No fim de setembro, a Comissão Pastoral da Terra de Pernambuco (CPT PE) recebeu a visita do integrante da Organização Não Governamental Sul-africana Church Land Programme, David Nsteng. David veio ao Brasil para conhecer mais de perto o trabalho que a CPT realiza junto com os Trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra e discutir, com a ONG Church Land Programme, a experiência desenvolvida em Pernambuco. Em entrevista cedida à CPT, David fala sobre a conjuntura da Reforma Agrária na África do Sul e avalia a importância em compartilhar as experiências de trabalho da Comissão Pastoral da Terra.
Foram mais de 3.7 milhões de pessoas que, nas décadas de 1960 e 1970 perderam suas terras por conta do regime de Apartheid, que agia de forma violenta contra os negros, não permitindo até que estes adquirissem terras próximas de onde havia homens brancos. Os assentamentos que existiam até então foram destruídos e os negros foram despejados para as áreas das favelas e para trabalhar como mão-de-obra barata para os brancos. Era o Apartheid econômico, semelhante ao que existe no Brasil. A proposta da Reforma Agrária de 1994 pretendia sanar essas problemáticas.
O Departamento do governo responsável pelas desapropriações de terras estabeleceu um programa para destinar recursos para distribuição de terras para fins de reforma agrária, entre os anos de 1994 e 1999. Entretanto, nenhum dos programas elaborados até então foram cumpridos, pois a Constituição Sul Africana protege e garante o direito à propriedade privada. A possibilidade que existia era apenas se o dono das terras quisesse entregá-las por vontade própria para ser desapropriada. O resultado foi que, em 1999, cinco anos depois do programa de Reforma Agrária, apenas 1% (dos 30% destinados à Reforma Agrária) das terras foram desapropriadas.
Mesmo assim, as terras desapropriadas deveriam ser destinadas para a plantação de monocultivos como o da cana-de-açúcar, eucalipto e para a criação de gado, incentivados pelo governo. Os projetos de produção agrícola que frequentemente eram apresentados ao governo pelos pequenos agricultores e que visavam a produção de alimentos não foram incentivados pelo governo, pois eram consideradas inviáveis economicamente. Em 2004, apenas 3% (dos 30% prometidos) das terras foram desapropriadas. Essas terras foram destinadas para a produção desses monocultivos. A postura das Igrejas diante desse contexto foi apoiar os programas de incentivos aos monocultivos do Governo; Lá, as Igrejas são uma das instituições que mais detém terras no país.
O modelo agrícola na África do sul é orientado pelo Banco Mundial. Não há programa de Reforma Agrária que possa ser implementado no país sem que esteja ligado aos interesses dos grandes proprietários de terra. Tem muita gente na África do Sul que reivindica terras para viver e plantar e a postura do governo é: quanto mais gente reivindica terra, mais se atua para a concentração de terras.
CPT - E a resistência e organização dos trabalhadores rurais sem terra na África do Sul? Como se dá?
D. N - Em 2001, por tanto, sete anos após a promessa não cumprida do governo de realizar Reforma Agrária no país, surgiu na África do Sul o movimento dos trabalhadores sem terra. Esse movimento é composto por pessoas que moram/vivem nas fazendas dos grandes proprietários, trabalhando em condições degradantes, submetidos ao trabalho escravo e a violência do latifúndio. É também composto por trabalhadores rurais que haviam perdido suas terras nas décadas de 1960 e 1970 com o regime do Apartheid. Esses trabalhadores, unidos, passaram a reivindicar o direito à terra. Esse movimento encontra obstáculos para se consolidar, por conta de dificuldades para sua organização, além de muitos trabalhadores rurais ainda não terem consciência da importância da sua organização e do poder do povo.
CPT - Como é a produção de alimentos na região?
D. N - A produção de alimentos está nas mãos dos brancos, dos grandes proprietários de terra. São eles que têm acesso a terra e produzem em larga escala o milho, trigo, girassol, mandioca, batata doce, aveia e criação de gado e cabra. A grande parte dessa produção é destinada para a exportação. Em algumas comunidades, ao redor das casas, as pessoas costumam fazer plantios de hortaliças e legumes. Mas na África do Sul as pessoas geralmente têm que comprar seus alimentos.
CPT - Porque o Brasil foi uma referencia para o tema da luta pela terra?
D. N - Nós consideramos o Brasil o lugar de muita referência porque, um dos motivos é a longa história de resistência contra as forças imperialistas e a ditadura militar que o povo brasileiro teve. O Brasil tem uma história de defesa do direito do povo à terra. Um outro elemento que nos vez visitar o Brasil é a organização dos movimentos sociais frente à decepção com o atual Governo, que havia se comprometido em fazer a Reforma Agrária, mas que não foi cumprida. O Brasil é um importante exemplo porque a luta pela terra ultrapassou questões meramente técnicas ou político-partidária. A esperança aqui está viva.
CPT – Como foi a experiência vivida com os trabalhadores sem terra no estado de Pernambuco?
D. N - Em Pernambuco tem muita terra boa para a produção de alimentos, mas que estão perdidas debaixo da cana-de-açúcar. O povo passa por muito sofrimento e dificuldades de vida, mas possuem uma determinação e força de vontade exemplares. Muitos acreditam no poder de deus para continuar na luta pela reconquista de suas terras. Percebi também que os trabalhadores rurais são organizados e conscientes de sua força. Atuam fortemente em defesa da Soberania Alimentar e contra o monocultivo da cana-de-açúcar. Volto para a África do Sul com a tarefa de refletir sobre o porque de a Reforma Agrária não funcionar e também com a tarefa de analisar qual a inserção da cana de açúcar no país.
CPT – E a experiência com o acompanhamento do trabalho que a CPT realiza?
D. N - Os agentes da CPT não são burocráticos, estão sempre junto do povo. Percebi que a CPT tem uma atuação muito forte na luta em defesa da Soberania Alimentar e contra o agronegócio, em particular, em Pernambuco contra o monocultivo da cana-de-açúcar. A entidade atua na prática, e refletindo continuamente sobre essa atuação, junto com o povo e não para o povo.
Setor de Comunicação da CPT PE