Artigo
No dia 15 de junho de 2024, a Presidenta da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEÓLICA), Elbia Gannoum, concedeu entrevista ao jornal norte-rio-grandense Tribuna do Norte. A entrevista, com um evidente tom de propaganda e de cobrança ao poder público no estado nordestino, nos revela não apenas o interesse na exploração do solo e do oceano, por parte dos empreendimentos geradores de energia renovável, mas também mostra o quanto tais empresas e entidades estão empenhadas no aprimoramento do “ambiente de negócios para os investidores, de forma que seja atrativo, que dê segurança para os investimentos e dê segurança para o capital”, conforme a presidenta ressalta.
Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR)
Considerando que tais empreendimentos estão sendo implantados no Rio Grande do Norte (RN) há mais de uma década, sob uma legislação permissiva ou omissa em relação aos impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos, com efeitos drásticos sobre ecossistemas, comunidades e territórios, o que mais a ABEEÓLICA reivindica? Maior flexibilização das normas ambientais estaduais, que facilitem ainda mais a ampliação do seu poder de exploração, mesmo que isso implique em uma completa devastação ambiental, além de outros muitos problemas sociais e culturais acarretados por esses empreendimentos? É preciso atentar para a enorme contradição que se cria, uma vez que este modelo que se apresenta como fonte mitigadora para a emergência climática, ao mesmo tempo gera emissões de CO2 ao desmatar a Caatinga, em grandes áreas, para a instalação dos projetos eólicos e fotovoltaicos, isoladamente, ou os complexos híbridos, já presentes no Rio Grande do Norte.
Em defesa desse ambiente de negócio propício à exploração de bens ambientais no RN, a presidenta recorre a dados imprecisos ou tomados de forma inadequada ou de modo insuficiente para justificar seu intento. Nós, do Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR), movimento nacional, que nasce no Nordeste brasileiro, nos sentimos afetados pela fala da executiva, uma vez que somos atingidos direta e/ou indiretamente por milhares de aerogeradores e paineis solares em nossos territórios, mas também por toda a estrutura necessária para instalar as usinas, gerar e escoar energia, como como vias de acesso, subestações, linhas de transmissão, bem como, por todos os problemas derivados desses projetos. Por esse motivo, e em defesa de um ambiente de vida, estamos aqui para citar o que a ABEEÓLICA não conta, fatos que precisam de esclarecimentos.
A fala da executiva traz uma informação importante: o Rio Grande do Norte possui um alto potencial de exploração dos ventos. De fato, é inegável a potência eólica do estado, bem como a solar. E, como ela propaga, a questão dos ventos não se resolve sozinha, sendo fundamental que o governo do estado mostre que existem investimentos para atração dos investidores. Com esta afirmação, ela nos diz que os investimentos (dos investidores) são fluidos; podem marchar para outros lugares, o que tem provocado uma espécie de guerra fiscal entre os estados do Nordeste, notadamente entre os principais produtores da fonte eólica que, conforme citado na entrevista, são os estados do Rio Grande do Norte, Bahia e Ceará. Esses estados estão numa corrida para quem dará a largada nos complexos eólicos offshores atrelados à exploração de hidrogênio verde, que, conforme afirma Gannoum, terá um terço de sua exploração efetivada em meados de 2030, na costa nordestina, principalmente, mas também em outras áreas do litoral brasileiro, totalizando até o momento 95 projetos eólicos offshores.
Nesta corrida, são desconsiderados os impactos que essa exploração vem causando e aprofundando na dinâmica costeira e dos mares, como a manutenção dos sistemas ecológicos marinhos e por consequência para as atividades da pesca artesanal. É preciso destacar que existe um vazio de conhecimentos sobre o bioma marinho. É bem visível a guerra fiscal, quando se analisa as regras de licenciamentos ambientais praticados pelos três estados para os empreendimentos onshore. O RN se destaca como o estado que tem a legislação ambiental mais flexível e favorável à expansão volátil do capital financeiro que envolve o mercado de eólica nacional e internacional. Por outro lado, o principal produtor da fonte eólica nacional não tem legislado em favor de processos que aliem sustentabilidade, mitigação e justiça socioambiental em seu território, que já configura mais de 15 anos de exploração contínua dessa fonte energética.
