Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

\"\"O dia 12 de fevereiro será, para muitos, aniversário da impunidade.  Isso porque, há exatos cinco anos, também no dia 12 de fevereiro, a missionária norte-americana Dorothy Stang, aos 73 anos de idade, foi assassinada com seis tiros, em crime bárbaro, que comoveu o País e o mundo.  A morte, planejada por dois fazendeiros que tinham seus interesses ameaçados pelo trabalho da irmã, que sempre defendeu os agricultores pobres, ocorreu às 7h00 no município de Anapu, sudeste do Pará.

Os idealizadores do crime, Vitalmiro Bastos de Moura, conhecido como Bida, e Regivaldo Pereira Galvão, vulgo Taradão, ainda não foram condenados definitivamente pela Justiça.  A ambos interessava a morte de Dorothy porque sua luta em defesa da reforma agrária e de projetos de produção sustentável ameaçava o interesse que tinham de expandir a área de suas propriedades.

"O trabalho da Dorothy estava muito ligado às pessoas mais necessitadas, ela devotou sua vida, fez a opção pelos mais pobres, viveu com essas famílias, começou a organizar essas comunidades e as associações também.  Ela muitas vezes andou de repartição em repartição defendendo os interesses desse povo", conta Dom Erwin, bispo da Prelazia do Xingu, que conviveu e trabalhou com a missionária.

Para Jane Silva, coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Pará, a data da morte de Dorothy é importante por lembrar o trabalho desenvolvido pela missionária, segundo sua visão do povo e da floresta juntos.  "Ela mostrou que era possível o manejo florestal e a produção com a conservação da floresta.  Mostrou que a proposta era viável desde que políticas públicas para isso fossem implementadas", diz.

De acordo com Dom Erwin, que também é ameaçado de morte e, desde 2006, vive sob escolta policial, Dorothy contrariou as ambições de grandes fazendeiros e grileiros, ao conseguir a alocação de famílias pobres em Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), novo modelo de assentamento baseado em produção agrícola familiar e atividades extrativistas de subsistência com baixo impacto ambiental. "Com esse assentamento feito pelo próprio governo, ela contrariou o interesse de grandes latifundiários que queriam aumentar seus pastos", diz.

Para o bispo, a data que lembra os cinco anos da morte da missionária é simbólica porque anuncia o trabalho realizado por ela em vida, a favor dos menos favorecidos e da conservação da Amazônia, que, segundo ele, vem sendo cada vez mais devastada.

"Poucos dias antes de morrer, ela falou bem claro que sabia que estava ameaçada, mas entendeu que o lugar dela estava ao lado dessas pessoas constantemente humilhadas.  Então, ela não poderia fugir", relata Erwin.

Responsabilização dos culpados

No mesmo ano do crime que matou a missionária, Rayfran das Neves Sales confessou ser o autor do assassinato e foi condenado a 27 anos de prisão.  A pena se confirmou no dia dez de dezembro do ano passado, no Fórum Criminal de Belém, após ter sido anulada a realização de novo julgamento do acusado.

Identificados como intermediário da ação e pistoleiro acompanhante de Rayfran no momento do crime, Amair Feijoli da Cunha e Clodoaldo Carlos Batista hoje cumprem pena de 18 e 17 anos de reclusão, respectivamente.

Em 2007, um dos fazendeiros que arquitetou o assassinato, Bida, recebeu pena de 30 anos de prisão.  No entanto, um novo julgamento, em 2008, inocentou o fazendeiro.  O Ministério Público recorreu da decisão e a Justiça paraense anulou a absolvição do fazendeiro, determinando nova prisão.

Depois que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou habeas corpus impetrado pela defesa do acusado, no último dia 04, ele finalmente se entregou à Polícia Civil do Pará, e vai aguardar preso pelo novo julgamento, previsto para 31 de março.

