A coluna “Tendências e debates” da Folha de São Paulo de 10 de dezembro, traz uma resposta do Governo ao jejum e orações permanentes de D. Luiz Flávio Cappio. O artigo, assinado pelo ministro da Integração Nacional, que se identifica como “pecuarista e cacauicultor”, traz como título “O inimigo número 1 da democracia”. Pelo teor do texto, fica a dúvida se o título é uma referência ao bispo ou uma apresentação do próprio autor.
As afirmações do ministro são o retrato do surrealismo que tem caracterizado o Governo do Presidente Lula. Uso este termo em seu sentido literal. Segundo o Aurélio o surrealismo caracteriza-se “pelo desprezo das construções refletidas ou dos encadeamentos lógicos e pela ativação sistemática do inconsciente e do irracional, do sonho e dos estados mórbidos”.
Eleito amparado na história dos movimentos que hoje estão ao lado de D. Cappio em sua luta, o presidente Lula permite ter como porta-voz um representante dos interesses da elite rural que o combateu em todas as suas tentativas anteriores de chegar ao poder. É fato que a história caminha e as pessoas mudam. Mas o que as organizações populares do Brasil esperavam era uma mudança na ação daqueles que sempre usaram a política como meio de obter crescimentos em seus negócios privados, não uma capitulação do “líder sindical” a esse tipo de prática.
A falta de “encadeamento lógico” no fato de um governo “de esquerda” ser representado por um “pecuarista e cacauicultor” do PMDB é reforçada pelas alianças, antes improváveis, com dinastias do nordeste, como a dos Sarney e similares, com usineiros e políticos da linhagem de Renan Calheiros, fiel aliado de Collor na formação da extinta República das Alagoas.
Para completar a fidelidade à definição de surrealismo, os discursos em defesa do projeto de Transposição do Rio São Francisco apelam para a “ativação sistemática do inconsciente e do irracional, sonho e estados mórbidos”. Usa-se o flagelo da seca e o sofrimento de milhares de pessoas para legitimar uma obra que se destina aos grandes latifúndios e à produção para exportação, conforme denunciam os movimentos que estão ao lado de D. Cappio. Se estou enganado junto com eles em minha avaliação, isso se deve à recusa do governo em debater abertamente com a sociedade sobre a transposição.
Se, no entanto, erro com o povo, os movimentos sociais, e com alguém que é digno o suficiente para colocar sua vida em defesa daquilo em que acredita, bendito seja esse equívoco! Não o trocaria por milhões de acertos em companhia daqueles que hoje cercam o presidente, que sequer foram capazes de se manter fieis à avaliação que outrora faziam de Lula e do PT. Ou dos que trocam seus princípios por qualquer cargo ou benefício privado que o Governo lhes tenha a oferecer.
O ministro Geddel, em seu artigo, tenta descaracterizar o gesto simbólico e profético de D. Cappio apelando aos princípios da democracia – como se sobre isso tivesse algo a ensinar aos movimentos sociais – e tentando dar outra conotação ao sentido de seu jejum. Em certo momento pergunta: “deve uma democracia se dobrar à certeza de um único indivíduo, por mais impactante que seja o simbolismo a que ele pretenda se associar?”
O que tenta o ministro com essa questão retórica? Justamente ativar o “estado mórbido” de parte da população brasileira que acredita ser democráticos o processo decisório, as instituições e o sistema eleitoral, distorcidos e corrompidos, que temos em nosso país.
O Governo poderia dizer-se representante da vontade da maioria caso tivesse a coragem de submeter o projeto de transposição ao debate público e ao julgamento popular. Como não o fez, torna-se impedido de falar em democracia, a não ser como recurso retórico.
O gesto de D. Cappio está longe de ser um gesto individual. Com ele estão milhões de brasileiros e estrangeiros que se inspiram pela causa da justiça, inúmeras entidades da sociedade civil organizada, as Comunidades Eclesiais de Base e as pastorais sociais que formam a Igreja Católica – jamais representada apenas por um ou outro membro de sua hierarquia. Todos têm se manifestado através de apoio escrito, celebrações, peregrinações ou passeatas.
O ministro Geddel manifesta uma idéia de democracia que é recorrente na elite mundial. Ou seja, só é democrático o processo cujo resultado lhes interesse – ainda que tenha sido obtido de forma autoritária. Quando o resultado da expressão da vontade popular é Hugo Chávez e Evo Morales, ou o Hamas, a democracia é inválida. Democráticos são os não questionados governos marionetes do Iraque e Afeganistão, fruto de invasão, ou decisões unilaterais e suspeitas como a ajuda bilionária aos banqueiros e a privatização da Vale do Rio Doce no Governo do PSDB – que, curiosamente, tinha o PMDB como base aliada. Certamente, a elite brasileira não defenderia o Governo Lula, em nome da democracia, caso ele realizasse a Reforma Agrária com justiça e fizesse as transformações estruturais que o país precisa.
A pergunta do ministro seria correta caso fosse reformulada: deve uma democracia se dobrar à certeza de uma única classe minoritária, por mais impactante que seja a ideologia de desenvolvimento econômico e o simbolismo de falsa justiça social a que ela pretenda se associar? Mas quem está acostumado ao coronelismo e à manipulação de votos e pessoas por indivíduos só conseguirá mesmo entender a atitude do bispo como gesto individual.
O artigo ainda traz afirmações que atentam flagrantemente contra a lógica. Ele diz, por exemplo que “fundamentalista é tudo o que não é a igreja, a santa igreja, a minha igreja como instituição”. Difícil seria elaborar uma frase melhor para definir o fundamentalismo de maneira cômica. É como dizer: “extremista é todo aquele que não pensa exatamente como eu”...
Mas preciso concordar com duas coisas ditas pelo ministro. Uma: “atropelar os ritos, desprezar o diálogo e ignorar as instituições, numa democracia, é pecado capital”. Sugiro-lhe que a anote em um bilhete e o ponha na mesa do presidente Lula. Outra: “o que não podemos permitir é que a chantagem substitua o diálogo e a democracia”. Recomendo-lhe que mande imprimir cartazes com esta frase para afixá-los nos gabinetes de deputados e senadores de seu partido, a fim de que sua atuação como parlamentares torne-se independente da liberação de emendas orçamentárias e da oferta de ministérios ou cargos no Governo. Quem sabe assim não seria mais fácil (e mais barato) votar as medidas do Governo no Congresso Nacional?
O ministro Geddel é, enfim, incapaz de entender a greve de fome de D. Cappio como forma legítima de mobilização social, por ainda mais dois motivos. Primeiro, a palavra “fome”, para a classe que ele representa, só possui sentido nos momentos que antecedem suas garantidas refeições. Segundo, a palavra “mobilização”, para seu partido (PMDB), é sinônimo apenas de articulações oportunistas e destituídas de projeto ideológico feitas com qualquer governo que se disponha a entregar-lhes cargos e ministérios, como o que ele hoje ocupa.
Por Maurício Abdalla, Professor do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo, membro do Movimento Nacional de Fé e Política.
Fonte: mst.org.br