A reflexão feita por Elbia Gannoum, sugere obviamente dois objetivos: o primeiro de mostrar caminhos para ampliar a margem de exploração aliada à atração de capitais; e o segundo, de cobrar mais segurança para os investidores. Com essa exposição ela mobiliza a opinião pública para exigir do Estado maiores garantias para atrair o investidor. O que Gannoum não cita é de onde vem esse capital e para onde ele vai. Também não expõe e nem se coloca na liderança para solucionar os diversos impactos socioambientais que essa atividade provoca no Rio Grande do Norte e em todo Nordeste.
A fluidez do capital investido é tão veloz em mudar de ares e desconhecida pelos potiguares, quanto a própria energia produzida. A origem desse capital fica oculta e, na maioria das vezes, quando tentamos ir às raízes dessas rotas, encontramos interesses externos. É a chamada estrangeirização dos territórios, são empresas francesas, alemãs, norte-americanas, portuguesas, espanholas, norueguesas, entre outras, que enviam recursos à exploração. Várias pesquisas têm revelado as rotas ocultas desse capital, como é o caso do trabalho de Lorena Izá Pereira (2022) e da rede Dataluta. Até 2022, dos 1523 complexos eólicos registrados na Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), 1037 tinham como origem o capital estrangeiro. Não existem garantias de que o capital investido continue no Brasil. A ABEEÓLICA cobra uma segurança que deveras não existe por parte dos investidores, quanto a manter recursos no estado e no país. Trata-se de um capital tão fluido quanto à energia produzida, cuja finalidade é quase totalmente alheia aos territórios e comunidades afetadas pela instalação dos empreendimentos eólicos e solares.
Em outro trecho da fala, a presidenta da ABEEÓLICA, comenta que o estado tem feito sua parte, mas que precisa de uma legislação ambiental comprometida com tais avanços e que, segundo ela, atores como IDEMA e IPHAN possuem um papel central neste traçado. Ela cobra mais regulação. Mas que tipo de regulação? Que incluam a proteção e reparo aos impactos socioambientais que os complexos eólicos provocam nos municípios e territórios de comunidades? Legislar para quem? Esse é um aspecto importante que o Estado potiguar tem que responder. O MAR tem travado uma luta exaustiva, exigindo maior regulação socioambiental, queremos garantias de segurança e manutenção do equilíbrio da sociobiodiversidade aqui existente. Temos, inclusive, cobrado o reconhecimento dos nossos povos e comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, caatingueiros, pescadores, marisqueiras e ciganos) e o cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no que diz respeito à consulta livre, prévia e informada às comunidades que estão com seus territórios especulados pela indústria das energias renováveis.
O que Gannoum não diz, é que aquilo que atraiu e ainda atrai esses complexos eólicos para o RN, não são apenas qualidade e quantidade de ventos, mas a flexibilização e o não cumprimento das normas de licenciamento ambiental combinada com a ausência de uma legislação mais atenta aos transtornos, impactos socioambientais e fundiários, às condições de vida humana e não humana em terra e no mar. O Nordeste é agora celeiro produtor de energia. Desde o início do processo de implantação do empreendimento eólicos no RN, o governo, e grande parte do poder político no estado, se colocam como aliados e absolutamente sensíveis às demandas das empresas, e só das empresas. Órgãos como IDEMA, tem se tornado o principal avalista de uma ficção criada a toque de caixa: “a energia eólica é uma energia limpa”. Afirmamos que não é limpa, uma vez que causa diversos impactos ambientais, sociais, culturais e na saúde das pessoas do entorno dos empreendimentos, sendo necessário olhar para toda a sua cadeia produtiva e não apenas para o seu produto final.
Para se ter uma noção da dimensão dessa aliança, desde 2022, temos junto ao IDEMA/CONEMA, uma minuta de resolução aguardando análise e deliberação. Nela estão incluídas algumas propostas elaboradas pela Procuradoria Geral do Estado, sobre o licenciamento ambiental. Entre elas, podemos citar: exigência de Estado de Impacto Ambiental e relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) para empreendimentos com potencial igual ou superior aos 150 MW; inclusão também dessa cobrança para lugares afetados pela desertificação (é o caso, por exemplo, da região Seridó, no centro-sul do RN); realização de audiência pública junto à reunião técnica informativa, nos casos de conflitos ambientais e sociais, etc. Tal minuta está parada, o que representa não apenas uma letargia, mas sim uma ação silenciosa e tática que é bem recebida e aproveitada por esses empreendimentos.
