Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Artigo do Padre Tiago Thorlby, da CPT NE 2 – Equipe Litoral-PE

Venho da região sul de um continente que os europeus chamam de “As Américas”.

 O primeiro europeu a botar seu pé nas Américas foi Brandão. O apelido dele – nenhuma surpresa: “o navegador”. Ele e os que o acompanhavam eram monges celtas.

 O espírito jamais envelhece. E é neste espírito de certeza que sei como Brandão teria saudado os residentes deste bravo, admirável continente quando encontrou com eles pela primeira vez.

É neste espírito que também saúdo vocês:

Para Vocês,

A Paz Profunda das Águas do Mar

A Paz Profunda do Ar Refrescante

A Paz Profunda da Terra Tranqüila

A Paz Profunda das Estrelas Brilhantes

A Paz Profunda do Filho da Paz

... para Vocês.

Brandão veio ... abençoou e foi abençoado ... e voltou para casa, meditando no coração tudo o que viu e ouviu.

 Uns centenas de anos depois, um homem bem conhecido nestas praias da Escandinâvia – Leif Ericsson e sua tripulação – aportou onde o sol ocidental descansa diariamente atrás das Américas.

Com certeza, ele “esfregou narizes” com o povo amigo que acolheu-o e sua tripulação.

Se contato foi além de “esfregar narizes”, não sabemos. Os arqueólogos, porém, sabem que houve um acampamento temporário de vikings no Mundo Novo. Eu nunca vi Chinook ou Sioux  com olhos azuis. Então, talvez a tripulação viking, depois de muita comunicação amiga por sinais, voltou para casa. Afinal, ocupar o litoral leste da Escócia e Inglaterra e com algumas viagens pelas Hebrides, chegando à Irlanda, foi uma viagem muito mais fácil para estes homens que poderiam navegar até 360 kms por dia.

 

Quase mil anos depois de Brandão e várias centenas de anos depois de Leif Ericsson, um empreendimento internacional levado ao cabo por Cristovan Colón chegou nas Américas.

Chegaram em três navios: o Santa Maria, o Nina e o Pinto.

12 de outubro 1.492: para os europeus, foi a “descoberta” das Américas.

Para o povo da Terra, foi uma invasão.

12 de outubro, 1.492 começa uma página na História que faz com que “O Holocausto” encolha ... esta data inicia o começo de um saque de um Continente que faz com que Átila o Huno parece “um bom rapaz” ... este dia na História é o marco inicial de uma tentativa de aniquilar a memória racial de um Povo – seja ele de ascendência Amer-indiana ou Amer-africana.

 O que vou dizer em seguinte, precisava desta introdução – uma tentativa de enxergar História do ponto de vista dos oprimidos ... e não do ponto de vista “oficial”.

Senão, falar de “trabalho escravo”, “bio-energia”, “impactos”, desenraizados da História, pareceria como se fosse tirando um coelho de uma cartola ... coisa que “aparece” como se fosse “passo de mágica”.

Assim como a invasão das Américas começou com a trindade diabólica do Santa Maria, Pinto e Nina, assim continua até o dia de hoje com seu “rosto moderno”: o FMI, a OMC, o Banco Mundial (a face oculta do empreendimento internacional)ou, seu rosto descoberto: a Indústria Automobilística, a Indústria Petrolífica, a Agro-Industria.

 Os invasores que Cristovan Colón liderou não vieram sem nada a oferecer.

Da Europa, trouxeram coisas desconhecidas nas Américas. Dos navios sairam sífilis, varíola, escorbuto e canalhice. Dos galeões desceram voracidade ... ávida, apalpando ... genocidal. Dos barcos saiu vício – venal e cruel.

A população local não tinha como se defender e quando os que não foram dizimados, genocidados mostraram que não tinham vocação para serem escravos, africanos foram importados ... que também não mostraram nenhuma vocação para serem escravizados ....

