Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

ARTIGO

Eles produzem 65% do pescado no Brasil, mas não são prioridade na política de pesca. Depois de duas Conferências Nacionais da Aquicultura e Pesca, em que foram mera presença legitimadora do privilégio dado à pesca e à aqüicultura empresariais, sem verem seus interesses contemplados na prática, eles resolveram fazer sua própria conferência.

* Ruben Siqueira

No estacionamento do estádio Mané Garrincha, em Brasília, superando dificuldades de todo tipo, perto de mil pescadores artesanais armaram acampamento, de 28 a 30 de setembro, e debateram um esboço de política para a sobrevivência e, mais que isso, o desenvolvimento da pesca artesanal, a que tem condições de sustentabilidade verdadeira. Era a I Conferência Nacional da Pesca Artesanal. Em frente, do outro lado da avenida, no Centro de Convenções Ulysses Guimaraes, acontecia a III Conferência oficial.

O contraste entre os dois eventos, muito ilustrativo, saltava aos olhos. Do lado de cá, precariedade; do lado de lá, suntuosidade. Lá, um belo catamarã e um moderno barco de fiscalização; cá uma jangada cearense mais simbólica que real. Lá peixes ornamentais em piscinas climatizadas; cá um dourado do rio São Francisco em papel machê e rede surrada de pesca "cercando" o acampamento. De lá, sisudez e arrogância explícita; de cá, simplicidade, alegria, solidariedade. Uma pretensiosa elegância nas vestes pode ser notada até nos pescadores que vieram de lá visitar os de cá, a tiracolo a bolsa ornamentada de couro de tilápia colorido. Inevitável constrangimento: "o que vocês está fazendo lá, seu lugar é aqui"... O ar condicionado do hotel cinco estrelas e do Centro de Convenções deve ter facilitado bastante aos da III Conferência suportar os dias dos mais quentes e secos na Capital Federal... O que não faltou no acampamento foi peixe e marisco, frescos ou salgados, em quantidade e variedade - àquela altura do contraste, um atestado de sustentabilidade alimentar e ambiental.

Números oficiais, que incitam a politica de pesca do governo, falam de R$ 3 bilhões movimentados por ano no setor, uma produção em torno de 1,1 milhão de toneladas e aproximadamente 3,5 milhões de trabalhadores... Espera-se que até 2011 o setor gire cerca de R$ 5 bilhões com uma produção média em torno de 1,4 milhão de toneladas e 5 milhões de trabalhadores. Grandiosidades de discursos e intenções e negócios armados. Cessões de águas públicas para a aqüicultura começam a sair do papel. Fazendas de camarão, de mariscos ou de espécies exóticas e de grande interesse mercantil se tornam na prática "donas" das águas, dos territórios pesqueiros em que por séculos comunidades pescaram livremente.

Ousadia política

Mas, o pescador artesanal – em torno de 1 milhão – vai virar trabalhador assalariado? Por certo, é o que se subentende, desde que é o trabalho o fator decisivo da acumulação capitalista. Porque é disso que trata o boom da "aquicultura e pesca" pretendido pelo "governo popular" do Presidente Lula. Para o que é necessário o abandono calculado dos artesanais. No Submédio São Francisco não deu certo: o pescador, como extrativista que é, não se adaptou á função de tratador de peixes em tanques-rede...

Entende-se todo o esforço do governo e adjacentes em inviabilizar a conferência popular paralela. Tentaram - e conseguiram em alguns casos - "comprar" com cestas básicas e dinheiro a lideranças de pescadores, para que desistissem. Chegaram a adiar a data da conferencia oficial para não coincidir com a popular. Fizeram inúmeras gestões, inclusive por via da CNBB, para que o Conselho Pastoral dos Pescadores retrocedesse no apoio aos pescadores. Em vão.

A visibilidade conquistada converteu-se em força política. A marcha vibrante pela Esplanada e Três Poderes antecedeu ao protesto diante Ministério da Pesca e Aquicultura. Horas depois uma comissão dos pescadores é recebida pelo Min. Altemir Gregolin, que veio correndo após a abertura da conferência oficial. Mas o documento elaborado durante a conferência popular, com diagnóstico e propostas da pesca artesanal, não lhe é entregue; só o-será às mãos do Presidente da República, cuja audiência é o compromisso assumido pelo ministro.

Pura ousadia a conferência dos pescadores artesanais, aquela ousadia que hoje anda faltando em outras frentes da luta popular. Enfrentam o capital ascendente da aquicultura e pesca e seu governo servil. Não são mais uma antiga categoria frágil, fadada à extinção, que se pode engabelar com quaisquer propagandas e compensações. Devem ainda ressoar pela Capital Federal suas palavras de ordem: “No rio e no mar, pescador na luta! No açude e na barragem, pescando a liberdade! Hidronegócio, resistir! Cerca nas águas, derrubar!“ Um grito de esperança no deserto atual da política no planalto e na planície! Ainda há vida nas águas!

 

*          Sociólogo, da Comissão Pastoral da Terra / Projeto Articulação Popular do São Francisco – CPT / CPP – Conselho Pastoral dos Pescadores.

 

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