O céu vendido pela ABEEÓLICA só existe no discurso de sua presidenta, pois a realidade registrada é outra. Há mais de dez anos já são identificados e notificados os impactos provocados pela exploração da energia eólica no RN, como pelas comunidades da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Estadual Ponta do Tubarão, Macau e Guamaré, e de Galinhos. Desde esse período que a pesquisa universitária também tem apontado os fatos. De lá para cá ocorreram seminários, reportagens, webséries, séries televisivas, e artigos científicos que denunciam, sistematicamente, os impactos deste modelo de desenvolvimento da indústria renovável no Nordeste brasileiro. Mais recentemente, as cartografias sociais elaboradas pelo Serviços de Assistência Rural e Urbana (SAR) e pelo Coletivo de Assessorias Cirandas, a partir de escuta e das representações de comunidades atingidas e da articulação com universidades e outras entidades da sociedade civil organizada, bem como, o Manifesto Vozes dos Territórios, mostram que as grandes obras geradoras de energias renováveis são lastreadas de inúmeros impactos catastróficos, muitos deles irreversíveis para o bioma Caatinga, seus povos e para os territórios como um todo. São evidências cruciais de que não se trata de casos isolados, mas de uma generalização inerente à maneira como está sendo realizada a exploração da fonte eólica no RN, atestando, também, a ausência de uma legislação protetiva dos direitos humanos, econômicos, sociais, ambientais e culturais, sobre o tema, deixando aberto o caminho — por vezes, literalmente — para danos de diferentes naturezas.
A verdade é que o debate das empresas não é sobre proteger o meio ambiente através de uma legislação, mas sim regulamentar o que já ocorre na realidade, garantindo que, apesar dos impactos gerados, haja segurança jurídica dos investimentos. Contudo, os tipos de impactos e agressões são variadas, a saber, ampliação do número de doenças como depressão, problemas de audição, problemas respiratórios; devastação ambiental da fauna e flora como um todo, inclusive, expulsando animais de seu habitat natural; desconfiguração das paisagens, o que inclui serras, olhos d’água, dunas, praias e cidades inteiras; ameaças ao patrimônio cultural material e imaterial; as cavernas, entre outros. São casos revelados pelas comunidades atingidas, notadamente aquelas articuladas pelo Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR) e sistematicamente analisados pela academia, principalmente por pesquisadore/as e grupos de pesquisas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Universidade Federal do Semiárido, Universidade Federal do Ceará, Universidade Federal da Paraíba, Universidade Federal de Pernambuco, dos Institutos Federais entre outras instituições de ensino e pesquisa, inclusive aquelas que subscrevem esta matéria.
Diferente dos interesses representados na fala de Elbia Gannoum, a situação real do estado é alarmante. É necessário uma legislação ambiental rigorosa que previna, compense e repare imediatamente os desastres provocados pelas empresas produtoras, distribuidoras e financiadoras da energia eólica. Em especial, no seu avanço mais recente, as chamadas offshore. Esse importante filão anunciado pela executiva, coloca em risco o meio ambiente marítimo e a pesca artesanal do RN, onde existe um vazio de conhecimento conforme alarme anunciado por muitos pesquisadores. Recentemente, o Professor Venerando Eustáquio Amaro (UFRN), em um seminário realizado pelo Ministério Público do RN, alertou que o avanço das eólicas via offshore, pode levar a consequências desastrosas, como o avanço do mar sobre a costa e o agravamento dos processos erosivos e de inundação(1). Somado a esse projeto que avança a largos passos, temos a construção de um porto-indústria entre Caiçara do Norte e São Bento do Norte, o qual tem como principal objetivo produzir e escoar hidrogênio gerado a partir de energia eólica. Os impactos para aquelas cidades é de uma ordem total. Já temos casos de desequilíbrio ambiental envolvendo grandes portos, que deveriam servir de exemplo para a sociedade potiguar, como o porto de Suape, em Pernambuco.
Para justificar o avanço desse modal de produção energética, a executiva recorre, de maneira superficial e equivocada, ao Produto Interno Bruto (PIB) e ao Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) dos municípios que possuem ou não esses empreendimentos em seu solo. Afirma ela, terem realizado análises comparativas. O que não muda muito o cenário, tendo em vista que ambos os índices são produzidos sem se levar em consideração alguns aspectos importantes para uma análise precisa e confiável. O primeiro índice, facilmente pode revelar um crescimento econômico, sem que isso de fato represente distribuição de renda e de riqueza; nem mesmo qualidade de vida para uma população. Quanto ao IDHM, sua última atualização é de 2010 como base nos dados do Censo Demográfico daquele ano. Neste contexto, somente o município de Rio do Fogo poderia ter sido avaliado em relação ao IDHM (2010) que foi publicado em 2013 pelo PNUD/IPEA/FJP, já que teve o primeiro complexo eólico instalado em 2009, e suas obras nos dois anos anteriores. E seu IDHM continuou baixo em 2010.
