Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

A demanda pela produção de gêneros alimentícios e o furacão que chacoalha o mercado financeiro - ligado diretamente ao comércio mundial das commodities - reforçam a relevância da produção familiar para o futuro do país

Primeiro foi a crise dos alimentos, que elevou os preços de gêneros básicos nas prateleiras mundo afora. Depois veio a crise financeira, que abalou o "coração" do capitalismo globalizado e continua atormentando a tábua das marés do chamado "mercado". Seja pela demanda de aumento da produção familiar ou pela demonstração cabal dos riscos da dependência das commodities agrícolas à roleta especulativa bancária, a conjuntura deste ano contribuiu para reposicionar a agricultura familiar como setor essencial ao equilíbrio nacional, tanto em termos econômicos quanto sociais.

Em entrevista à Repórter Brasil, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, vê "uma re-significação da agricultura familiar para o país" no período recente. "A agricultura familiar tinha passado a ser vista pela sociedade como espaço de atraso, de problemas, de pobreza. Conseguimos resgatar o significado e conseguimos resgatar o setor economicamente, um setor que é muito relevante para o país", coloca o ministro. Para ele, "a visão que estava se estabelecendo era uma visão errada".

Um dos nós do amplo debate gerado a partir da crise dos alimentos se concentra no uso de terras e da força produtiva para as culturas ligadas aos agrocombustíveis, em concorrência com a produção de alimentos. Em alguns casos, estimativas chegaram a atribuir 75% da alta do preço dos alimentos aos agrocombustíveis. Em que pese os possíveis exageros nos números (e os interesses camuflados por trás deles), a inflação dos preços alimentícios tem ajudado a ampliar as discussões sobre o que é prioridade na economia rural. Além de reafirmar que toda febre - inclusive a dos agrocombustíveis - exige contrapesos e cuidados, a crise reafirmou a importância da agricultura familiar e da produção de alimentos.

De olho neste cenário, o governo federal pretende destinar à agricultura familiar cerca de R$ 13 bilhões na safra 2008/2009. Um aumento de R$ 1 bilhão frente ao período anterior. Os números são do próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que estima que a produção familiar é responsável por 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.

A crise financeira, por sua vez, reaquece as críticas à desregulamentação da economia, ao frenesi das bolsas de valores, mercadorias e futuros, à especulação da economia virtual, no mais das vezes sem base na economia real. A transposição desta lógica financeira à agricultura, que favorece apenas o retorno financeiro das commodities (soja, milho, carne etc.), passou a ser alvo de pesadas críticas - assim como a atuação das empresas do agronegócio que controlam os preços desses produtos.

Nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, pequenos agricultores buscam alternativas frente ao atual cenário. Em viagem realizada com o objetivo de estudar os impactos econômicos, sociais e ambientais que os agrocombustíveis têm gerado no campo brasileiro, a Repórter Brasil se deparou com importantes experiências de agricultores familiares - confira a íntegra do estudo "O Brasil dos Agrocombustíveis - Palmáceas, Algodão, Milho e Pinhão-Manso - 2008" (em pdf).

Nos quase 5 mil quilômetros percorridos pela reportagem, foi possível aferir o conjunto das pressões e dificuldades enfrentadas pelos pequenos produtores. E, ao mesmo tempo, como encontram soluções válidas não somente para a realidade de cada um deles, mas para o conjunto do setor.

Alternativas
A Região Sul possui uma tradição histórica nesse quesito (leia: RS, PR e SC recebem 43% dos R$ 13 bi para produção familiar). Aproveitando as novas oportunidades trazidas pelos agrocombustíveis e por outras culturas com força no campo brasileiro, os pequenos agricultores também se desdobram para superar os desafios colocados. Com isso, a necessidade de viabilização de alternativas exige prudência e criatividade. Essencialmente, buscam adotar uma lógica com base na diversificação de culturas, no respeito ao trabalhador, ao meio ambiente, entre outros aspectos.

No Paraná, por exemplo, pequenos agricultores familiares empreendem uma verdadeira batalha para manter vivas as espécies crioulas do grão. No município de Bituruna (PR), a trincheira está erguida no Assentamento Rondon III. No lote do assentado Anísio Francisco da Rosa, cinco famílias participaram de um longo processo para preservar as sementes crioulas. A área do seu Anísio é também pródiga na diversidade de culturas e no auto-consumo.

