06 de junho de 2010 | N° 16358AlertaVoltar para a edição de hoje
DISCURSO NUMÉRICO
Zero Hora analisou 3.358 projetos agrários efetivados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de janeiro de 2003 a março de 2010. As estatísticas são turbinadas pelo governo por meio de um mecanismo legal chamado reconhecimento, que permite aos agricultores obter crédito e assistência técnica de órgãos federais. Com a ampliação do número de beneficiados pelas políticas agrárias, os lotes ocupados imediatamente são incorporados à contabilidade fundiária oficial. Dessa forma, o mais recente informativo do Incra, publicado em março, afirma que, nos últimos sete anos, “foram instalados 3.348 assentamentos, em 46,7 milhões de hectares”. Seria como se o governo Lula já tivesse destinado à reforma agrária uma área equivalente a quase duas vezes o Estado de São Paulo – ou mais de um Rio Grande de Sul e meio.
Ministro defende a contabilidade
O ministro do Desenvolvimento Agrárido, Guilherme Cassel, justifica a contabilidade:
– O país é diverso. Exigir que a reforma agrária seja feita só com desapropriação significa limitar o Brasil ao sul do país. A regularização fundiária na Amazônia é tão necessária como uma desapropriação no Rio Grande do Sul.
Professor da Universidade Estadual Paulista e um dos maiores especialistas brasileiros em questão fundiária, o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes contesta as estatísticas do governo. Para Fernandes, somar áreas reconhecidas com novos assentamentos distorce a realidade das concessões de terras no país.
– O governo reconceitualizou a reforma agrária. Esses assentamentos já existiam. Não se pode contar como terra nova – afirma o geógrafo.
Pelo sistema de contagem de terras do Incra, a Fazenda Inhacapetum, em Capão do Cipó, na região central, aparece nas estatísticas oficiais como um assentamento instalado pelo governo Lula. Os 1,8 mil hectares da propriedade, contudo, foram desapropriados em 2001 pelo então governador Olívio Dutra (PT), quando foram alojadas no local cerca de cem famílias. O reconhecimento pelo governo federal só ocorreu em 20 de outubro de 2003. O mesmo artifício foi utilizado em outros 14 assentamentos no Estado, totalizando 9,7 mil hectares que hoje o Incra diz ter destinado à reforma agrária.
– Isso não significa aumento da reforma agrária, é regularização fundiária. Houve avanços, mas o governo não conseguiu fazer grandes transformações na estrutura fundiária brasileira – reclama o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Alberto Broch.
Orçamento do Incra triplicou
Embora o orçamento do Incra tenha saltado de R$ 1,5 bilhão para R$ 4,6 bilhões no ano passado, a soma das compras e das desapropriações de terras no governo Lula alcança apenas 4,3 milhões de hectares, menos de 10% do que afirma a publicidade do órgão. Já os investimentos nos assentamentos passaram de R$ 61 milhões, em 2003, para R$ 324 milhões no ano passado.
– A política geral foi apostar em programas de fortalecimento da agricultura familiar, com crédito, seguro-agrícola e assistência técnica – diz o sociólogo Sérgio Sauer, professor da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Associação Brasileira de Reforma Agrária.
Mesmo com o inchaço nas contas do governo, o Planalto está longe de alcançar as metas estipuladas em 2003. À época, logo no primeiro ano de mandato, o presidente Lula encomendou o 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Concebido por técnicos do governo, acadêmicos e movimentos sociais vinculados à luta pela terra, o PNRA previa beneficiar mais de 1 milhão de famílias até 2006. Em março deste ano, dados oficiais do Incra contabilizavam 574 mil assentadas, pouco mais da metade do objetivo traçado para 2006.
– Ficou muito aquém da expectativa de um programa de reforma agrária que sonhávamos nesse governo – diz o padre Dirceu Fumagalli, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra.
Procurado por Zero Hora, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) não se manifestou
FÁBIO SCHAFFNER | Brasília
A manobra |
- No cálculo de 46,7 milhões de hectares que teriam sido distribuídos nos últimos sete anos, o governo federal não considera apenas as terras adquiridas ou desapropriadas. |
- Quase 60% correspondem ao processo de reconhecimento de terras, procedimento do Incra de regularização de propriedades distribuídas por outros governos. Como o reconhecimento, elas passam a receber apoio federal. |
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DISCURSO NUMÉRICO
“Mais importante é quantas famílias foram beneficiadas”
Rolf Hackbart, presidente do Incra
Responsável pelo gerenciamento da reforma agrária, o economista gaúcho Rolf Hackbart, 51 anos, considera uma discussão de segundo plano a forma como são definidas as estatísticas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ele diz que o mais importante é reconhecer os direitos dos agricultores. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Zero Hora – Especialistas dizem que o governo não fez reforma agrária, mas sim regularização fundiária. O que é reforma agrária?
Rolf Hackbart – Regularização fundiária é ter documento da terra para acessar crédito. Reforma agrária é a desconcentração do uso e da propriedade da terra e a destinação para um projeto de desenvolvimento sustentável. É mais do que o acesso à terra.