Em 2020, com base em pesquisa científica, verificou-se que a realidade do município de Rio do Fogo não se transformou com a inserção dessa atividade econômica, conforme se vê em capítulos que analisam o referido município em Hofstaetter (2021) e Pessoa (2022). Assim, seria impossível presumir que o IDHM dos mais de 40 municípios potiguares que apresentam complexos eólicos em seu território melhoraram. Haja vista que o Censo Demográfico 2022 não teve seus microdados divulgados até o momento e que são a base para o cálculo do índice. O índice engloba variáveis demográficas e populacionais, além de sociais e de rendimentos, o que permite uma análise mais ampla das condições de desenvolvimento e da qualidade de vida dos municípios, do que o PIB, que somente se atém às variáveis de rendimentos e geração de riqueza, ou seja, do incremento econômico provocado pelos setores produtivos primários, secundários e terciários em determinado município.
A mensuração dos impactos das energias renováveis, precisa passar por outro formato de medição de todas as variáveis. É o caso da geração de emprego, que embora exista, como salientam Hofstaetter e Pessoa (2016), e diversas pesquisas subsequentes, ela é sazonal, ou seja, não permanece no lugar. Pois ocorre, sobretudo, na fase de construção dos empreendimentos eólicos, fase essa que também incrementa a arrecadação de Imposto sobre serviços (ISS) pelos municípios e que poderia repercutir no PIB. Assim, não é incremento econômico contínuo, que favoreça a circulação de bens, rendas e serviços gerados pela cadeia produtiva nos municípios produtores desta fonte no RN. Em geral, esses municípios ainda apresentam baixo dinamismo econômico, sendo dependentes de repasses das esferas nacionais e estaduais, assim como da exploração da agricultura familiar e/ou pesca artesanal de forma predominante, além de outras cadeias econômicas, como a mineral na exploração nos municípios inseridos no semiárido, e do turismo, nos litorâneos. Outro aspecto, inerente a geração de emprego e renda, observados nas pesquisas realizadas pelo Laboratório Interdisciplinar Sociedades Ambientes e Territórios (LISAT) da UFRN, é que a mão de obra especializada (formada por engenheiros elétricos e especialistas nas fontes renováveis) são circulantes e de grande mobilidades, já que eles percorrem os empreendimentos não apenas no RN, mas em todo Nordeste. Já a mão de obra de baixa especialização, restrita à fase de preparação do terreno e de abertura das estradas, ou seja, na fase de construção, é feita em geral, mas predominantemente, com mão de obra local. Porém, mesmo essa, também tem uma mobilidade significativa.
Esse aspecto, tem gerando um intenso deslocamento de estruturas e pessoas de cidades e estados vizinhos para o RN, o que tem provocado, associado à geração de oportunidades, problemas sociais graves (Hofstaetter, Pessoa, 2015, 2016) como ampliação do índice de gravidez precoce, casos de AIDS, prostituição infantil, entre outros. Por isso, o argumento de que a energia eólica gera emprego, deve ser visto com cuidado redobrado, já que ele esconde certos dados que não são nem um pouco convenientes e nem claramente mensuráveis pelos dois principais sistemas de acompanhamento de emprego e ocupação, como os dados da RAIS e da CAGED, já que por exemplo, a associação de emprego, ocupação e renda diretamente relacionada aos empreendimentos eólicos é difícil de ser mensurada. Para se ter uma ideia, a terraplanagem e a construção civil, etapas que agregam o maior percentual de empregos durante a fase de instalação dos empreendimentos, são alocados por prestadoras de serviços e não pelas empresas ou conjunto delas associados ao empreendimento eólico. Aguardemos o estudo que será divulgado até julho próximo pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), sobre os empregos relacionados à chegada das renováveis, o qual certamente, diferente dos estudos citados pela ABEEÓLICA, vai transparecer a metodologia do estudo e os locais em que foi realizado. Esta pesquisa será fundamental para o conhecimento da realidade, uma vez que há uma grande dificuldade de se acessar dados sobre trabalho, renda, entre outros, e que as subnotificações dos casos envolvendo problemas com saúde, acaba aparecendo como um empecilho na avaliação desses empreendimentos.
