Ao amanhecer o dia 1° de abril daquele ano, o Brasil viveria, por um período de 21 anos, um dos momentos mais nefastos na história país. Após exatos 45 anos, setores que patrocinaram a ditadura insistem em classificá-la de “ditabranda” ou de uma época de pequenos excessos cometidos. Os movimentos sociais e as organizações populares não esquecem o horror vivido e as conseqüências políticas ocasionadas por aquele regime.
Momentos de efervescência Política nos anos que antecederam o Golpe - “Os anos que antecederam o ‘64’ foram de uma efervescência política muito grande no Brasil, sobretudo no Nordeste e no campesinato”, comenta o Padre Hermínio Canova, da Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e que acompanhou a resistência e luta das organizações camponesas que iam surgindo até então. Para o Padre Hermínio, aquele período anterior ao Golpe foi um marco para a luta dos trabalhadores brasileiros, um período de ascenso de massas, potencializado ainda mais pela referência à Revolução Cubana e as reformas de base anunciadas por Goulart.
A mobilização do campesinato também foi um elemento fundamental para o avanço das lutas populares naquele período. No início dos anos 60, consolidavam-se organizações como as Ligas Camponesas que, sobretudo no Nordeste foram importantes instrumentos de organização e de atuação do campesinato.
O golpe interrompe o processo de luta do campesinato - As organizações e lideranças camponesas que faziam a defesa da Reforma Agrária e dos direitos humanos foram massacradas. O integrante do Núcleo de Documentação dos Movimentos Sociais da UFPE e preso político no regime, o Professor de comunicação social Luis Momesso, enfatiza que a ditadura teve como um dos seus principais eixos de apoio o latifúndio - que se via, até então, ameaçado pelas mobilizações populares. Lideranças como Francisco Julião e João Pedro Teixeira, das Ligas Camponesas de Pernambuco e da Paraíba foram alguns dos símbolos da resistência e luta no Nordeste e se consolidaram como “elementos perigosos” para as forças reacionárias. Ainda dois anos antes do golpe, João Pedro Teixeira foi brutalmente assassinado, enquanto Francisco Julião foi perseguido, preso e exilado nos anos da ditadura.
As medidas impostas pelo Regime para o campo foram logo postas em prática. O Regime intensificou o avanço do capital no campo e o fortalecimento do latifúndio, através da entrada de maquinários modernos e agrotóxicos. Foi anulada a lei de 1962, que controlava remessas de lucros para o estrangeiro, dando força e permitindo a entrada em larga escala das multinacionais no país. “Esse é considerado um dos períodos em que latifundiários, empresários e usineiros mais expulsaram os camponeses, posseiros, indígenas e quilombolas de suas terras”, afirma Hermínio. A massa de camponeses expulsa do campo, desempregada e sem nenhum direito garantido, migraram para as cidades sem perspectivas de vida e emprego.
Como forma de mascarar as tensões no campo e colocar um freio nos movimentos campesinos, o governo de Castelo Branco emitiu, em 1965, o estatuto da Terra. Mesmo contendo avanços, como falar pela primeira vez da função social da propriedade e da desapropriação para fins de Reforma Agrária, o estatuto não tinha o objetivo de sair do papel e ainda conseguia acobertar o latifúndio em um único item que assegurava que “a propriedade declarada empresa rural não poderia ser desapropriada”.
A repressão contra os que se posicionavam contra o Regime tornou-se ainda mais brutal em 1968, com o Ato Institucional n° 5 (AI 5). O decreto deu ao Regime militar poder absoluto. A partir daí, o Congresso Nacional foi fechado, foi extinto o direito a liberdade de expressão e organizações de caráter político de oposição ao Regime foram barbaramente massacradas e perseguidas. “Nos sindicatos de Trabalhadores Rurais mais atuantes, a diretoria era substituída por interventores do estado, os chamados ‘pelegos’ e lideranças camponesas foram brutalmente assassinadas, presas e torturadas”, relembra Hermínio.