Com a liberação de diversas variedades transgênicas no Brasil, as sementes crioulas conseguiram na atual safra o reconhecimento do governo federal. Por meio de um certificado emitido pelo MDA, os produtores que trabalham com este tipo de sementes poderão ter acesso ao crédito e seguro oficiais.

Em Porto Barreiro (PR), a força motriz dos pequenos agricultores é a organização coletiva da produção e da comercialização. Com apostas variadas - que vão de itens de cesta básica à produção de biodiesel, passando pela implementação de agroflorestas - os agricultores criaram a Cooperativa Mista de Produção e Comercialização Camponesa do Paraná (CPC-PR). De acordo com Valter Israel da Silva, integrante da direção nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) no Paraná, a cooperativa se dedicará a cuidar em nível estadual dos produtos da marca "Do Campesinato", do MPA Nacional.

De acordo com o dirigente, o movimento tem buscado estudar e recuperar a lógica da produção camponesa, inclusive com o lançamento de livros a respeito. "O pequeno produtor estava entrando na lógica do agronegócio".

Na região de Palmeira das Missões (RS), Romário Rossetto, da direção nacional do MPA no Estado, frisa que, embora o pequeno produtor sempre tenha diversificado o plantio, "nos anos 90, muitos chegaram a plantar quase só na lógica da monocultura". Segundo ele, "conseguimos reverter isso somando a lógica da diversificação às da segurança e da soberania alimentar".

Valter, do Paraná, concorda com o colega do Rio Grande do Sul e estima que, atualmente, "cerca de 20% das famílias com quem dialogamos começaram a utilizar a lógica que defendemos". Antes, diz, "lutávamos pelo crédito, mas a liberação de recursos atuava contra nós, pois incentivava a inclusão do agricultor no sistema, no uso das sementes, adubos, tudo das transnacionais". De acordo com o dirigente paranaense, as propostas do MPA nunca foram tão bem aceitas entre os agricultores quanto agora. "O discurso, que sempre pareceu somente ideológico, se torna claramente econômico com a atual crise". O projeto do MPA no Paraná, explica Silva, busca respostas integradas às crises ambiental alimentar e energética.

Edgar Kramer, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar em Chapecó e Região (Sintraf), mostra, contudo, que inúmeros problemas continuam rondando o setor. Segundo ele, a população rural de Chapecó (SC), um dos centros do agronegócio na região, vem caindo significativamente. "As pessoas perdem o emprego na agroindústria, diante das exigências de mão-de-obra mais qualificada. O jovem está indo para a cidade. As novas famílias também". Segundo ele, quem vai para o núcleos urbanos "muitas vezes acabam no crime, no desemprego, nas favelas".

O cenário atual para a agricultura familiar é de completa insegurança, analisa Edgar. Entre outros motivos, porque as parcerias entre os agricultores e as grandes empresas da região e - como a Aurora, Sadia, Perdigão e outras - "só beneficiam os grandes", ao passo que os pequenos "entram com toda estrutura física e de trabalho". Na região, de Chapecó e outras próximas, é comum que a entrada de cada propriedade seja "carimbada" por uma dessas empresas. São os chamados "integrados", produtores que já têm sua atividade e produção ligadas diretamente a uma das empresas. Mais do que o nome da propriedade ou do seu dono, as placas destacam os logos das indústrias. E criam uma sensação de que os donos são outros...

Os apontamentos destacados pelo dirigente da Sintraf não são isolados, e encontram eco na posição de importantes entidades. E a Região Sul do país, mesmo com sua história de força no setor da agricultura familiar, não escapa às dificuldades - conforme se pode constatar nos relatórios produzidos pela Repórter Brasil sobre a soja e a mamona, e sobre o dendê, algodão, milho, babaçu e pinhão-manso que demonstram a existência na região de problemas de grilagem, de violência, problemas ambientais entre outros conflitos. 

Leia as outras matérias do Especial - Região Sul:
RS, PR e SC recebem 43% dos R$ 13 bi para produção familiar

Confira o relatório "O Brasil dos Agrocombustíveis - Palmáceas, Algodão, Milho e Pinhão-Manso - 2008 (na íntegra, em pdf)"segundo de uma série de documentos sobre o tema

Clique aqui e confira o site do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis


Por Antônio Biondi, do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis

Fonte: Reporter Brasil

 

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