Nesses casos, a estratégia das empresas corrobora indiretamente com a ocultação de dados vitais para uma real mensuração dos impactos. Afinal, existe um corrente e difuso discurso de que esses modais trazem para a região ou cidade, o desenvolvimento e os recursos. Porém, raramente temos observado um projeto com consequências, ganhos e despesas a médio e longo prazo. O recurso que entra na cidade tem um efeito muito pontual, contudo os gastos com saúde, educação, assistência social e segurança pública, estão aquém de qualquer previsão.
Ressalta-se a fragilidade da gestão dos municípios receptores de empreendimentos eólicos quanto aos instrumentos de licenciamento urbanístico. Limitados a emitir a certidão de uso e ocupação do solo no processo inicial que antecede ao licenciamento ambiental. Os municípios, em geral, autorizam tais empreendimentos com base em Planos Diretores desatualizados, e em alguns casos inexistentes. Resultam desses processos, autorizações de empreendimentos que incidem sobre Unidades de Conservação, Áreas de Preservação Permanente, projetos de assentamentos, territórios de comunidades tradicionais, terras férteis da agricultura familiar, topos e encostas de serras, sítios arqueológicos e outros ambientes que exigem medidas protetivas no planejamento municipal. Isso, de forma recorrente, sem participação social (Pesquisa CNPq/MCTI N.10/2023. Grupo de Pesquisa EcoHabitat.DARQ/UFRN). É evidente que os conflitos socioambientais e fundiários se desdobram nas fases seguintes, gerando danos às comunidades e insegurança aos investimentos no município.
Se observarmos os contratos com as empresas, temos outra interface problemática. Geralmente são contratos com um prazo de 35 a 50 anos, renovável por igual período a critério da empresa. O que nos mostra a fragilidade desse instrumento para o arrendador. O uso do solo e da propriedade, acaba alienada também pelos herdeiros, que não apenas perdem o direito de decidir sobre o uso do lugar (Hofstaetter, Pessoa, 2016; Traldi, 2019), como não são consultados sobre qualquer mudança no sítio ou na fazenda. Para aprofundamento destas informações sugere-se acompanhar a produção do Grupo de Pesquisa Dom Quixote/UFPB e acessar a tese de doutorado de Mariana Traldi.
Para além disso, o uso do solo, do mar e da natureza em geral, acaba desconsiderado, de modo eficaz, na elaboração desses índices, já que as mudanças neles não podem ser vistas de modo objetivo ou mesmo a curto prazo. Quando falamos de desmatamento, por exemplo, podemos recorrer ao índice de desmatamento, e o dado não só corrobora com uma crítica às energias eólicas, como ligam o alerta em todos os cenários futuros em que a ampliação dos números das instalações das fontes renováveis que podem levar à Caatinga a uma real ameaça de desertificação e de outros problemas.
Segundo o Relatório Anual do Desmatamento (RAD) produzido pelo MapBiomas, no acumulado entre 2020 e 2023, no Nordeste, o RN superou, em desmatamento, os estados de Pernambuco e Bahia, ficando atrás apenas do Ceará, que, diga-se de passagem, tem uma extensão territorial bem superior ao nosso estado, tendo, o RN, desmatado 1.660 ha para projetos de energia renovável, conforme gráfico apresentado na reportagem do Portal ECO (2024).
A situação se agrava, na comparação entre os anos de 2022 e 2023, em que o Rio Grande do Norte teve um aumento de 161% no desmatamento em geral, o que representa cerca de 9.135 hectares desmatados, somente em 2023. No entanto, desse total, 1.369 hectares foram desmatados para a produção de energia renovável; à frente do Piauí com 1.031,3 ha; Ceará com 948,6 ha; Bahia com 799,3 ha; Paraíba com 107,8 ha; Pernambuco com 45,6 ha. Este dado implica o equivalente a uma aumento de 372% no desmatamento para as renováveis, se compararmos com o dado do ano de 2022, quando o RN teve cerca de 290 ha desmatados para empreendimentos renováveis.
