Bispo da diocese de Barra (BA), Dom Frei Luiz Flávio Cappio, que iniciou greve de fome no dia 27, pedindo o arquivamento do projeto de transposição do Rio São Francisco, envia carta ao Povo do Nordeste. Com tom de desabafo Dom Luiz fala do descumprimento dos acordos firmados na ocasião da greve de fome em Cabrobó e que seu ato causa estranheza em muitas pessoas. Termina a carta dizendo que: ”Precisamos repensar o que estamos fazendo dos bens da terra, repensar os rumos do Brasil e do mundo. Ou estaremos condenados destruição de nossa casa e nossa própria extinção, contrao Projeto de Deus. "
Queridos Irmãos e Irmãs Nordestinos, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba e do Pernambuco, Paz e Bem!
Quando encerrei o jejum de 11 dias em Cabrobó, há dois anos atrás, acreditei sinceramente que o governo federal cumpriria sua palavra empenhada no acordo que assinamos. Este acordo estabelecia um amplo, transparente e participativo debate nacional sobre o desenvolvimento do Semi-árido e da Bacia do São Francisco.
Acreditávamos piamenteque se esse debate fosse verdadeiro seriam esclarecidas as reais necessidades e potencialidades do Semi-árido, e ficaria evidente que a transposição não era necessária nem conveniente ao povo nem ao rio. As águas abundantes do semi-árido falariam por si. E os projetos alternativos existentes se imporiam, como as obras do Atlas Nordeste para o meio urbano e as experiências da ASA ¬ Articulação do Semi-Árido para o meio rural.
O governo não cumpriu o prometido, abortou o debate apenas iniciado, ganhou as eleições e colocou o Exército para começar as obras da transposição. Movimentos e entidades da sociedade organizada intensificaram as mobilizações e os protestos, mas o governo se fezde surdo. Diante disso, não me restou outra alternativa senão retomar o jejum e oração, como havia dito que faria se o acordo não fosse cumprido. Para isso escolhi a capela de São Francisco, em Sobradinho ¬ BA, bem próximo da barragem de Sobradinho, que há 30 anos passou a ser o coração artificial do Rio São Francisco, um doente em estado terminal.
Sei que meu gesto causará estranheza e incompreensões em muitos de vocês. Não os culpo por isso. Há gerações vem sido dito a vocês que só a grande obra da transposição “resolve” a seca. Entre os maiores interessados nela estão pessoas que vocês bem conhecem, pois são as mesmas que há muitos anos dominam e exploram a região usando o discurso da seca para desviar dinheiro público e ganhar eleições.
A seca não é um problema que se resolve com grandes obras. Foram construídos 70 mil açudes no Semi-árido, com capacidade para 36 bilhões de metros cúbicos de água. Faltam as adutoras e canais que levem essa água a quem precisa. Muitas dessas obras estão paradas, como a reforma agrária que não anda. Levar maiores ou menores porções do São Francisco vai tornar cara toda essa água existente e estabelecer a cobrança pela água bruta em todo o Nordeste.
O povo, principalmente das cidades, é quem vai subsidiar os usos econômicos, como a irrigação de frutas nobres, criação de camarão e produção de aço, destinadas exportação. Assim já acontece com a energia, que é mais barata para as empresas e bem mais cara para nós. Essa é a verdadeira finalidade da transposição, escondida de vocês. Os canais passariam longe dos sertões mais secos, em direção de onde já tem água.
Portanto, não estou contra o sagrado direito de vocês água. Muito pelo contrário, estou colocando minha vida em risco para que esse direito não seja mais uma vez manipulado, chantageado e desrespeitado, como sempre foi. Luto por soluções verdadeiras para a vida plena do povo sertanejo ¬ isso tem sido minha vida de 33 anos como padre e bispo do sertão. É, pois, um gesto de amor vida, justiça e igualdade que nunca reinaram no Semi-árido, seja aí, seja aqui no São Francisco, longe ou perto do rio.
Agora mesmo é grande o sofrimento do povo não muito distante do rioe do lago de Sobradinho que, em função da energia para um desenvolvimento contra o povo, está com apenas 14%. Um projeto de R$13 milhões que resolveria o abastecimento dos quatro municípios da borda do lago espera desde 2001 pelo interesse dos governantes...
O São Francisco precisa urgentemente de cuidados, não de mais um uso ganancioso que se soma aos muitos que lhe foram impostos e o estão destruindo. Como lhes disse da outra vez, fosse a transposição solução real para as dificuldades de água de vocês, eu estaria na linha de frente da luta de vocês por ela.
O que precisamos, não só no Nordeste, é construir uma nova mentalidade a respeito da água, combater o desperdício, valorizar cada gota disponível, para que não ela não falte reprodução da vida, não só a humana. Precisamos repensar o que estamos fazendo dos bens da terra, repensar os rumos do Brasil e do mundo. Ou estaremos condenados destruição de nossa casa e nossa própria extinção, contrao Projeto de Deus. Senhor, Deus da Vida, ajude-nos! “Para que todos tenham vida!” (João 10,10).
Recebam meu abraço e minha benção,
Dom Luiz Flávio Cappio, Ofm.
Sobradinho - BA, 29 de novembro de 2007.