 Os invasores trouxeram com eles pragas e pestilência. E trouxeram outra coisa, algo muito, muito mais pior: seu modelo de produção. Trouxeram com eles – para um Continente que não tinha nenhuma noção da “Dogma de Propriedade Privada” – trouxeram com eles o modelo europeu, feudal e latifundiário, de produção.

Este modelo só funciona porque usa mão de obra serf, quer dizer escravo, trabalho escravo. E´ modelo que é inerentemente violento ... assim como água molha, assim também, este modelo escraviza.

Neste modelo, é o “Barão” que tem a palavra final sobre a vida e a morte ... nem precisa explicar muito o que significa ius primae noctis e a relação que o Barão tem com a recém-casada de um dos seus súditos ....

 É este modelo – inerentemente violento, voraz consumidor de mão de obra escrava – feudal-latifundiarista que ainda se mantem hoje no campo brasileiro.

 E´ com este modelo que o FMI, OMC e o Banco Mundial fizeram uma aliança desgraçada. E´ com este modelo – este modelo feudal, latifundiário – que em pleno século 21, as indústrias “hi-tech” se acomodaram, feitas mão na luva: a Indústria  Automobilística, a Indústria de Petróleo, a Agro-Indústria ... no afago e no aconchego na mesma cama com o arcaico, o feudal que é o modelo latifundiário. O modelo monocultivo de produção de açúcar/etanol é aclamado como “branco vislumbrante, brilho resplandescente” ... como um cavaleiro encouraçado medieval.

 Mister Andris Piebalgs, comissário europeu por assuntos de Energia: ele acredita mesmo que tudo é “branco vislumbante, brilho resplandescente  no modelo brasileiro de produção de açúcar/etanol.

E vai mais além: nos convida no seu blog a “ir ver” por nós mesmos.

 Bom – eu fui ver e eu vi ... e eu discordo com Mister Andris Piebalgs.

Quem contradiz Mister Piebalgs mesmo, porém, não é algum padre errante do Continente sul-americano.

Eu trouxe comigo as vozes daqueles que são escravizados e crucificados pelo modelo brasileiro de produzir açúcar/etanol.

Prestem atenção! Escutem as vozes:

 Antônio Manoel (47 anos): “Comecei a trabalhar nos canaviais com 9 anos de idade. Ninguém tem seus direitos respeitados. Não recebe um salário justo. A usina manda você procurar seus direitos – mas você nunca acha.”

“O usineiro? Ele destrói os direitos de todos nós.”

 João Raimundo (31 anos): “O que eu ganhei cortando cana? Perdi meu dedo é o que recebi. Tem muitos acidentes graves. – à perna, ao braço. Muitas vezes, a pessoa não está em condições para trabalhar. O mêdico da usina dá 3 dias de licença -  e depois, você é obrigado a trabalhar. Direitos? Ninguém tem seus direitos respeitados.”

O que eu penso do usineiro? Ele é latifundiário que suga o sangue dos trabalhadores.”

 

João (55 anos): Eu trabalhei e trabalhei e o que eu recebi?  Só velhice e esgotamento.”

“O dono da usina? Ele é explorador de escravos.”

 Maria José (54 anos): “Eu trabalhei pela manhã para poder pagar minhas contas à tarde. Trabalhar na cana não dá retorno. Mesmo  quando você está doente, tem que trabalhar. Só os donos de usina lucram – só eles ficam ricos.”

“O usineiro nos mata de trabalho.”

 Albertina Maria (40 anos): “Não há futuro na cana. Eu nunca tinha nada – só trabalho e desgraça. Trabalhar e não receber nada em retorno. A pouca saúde que tinha já se foi.”

“O dono da usina? Ele é corruto.”

 Manoel (57 anos): “Desde os 10 anos de idade, trabalho na cana – e não me deu nada ... nem para comer. E´ escravatura. Não há liberdade.”

“O usineiro? E´ ladrão, assaltante.”