ZH – Se mais da metade das terras que governo diz ter destinado à reforma agrária são reconhecimentos de áreas que já existiam, pode se chamar esse processo de reforma agrária?
Hacbkart – Os 46,7 milhões de hectares foram destinados à reforma agrária. Isso está no Diário Oficial. Mais importante do que quantos hectares o Incra obteve é quantas famílias foram incorporadas. Com o reconhecimento, passam a ter direitos.
ZH – Mas, nos casos do reconhecimento, não foi o governo quem assentou as famílias.
Hackbart – Eu as considero assentadas pelo governo Lula. Porque elas foram incorporadas ao programa federal de reforma agrária. Quem fez a estrada, quem levou a energia elétrica, fez as casas? O crédito vem de onde?
ZH – Mas o governo diz que criou o assentamento e instalou essas famílias. E não foi ele, foi o governo do Estado.
Hackbart – Por isso usamos o termo reconhecimento.
ZH – Não existe aí um inchaço nos números oficiais?
Hackbart – Não. Não são terras novas, mas o Incra reconhece essas famílias como assentadas agora. O fato de eu contar essas famílias está correto porque elas não estavam na nossa relação de beneficiários.
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DISCURSO NUMÉRICO
Desapropriação está em ritmo lento
Principal mecanismo reivindicado pelos movimentos sociais para efetivar a reforma agrária, as desapropriações de terras andaram a passo lento no governo Lula. Em sete anos, 3,95 milhões de hectares considerados improdutivos foram transformados em assentamentos, menos de 10% de toda a área que o governo diz ter distribuído a famílias sem terra.
Atualmente, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) ainda detém um estoque de 1,5 milhão de hectares desapropriados. São 690 imóveis, suficientes para alojar 50 mil famílias, e que ainda guardam pendências burocráticas ou jurídicas.
– São diferentes etapas, áreas que ainda estão em processo de vistoria ou aguardando homologação da Justiça – diz o presidente do Incra, Rolf Hackbart.
Instituto aguarda revisão de índices para ampliar reforma
Outra justificativa para o ritmo das desapropriações é o juro compensatório que o governo precisa pagar a quem perde as terras. Por decisão do Supremo Tribunal Federal, enquanto o valor das indenizações é discutido na Justiça, os antigos proprietários têm direito a uma taxa de juros de 12% ao ano.
As estimativas do Incra apontam um rombo de R$ 1 bilhão com o pagamento das correções – valor duas vezes superior ao montante disponível pela autarquia para aquisição de terras em 2010, que é de R$ 480 milhões. A taxa de 12% agora será questionada na Justiça pela Advocacia-geral da União.
Outra medida aguardada pelo Incra para ampliar as desapropriações era a revisão dos índice de produtividade das fazendas. Em agosto do ano passado, o presidente Lula chegou a fixar um prazo de 15 dias para que fosse publicada uma portaria criando exigências mais rígidas sobre o grau de utilização da terra e a eficiência da exploração, o que ampliaria o número de fazendas passíveis de desapropriação. O governo, porém, cedeu ao lobby da numerosa bancada ruralista no Congresso e desistiu da revisão.
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DISCURSO NUMÉRICO
Sem romper o arame
Reforma agrária não é uma estatística. Para o governo, porém, interessa colecionar números, ainda que inflados por assentamentos já existentes e famílias antes instaladas. Se não servirem para acalmar movimentos intolerantes como o MST, pelo menos eles alimentam os discursos de palanque. Os problemas no campo, contudo, persistem. Eles são frutos da postura dúbia do governo, que ora afaga a influente bancada ruralista ora faz acenos aos companheiros da lona preta.
De olho no voto dos ruralistas no Congresso, o governo deixou de lado as desapropriações de terras improdutivas e sequer teve coragem de enfrentar a polêmica dos índices de produtividade. O resultado não é nada animador. A violência rural aumentou, fruto de uma beligerância crescente entre ruralistas e sem-terra e da omissão oficial. Lula se revelou um conciliador na política externa, mas não usou esse hábil pragmatismo para pacificar o quintal e resolver um problema secular. Números não bastam. Uma prova disso é que nunca se investiu tanto na agricultura familiar e na infraestrutura dos assentamentos. Mas isso não foi suficiente ainda para assegurar independência econômica a quem trocou a beira da estrada por um lote do Incra. Tudo porque em muitos casos a massa assentada não abriga agricultores desterrados mas, sim, desempregados urbanos, ávidos pelos benefícios sociais e dinheiro para recomeçar a vida. O MST, antes uma força aglutinadora dessa gente sem esperança, hoje não tem horizonte nem discurso. Dividido em núcleos, ao movimento resta o apego à bandeira da reforma agrária como força motriz de uma ideologia que não encontra eco na sociedade. Não deu certo no governo Lula. Tampouco terá êxito a partir de 2011, seja quem for o próximo inquilino do Palácio do Planalto.
KLÉCIO SANTOS | Editor-chefe do Grupo RBS em Brasília