A fala da executiva da ABEEÓLICA cai novamente no fatalismo otimista e ficcional da esperança da energia eólica como carro-chefe do desenvolvimento potiguar. Segundo ela mesma, já viu famílias que viviam do Programa Bolsa Família conseguirem agora ter uma renda maior, com um aerogerador no fundo do quintal. Novo apelo de base preconceituosa. Não entendemos de que família e de qual quintal ela está falando. Em assentamentos rurais e em comunidades tradicionais a realidade não é de ter no seu quintal o aerogerador, muito menos da substituição do benefício do Bolsa Família. Além da precariedade de postos de trabalho e de sua sazonalidade já comentadas, em vários quintais, há sim a convivência, a visão e o ruído contínuos dos grandes cataventos, mas o dinheiro não tem entrado, pois o aerogerador encontra-se na propriedade de um vizinho latifundiário.
Em outros casos, conforme denúncia de algumas famílias, apesar dos contratos terem sido firmados, a empresa responsável não tem honrado o compromisso de efetuar pagamentos, assim, a renda da família teve uma redução abrupta, sem segurança jurídica para esses afetados. As empresas se aproveitam de dispositivos legais e expropriam a terra da família, ao mesmo tempo em que detém o poder de ampliar ou reduzir essa renda (algo quase sempre constatado). O que isso acarreta? Mais fome, frustração e outra série de problemas, cuja fala da representante da ABEEÓLICA, não consegue dar conta.
Tudo isso, advém da promessa de desenvolvimento que nunca se cumpre para as famílias potiguares. Como pensa o economista Alberto Acosta (2012), o desenvolvimento é tomado como uma via única, da qual não podemos sair, nem pensar fora da rota, deve ser efetivado a todo custo e as soluções para os problemas são encontradas dentro dele mesmo. A realidade é que esse modelo de desenvolvimento apregoado pela Presidenta da ABEEÓLICA e comprado por governos e autoridades, é um projeto fadado ao fracasso da humanidade, uma vez que aprofunda as desigualdades socioeconômicas e espaciais, agrava a degradação de bens ambientais estratégicos, especialmente o potencial hídrico do estado, compromete a produção de alimentos e entrega as terras e o patrimônio nacional para as empresas estrangeiras de forma incondicional quanto a defesa dos bens e interesses públicos.
As mudanças climáticas exigem bem mais do que resposta aos investidores. Exige pensar o bem comum, o cuidado com a terra e com as pessoas. Sem esse instrumento de reflexão crítica, é impossível compreender e agir diante dos problemas ocasionados pelas mudanças climáticas. A transição energética não pode ser tratada como instrumento de salvação cujas decisões vêm de cima para baixo.
Nós, atingidos pelos complexos de produção de energia eólica e renováveis em geral, exigimos a participação popular na formulação de uma regulamentação que realmente dê conta de compensar, evitar e reger a transição energética no RN, sob os auspícios da real dignidade dos povos e das populações, com respeito ao meio ambiente e convidamos a senhora Élbia a conhecer a realidade das famílias atingidas no RN, assim como acabou de fazer uma comitiva liderada pela Secretaria-Geral da Presidência da República e composta por representantes de vários ministérios, entre 03 e 06 de junho, por ocasião da visita da Mesa de Diálogo: direitos e conflitos. Se a política do Governo Federal, conforme anunciado no último 05 de junho, Dia do Meio Ambiente pela Ministra Marina Silva é de “desmatamento zero”, o modelo que vigora para a expansão da geração de energia por fontes renováveis precisa ser revisto. Pois no Nordeste brasileiro a Caatinga, que está sendo desmatada, é a maior vítima. E a Amazônia, sem a Caatinga, não sobrevive! Está tudo interligado nesta Casa Comum! A sociedade precisa abrir os olhos. Não podemos mais nos deixar enganar pelo engodo do falso desenvolvimento e das falsas soluções, em que o lucro vai para poucos e nos territórios ficam apenas os impactos. A sociedade brasileira precisa rediscutir esta Transição Energética, que de transição só tem o nome. O Nordeste brasileiro não precisa ser o celeiro da produção de hidrogênio para os países do Norte Global, que clamam por energia, em função de seus usos desastrosos da natureza e de suas guerras. Estamos permitindo a privatização do nosso território, a partir da concessão das nossas terras, em troca de migalhas, para um conjunto pequeno de empresas estrangeiras, que passam, na prática, a serem os donos do território nordestino. Dificilmente haverá um ambiente de negócio seguro, se não houver um ambiente de vida efetivamente sustentável.
(1). Conteúdo disponível em: <(23) Seminário: Mudanças climáticas no semiárido e no litoral: impactos e perspectivas para o RN - YouTube>. Acesso em: 17 de Jun. 2024.
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