Já o outro mandante do crime, Taradão, jamais foi julgado. Seu recurso contra a decisão de primeiro grau que o mandou para júri ainda não teve um julgamento definitivo. Hoje, Taradão responde ao processo em liberdade.  Ele chegou a ser preso em dezembro de 2008 por tentar grilar um lote da área que teria motivado o assassinato da Dorothy.

De acordo com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal no Pará, Taradão tentou negociar o lote 55, que ocupa cerca de 3.000 hectares do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança, pelo qual a freira lutava.

O pecuarista não ficou nem dois meses preso.  O Tribunal Regional Federal da 1ª Região aceitou pedido de habeas corpus e o soltou. Agora, há expectativa de que ele seja julgado ainda neste semestre.

O promotor do Ministério Público do Pará responsável pelo caso da missionária, Edson Cardoso, diz que as tramitações seguiram seu curso natural.  "Esse é o prazo médio de um julgamento.  Considerando que estamos em uma capital com muitos processos em andamento", explica.

Ele apontou como avanços o fato de já terem sido condenadas três pessoas pelo assassinato de Dorothy, e a decisão do desembargador do Estado, que autorizou a mudança do julgamento de Taradão para Belém.  Antes, ele era previsto para acontecer em Pacajás e Anapu.

"O Regivaldo nunca tinha sido levado para julgamento porque nem o desafogamento tinha sido autorizado.  Demorou porque a legislação diz que só se pode prever um desafogamento quando todos os recursos tiverem sido julgados", explica.

Cardoso garante não haver impunidade no caso Dorothy.  "Acredito que impunidade acontece quando há ausência de julgamento.  Quando a Justiça deixa de atuar, quando não há processo", justifica.

Quanto ao fato de só as pessoas pagas para praticar o crime terem sido condenadas até agora, o promotor descarta a explicação de que a Justiça penal só vale para os pobres.  "Os que estão cumprindo pena estão nessa situação porque não entraram com recurso e resolveram cumprir a pena. Os outros, não".

Crimes no campo e impunidade

Apesar da comoção em torno do assassinato de Dorothy, Dom Erwin diz que esse não foi o único crime do tipo, e houve vários outros casos semelhantes ao da missionária que não foram tão divulgados.  "Poucos anos antes, morreu o Ademir, pai de família que morreu pela mesma causa.  De madrugada, entraram na casa dele e o mataram, na frente da mulher dele. Ele morreu pela mesma causa e o caso dele não andou como o da Dorothy.  Tem vários casos que aconteceram nos últimos anos", afirma.

Jane, da CPT, conta que hoje a Defensora Pública do Pará reconhece a existência de 72 ameaçados de morte no Estado.  Na semana passada, a Comissão Pastoral da Terra protocolou no Tribunal de Justiça do Estado uma lista que indica a ocorrência de 681 assassinatos por conflitos agrários, entre 1982 e 2008.  Desses crimes, segundo a coordenadora, apenas 259 desencadearam ações penais e alguns, inclusive, já prescreveram.

"Isso mostra a impunidade. Com essa lista, o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] e o TJ (PA) já baixaram uma portaria determinando um mutirão para o julgamento de crimes no campo, dentre os quais está o caso Dorothy", conta a coordenadora.

O promotor Cardoso acredita que houve avanço da Justiça em defesa das vítimas da violência no campo, principalmente com relação às lideranças.  "Se você for ver as mortes de anônimos no campo (trabalhadores do campo que estão no dia-a-dia trabalhando), continuam ocorrendo, infelizmente. Agora, com relação a lideranças houve um freio", afirma.

Ele também diz que a Justiça passou a se fazer presente e de forma imediata, em conseqüência da morte de Dorothy.

Vida de luta

A irmã Dorothy nasceu em 7 de junho de 1931, na cidade de Dayton, no Estado de Ohio (Estados Unidos) e, como religiosa, foi destinada por sua congregação - as Irmãs de Notre Dame de Namur - para trabalhar no Brasil, em 1966.  De início, a missionária atuou em Coroatá (MA), onde pôde acompanhar o trabalho de agricultores nas comunidades eclesiais de base.