 Heleno Inácio (56 anos): “Cana de açúcar? E´ a causa do nosso atraso. Eu fui criado na usina. Quando tinha 9 anos, comecei a trabalhar. Já sofri 2 acidentes – um no pé, o outro na mão. Direitos são coisa boa – mas eu nunca recebi. Não há lucro em cortar cana – só prejuízo. Chamam você a trabalhar a qualquer hora, dia ou noite, sol ou chuva – e você não tem direito a nada.”

“O dono da usina? Ele rouba a nossa consciência. E´ um werewolf.”

 Essas são vozes do nordeste do Brasil – o Pernambuco “arcaico”. Então, vamos ouvir o que os canavieiros do “moderno” sul do Brasil tem a dizer:

 “O feitor mente para nós. Diz que vamos ganhar muito dinheiro, que vamos poder comprar TV, sistema de som e outras coisas. E pensamos que fala a verdade. Mas é ilusão pura e nos arrependemos de ter ido.”

 “Uma tonelada de cana de açúcar tem 100 feixes. Mas na balança do feitor, você tem que botar 110 – 10 são para o feitor.”

 “Não recebemos em dinheiro. Recebemos um crédito num pedaço de papel a ser descontado no supermercado onde compramos. Não chegamos a ver o dinheiro – só este pedaço de papel. Botaram nosso ganho num pedaço de papel e levamos para o supermercado e compramos de acordo com que o feitor escreveu no pedaço de papel.”

 (Feitor: é a mesma palavra que foi usada nos tempos de escravatura ...).

 

“Às  vezes ganho cortando cana. Às vezes, não ganho. Às  vezes ganho US$10, US$12, US$9 por dia. Acontece também que tem dias que não ganho nada – e volto para casa.”

 “Não tem água. Tomo banho no riacho que passa por aqui. Pode ser que fico doente com a água deste riacho.”

 “Uma vez, quando o aviãozinho passa, espalhando agro-tóxicos na cana, meu pai foi todo coberto pelo veneno. Os agro-tóxicos o prejudicaram muito. Estes agro-tóxicos são uma desgraça para muitos jovens. O povo diz: você fica velho e morre. Mas não é bem assim – a doença vem da cana de açúcar.”

 

  • Aqui, a voz de um cacique: “de 1503 até 1660 – é tudo documentado – 185,000 toneladas métricas de ouro e 16 milhões de toneladas métricas de prata chegaram no porto de San Lucas de Barrameda das Americas.  Foi saque? ... ou foi um empréstimo?”
  • A voz indígena da terra em 2000 – o ano do 500 aniversário da invasão do Brasil: “Levem sua Bíblia de volta com vocês. Não serviu para nós.”
  • Outra voz do povo da terra: “Durante 500 anos, vocês envenenaram nosso povo, poluíram nossas águas, destruíram nossas densas florestas, roubaram nossas riquezas ... vocês nunca podem nos devolver  o que sua perversidade levou. Então só pedimos para nós administrar seu continente europeu durante os próximos 500 anos.”

 

Por que tanta perversidade, depravidade, vileza?

È  o modelo, estúpido!

Repito: é o modelo, estúpido!

O modelo feudal, aberração-do-tempo: latifundiário, inerentemente-violento, humano-escravizante, meio ambiente-devastante. E´ este modelo que produz cana de açúcar no Brasil. É  este modelo que põe etanol no seu tanque.

Etanol produzido por este modelo é:

- economicamnte inviável

- politicamente retrogrado

- socialmente excludente

- culturalmente genocida

- ambientalmente devastador.

 

Este modelo não produz energia “limpa”, “renovável”. Dizer que faz é mentira, é mito ... mitos e mentiras espalhados pela brigada do “branco vislumbrante,  brilho resplandescente” ao serviço dos barões feudais dos latifundios e as Indústrias Auto, Petro, Agro.

Energia “limpa”? Só se for do escape do carro para fora – e olha lá, o júri ainda está fora, decidindo se o modelo brasileiro de produzir etanol é “limpa”. Para este observador, o modelo não é, de jeito nenhum, limpo.

