalhado. “Durante esse tempo passamos por momentos muito difíceis por causa desse negócio de pagar foro. Quando meu marido chegava do trabalho na fazenda, vinha com a barriga colada no espinhaço, nem água eles davam pra ele”, relembra Severina.

Em 1997, os posseiros reivindicaram ao INCRA a vistoria dos 901 hectares da Fazenda Quirino. Em represália, o proprietário contratou capangas para ameaçar os posseiros, intimando-os a desistirem da desapropriação. Mesmo diante do medo e da insegurança, os posseiros resistiram e, em janeiro de 1999, receberam a imissão de posse na terra, sendo criado logo em seguida o projeto de assentamento rural Novo Horizonte.

Mas, como ressalva o posseiro João Luiz, naquela região “o poder do latifúndio pode mais do que o poder do governo”. Não tardou para que o proprietário Alcides Vieira conseguisse na justiça a suspensão temporária do decreto de desapropriação. Enquanto o processo tramitava na Justiça, determinou que seus capangas vigiassem todos os movimentos dos posseiros. Para sair ou entrar na fazenda, os posseiros eram vistoriados e suas visitas também. Se saíssem sozinhos eram espancados. “Tucaiados pelos jagunços”, durante mais de um ano, os posseiros não conseguiam trabalhar em suas terras.

Em 2001 os agricultores decidiram voltar a trabalhar no roçado em regime de mutirão. Em março daquele ano, seis anos antes de ser espancado e ter sua casa destruída, o mesmo agricultor José Luis foi abordado por dois vaqueiros da fazenda enquanto caminhava para sua roça e, com uma arma apontada à cabeça, foi persuadido a retornar para casa. Naquele mesmo mês, após participar de uma missa na Fazenda Quirino em solidariedade aos posseiros, um grupo de treze pessoas, que incluía o professor da UFPB Fernando Garcia, foi torturado por capangas no curral da Fazenda e depois detido na delegacia.

Diante desses abusos e da repercussão negativa frente à opinião pública, em maio de 2001 a Justiça Federal convocou uma audiência em Campina Grande, na qual fazendeiro e posseiros firmaram um acordo de convivência. Em outubro do ano passado o proprietário rompeu com o acordo e voltou a ameaçar as famílias posseiras.

Em novembro, quando os agricultores estavam construindo a casa de um posseiro em regime de mutirão, sete homens chegaram e ordenaram que todos ficassem em fila para serem revistados. O administrador da fazenda, José Clementino de Sá, aproveitou a ocasião para apresentar ao proprietário os trabalhadores um a um. “Esse aí é o presidente da associação, o João Luiz, e esse é o safado do Zé Luís”, disse. “Depois fizeram o que foi necessário para acabar com tudo, destruíram toda a construção”, relembra José Luis. Quinze dias depois, ele teria sua casa invadida e seria espancado e torturado junto com sua família.

Tantas atrocidades só são possíveis por causa da conivência da polícia local. “A gente não confia mais na polícia da região. Porque vai não vai a gente vê o latifundiário daqui dando tapinha nas costas do delegado. De uma hora pra outra ela pode vir pra dar um apoio, outra ela pode chegar aqui e bater em todo mundo a mando do fazendeiro”, revela José Luis.

Os posseiros acreditam que a emboscada do dia nove de dezembro foi planejada pelo neto do fazendeiro, Carlos Alberto Bezerra, que contou com o apóio do agente de investigação da Policia Civil, Sérgio de Sousa Azevedo, suspeito também de chefiar uma milícia privada dos latifundiários na região. Azevedo, José Clementino e outros empregados da fazenda foram reconhecidos dentre os agressores daquela noite.

A violência do latifúndio em conluio com o poder policial não é um fato novo em nossa sociedade. Mais fácil crer que a própria constituição e manutenção do latifúndio no campo brasileiro só foram possíveis através da união entre a violência privada dos proprietários de terra e a violência oficial, sob controle do Estado. As milícias privadas se confundem com a força policial na imensidão dos latifúndios.

“É um sofrimento calado. É uma situação difícil pra gente que somos trabalhadores, na luta por um pedaço de chão” afirma José Luis. O clima de insegurança e tensão persiste entre os posseiros da Fazenda Quirino. Os agricultores continuam recebendo ameaças anônimas e, no primeiro dia do ano, um dos posseiros foi espancado à noite por dois capangas da fazenda, quando voltava de uma visita aos familiares de José Luiz e Severina.

“Acho que a gente apanhou por todos os posseiros”, afirma Severina. “O que aconteceu comigo... Tive muito medo. Fiquei com medo de ter contraído a AIDS. Mas graças a Deus recebi o resultado e não estou com essa doença. Tô com minha vida, minha família e vou lutar. E já pedi aos meus companheiros da luta que se eu morrer que eles continuem a lutar. É o meu sonho.”

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