A irmã assistiu ao movimento de muitos deles ao Pará, devido à falta de terras para plantar e à busca desses trabalhadores por fugir da submissão aos mandos e desmandos de latifundiários.

Em 1982, Dorothy procurou o bispo da Prezalia do Xingu, Dom Erwin, para falar sobre sua vontade de trabalhar com os pobres da Amazônia.  "Eu já era bispo naquele tempo, e ela se apresentou como representante da congregação dela e me disse que queria trabalhar no meio dos mais pobres.  Então, eu falei para ela: vá para a Transamazônica Leste, atual Anapu.  E ela ficou lá até o fim de sua vida", relembra Dom Erwin. 

E foi numa das áreas mais pobres e necessitadas da Amazônia, cortada pela rodovia Transamazônica, que Dorothy lutou contra o interesse de grileiros e grandes fazendeiros.  Desde a década de 1980, a região da pequena cidade de Anapu, no centro do Estado, mais conhecido como Terra do Meio, juntamente com sul e o sudeste, passou a formar a área de maior pressão pelo desmatamento da floresta amazônica.

Isso gerou constantes conflitos entre grileiros, madeireiros, pequenos produtores e posseiros.  Dorothy denunciou por diversas vezes a situação às autoridades brasileiras.

Em junho de 2004, a missionária participou de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a violência no campo e denunciou que o quadro de impunidade tinha agravado os conflitos fundiários no Pará.  A freira disse que os grileiros não respeitavam as terras já demarcadas como assentamentos da reforma agrária.  A audiência contou com a presença do ministro do Desenvolvimento Agrário daquela época, e o próprio relator da Comissão pediu a criação de uma força-tarefa entre Ministério Público e Polícia Federal para atuar no Pará.

O maior ideal de irmã Dorothy, indicado em sua luta por projetos de desenvolvimento sustentável, era o de que os trabalhadores rurais conquistassem o direito a um pedaço de terra para cultivar, respeitando o meio ambiente.  "Isso gerou um ambiente muito hostil.  Esses grandes, então, não queriam a irmã.  Volta e meia, eu tive que defendê-la.  Na própria Câmara Legislativa de Anapu, ela foi declarada pessoa non grata e houve uma "onda" de calúnias.  Eu fui muitas vezes para rádio e televisão dizendo que tudo isso não correspondia à verdade", conta Dom Erwin.

Pouco tempo depois da destinação de determinada área para criação de um PDS, os grileiros se apossaram do lugar.  Eles alegavam que aquelas terras já tinham dono e se valeram de ameaças de morte para afastar muitas famílias do local.

A luta de irmã Dorothy pelo direito dos pequenos agricultores alimentou a ira dos fazendeiros e grileiros.  Por isso, sua vida foi interrompida com seis tiros à queima roupa quando ela se dirigia a uma reunião com agricultores no interior de Anapu.  "[Os assassinos] já queriam ter feito isso na véspera ou na antevéspera, quando ela estava dormindo numa dessas casas pobres.  Mas, os assassinos foram espantados pelo choro de uma criança e resolveram deixar para outro dia", informa o bispo da Prelazia do Xingu.

Comitê

Depois do assassinato, foi criado em Anapu o Comitê Dorothy.  O grupo tem como objetivo construir uma cultura de paz por meio do comprometimento de homens e mulheres com a Defesa dos Direitos Humanos e da Justiça socioambiental na Amazônia, concretizando a missão de Dorothy.

O comitê é hoje formado por religiosos, religiosas, ativistas dos direitos humanos e jovens que, indignados com a impunidade diante dos crimes no campo, acreditam na possibilidade de fazer algo pelo bem comum e pelos direitos das pessoas excluídas da Amazônia.  Esse é um legado de Dorothy.

 

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