 

Energia “renovável”? E a Pacha-Mama nunca cansa do assalto – ou melhor, estupro – que seus filhos/inhabitantes fazem no corpo dela?

“Renovável”? Só se considerarmos o modelo brasileiro no seguinte sentido:

  • renovado aumento de concentração de terra nas mãos dos latifundiários de cana de açúcar
  • renovada violência contra posseiros, despejados de terras-de-gerações com o judiciário conivente, ao serviço da propriedade privada ... e bem-pagos por seus serviços, junto com os poderes legislativos obedientes e executivos subservientes
  • renovada diminuição de colheitas orgânicas que produzem comida decente por preços decentes
  • renovada inchação de cidades-favelas-dormitórios na região do latifundiário de cana de açúcar
  • renovado impulso no uso de trabalho escravo nos latifundiários de cana de açúcar
  • renovado ataque à Soberania Alimentar
  • renovado adiantamento da Reforma Agrária no Brasil – um país que só conhece a reforma agrária que a invasão européia trouxe, dividindo o país em latifundiários
  • renovada opressão do mundo sub-desenvolvido ... não! sub-desenvolvido – não! ... e sim, sub-justiçado, não-justiçado, (super-fraudado, super-enganado, super-assaltado) para que o Opressor Primeiro Mundo possa continuar sua mesmíssima-antigíssima estilo de vida às custas do Oprimido Sul ... “Crise de alimentos? Bote na conta (inglês = bill) do Sul!” ... “Crise financeiro? Bote na bill do Sul!” ... “Crise de energia? Bote no bill do Sul!”

 

Acontece que no Brasil, “Bill” é nome de pessoa. Não é para ficar surpreso se um dia esta pessoa chega aqui no Norte exigindo anulação do crêdito de vocês e declarando que, daqui em diante, vocês vão ter que cuidar de seus próprios problemas de energia e desistir de importar soluções baratas e desastrosas do Sul. Esta pessoa vai perguntar – e eu já pergunto:

  • “Tu acreditaste mesmo que poderia remover o ácido do teu café, adoçando-o com açúcar-trabalho-escravo, açúcar com o gosto de sangue?”
  • “Tu acreditaste que poderia usar etanol, enferrujado-vermelho com o líquido-da-força-da-vida, para poder encher teu tanque?”
  • “tu acreditaste mesmo – nos fundos dos fundos do teu coração – que devastando florestas, poluindo águas, destruindo a vida animal para plantar cana de açúcar pelo mortífero modelo brasileiro – modelo feudal, latifundiário, inerentemente violento ...tu acreditaste mesmo que este modelo de produção é sustentável?”

 

“Bio” significa “vida”.

E é por este motivo que o modelo brasileiro de produzir açúcar/etanol jamais pode ser chamado de “bio-energia”.

Uns preferem um nome mais apropriado: “agro-energia”.

Eu o chamo pelo seu nome verdadeiro: “necro-energia.”

 ...

Tiago Thorlby – CPT-Litoral-PE.

Texto-base usado na Caminhada na Escandinávia, agosto 2009.

 Post-scriptum:

 Se fosse para acrescentar algo ou dar ênfase a alguma coisa, eu diria:

Não fui contundente o bastante diante da realidade rural, diante do que está acontecendo no campo: a limpeza étnica de toda uma categoria – a categoria camponesa.

Terra improdutiva? Arrende à usina de cana de açúcar!

Terra sem função social? Entregue para o mono-cultivo da cana de açúcar!

Terra de assentamento? Engane os que conquistaram o direito suado, chorado, ensangüentado – engane-os com planos mirabólicos/faraônicos de enricar ligeiro plantando cana de açúcar ... só para descobrir, devagar e aos poucos, que foram ludibriados.

Terra para reforma Agrária: já se foi.

Terra para Soberania Alimentar: já se foi.

O Povo da Terra ... já se foi: e quem falou contra?

 

 

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