O campesinato seguiu resistindo ao cenário de terror e violência protagonizado pela Ditadura Militar. Segundo Hermínio “umas das áreas mais cobiçadas para o avanço do capital na ditadura era a Pré-Amazônia - que compreende os estados de Tocantins, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.” Foi naquela região, em 1975, em plena ditadura militar, que surgiu a Comissão Pastoral da Terra, como resposta à grave situação dos trabalhadores rurais, desenvolvendo um serviço pastoral e contribuindo com a luta e organização do campesinato contra a implementação do regime, que fazia o jogo dos interesses capitalistas nacionais e transnacionais.
Solidariedade e resistência no campo em Pernambuco - No estado, a luta dos camponeses e camponesas violentados pela ditadura militar contou com a solidariedade e a dedicação de pessoas que seriam consideradas figuras indesejadas da Ditadura Militar Brasileira. Dom Helder Câmara, designado para ser o arcebispo de Olinda e Recife, chegou a capital Pernambucana nos primeiros dias do Golpe Militar. Por sua atuação social e política de repúdio ao Regime Militar, o “Arcebispo vermelho”, como era denominado na época, foi perseguido e censurado pelos militares. Dom Helder Câmara ainda conseguiu realizar várias viagens ao exterior onde denunciava as violações de direitos humanos cometidas pelo Regime.
Outro lutador do povo que sempre esteve ligado as lutas do campesinato foi Gregório Bezerra. Nascido na região do Agreste do estado pernambucano, Gregório começou a trabalhar nas lavouras de cana com quatro anos para ajudar a família. Integrante do PCB, foi preso político e exilado durante o Regime. Faleceu em outubro de 1983, deixando um legado de luta e resistência para Pernambuco e o Brasil.
45 anos depois: continua a perseguição política aos movimentos de luta pela terra - Após 45 anos, camponeses a camponesas são insistentemente criminalizados por levantarem a bandeira da Reforma Agrária. Casos mais recentes - como o fechamento das escolas itinerantes do MST no Rio Grande do Sul, em fevereiro desde ano, e a criminalização de lideranças de organizações do campo, como o caso do advogado da José Batista da CPT - são exemplos de que a perseguição política aos movimentos de luta pela terra persiste. Para o Professor Momesso “A ditadura foi superada enquanto regime, mas o capitalismo continua. As mesmas pessoas que patrocinavam a ditadura estão hoje no Governo, como Sarney. O capital não tem projeto para a sociedade, e nesse contexto, a tendência dele é radicalizar pela violência, sempre foi. Quando não é pela via do estado, é via milícias armadas contratadas pelos latifundiários. Nós estamos em uma democracia que é violência, é ditadura também”, finaliza Momesso.
Renata Albuquerque, do Setor de comunicação da CPT NE II
Eu canto o fio
Do tempo sem voz
Da terra arada
E a semente em pedaços
Eu canto a memória
De um rio tinto
De um amor extinto
Guerrilheiro e santo
Eu canto as mães
E sua solidão de maio
Canto as flores escondidas
Na dureza do cimento
Eu canto o sim
No tempo do não
A ferida aberta
E a palavra certa
Para qualquer irmão
Canto a arte do atrevimento
E a solídária mão
Eu canto os sem canto
Sem abrigo e proteção
E a esperança espremida
Fortalecendo a comida
De quem insiste em pintar
A palavra no papel
Camiseta com pincel
Caminho, sem poder andar
O verso do meu canto é violeta
É cravo nas avenidas
Periféricas trincheiras...
É greve canavieira
E a história, de pudor despida
Canto todas as vontades
Os passos que foram cortados
Os dias amarelados
Sob o fuzil da guarita
Canto a ternura valente
Do recomeço
E a humildade depois do tropeço
Mas canto com ainda mais força
Essa gana sempre moça
De renascer e enganar a dor
Canto a liberdade
Essa riqueza sem preço
Sem forma
Sem cor
(Ana Claudia Pessoa - Educadora Sem Terra da CPT)
Setor de comunicação da CPT PE