Desde 2008, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. De acordo com o último Censo agropecuário, realizado em 2006, cerca de 80% dos grandes proprietários rurais usam veneno em suas plantações. Só em 2009, foram mais de 1 bilhão de litros de agrotóxicos utilizados nas lavouras do Brasil. É como se cada brasileiro consumisse em média cinco litros de veneno por ano. As consequências são desastrosas para o povo do campo e da cidade, mas são ainda piores para aqueles que trabalham diretamente na aplicação dos agrotóxicos. Nesta reportagem, a CPT mostra a perversa situação da utilização de agrotóxicos pelas Usinas de cana-de-açúcar do Estado e constata que, nos canaviais, o modelo do agronegócio condena os trabalhadores à morte.
Leia a seguir:
O distrito de Upatininga, município de Aliança – Zona da Mata Norte de Pernambuco -, onde mora a agente comunitária de saúde M.F, é cercado por cana-de-açúcar, como as das Usinas São José e Santa Tereza. Segundo a agente de saúde, “a grande maioria das famílias de Upatininga vivem à mercê da plantação de cana”. Ali, os casos de contaminação e morte de trabalhadores rurais por causa dos agrotóxicos no monocultivo da cana são assustadores. Em cinco minutos de entrevista para a Comissão Pastoral da Terra, Dona M.F relembrou mais de sete casos.
Entre tantos, M.F relatou o caso de Seu Teinho, trabalhador rural, de 37 anos e que morava no distrito. Ela contou que o trabalhador sequer teve tempo de ser socorrido. “Ele morreu de repente. Foi encontrado morto dentro do banheiro de sua casa. Só descobrimos que foi o veneno da cana quando chegou no IML”.
Outro caso relatado por ela foi o do canavieiro Reginaldo Afonso da Silva, de 31 anos, que aplicava veneno na então Usina Olho D'água. “Ele começou a sentir tontura e vomitar sempre pela manhã, mas quando foi sentir esses sintomas já era tarde demais. Do aparecimento do sintoma até a morte, só foi 15 dias. Agora imagine quantos trabalhadores rurais estão nesta mesma situação e nem sabem? Quando vão saber, já é tarde”, comenta.
Semanalmente, o posto de saúde de Upatininga recebe muitos trabalhadores rurais do distrito e de outros municípios vizinhos. “Muitas vezes eles (os trabalhadores) chegam aqui já desmaiados. Ai, pensamos que é fome, mas quando vamos analisar os casos, percebemos que é por conta do veneno na cana”, relata a trabalhadora.
Nesta região é muito raro que um atestado de óbito venha registrado que a morte tem como causa a contaminação por agrotóxico. Quem afirma isto é outra enfermeira do posto de saúde de Upatininga, que também não quis ser identificada. “A gente reconhece mesmo que a morte é por conta do veneno, mas é muito difícil sair no atestado de óbito. Eles colocam que é por morte natural mesmo, ou por uma infecção”. Isso porque os agrotóxicos agem de forma cada vez mais inteligente no organismo humano, segundo o engenheiro agrônomo do Ministério do Trabalho de Pernambuco, Rubens Mesquita Jamir. Hoje são produzidos agrotóxicos em que as substâncias entram no organismo, causam o dano, e se dissipam não sendo identificadas com tanta facilidade depois de um tempo, ressalta Rubens.
Esses casos denunciados pela agente de saúde de Upatininga se repetem em toda a zona da Mata de Pernambuco. Para Zé Lourenço, do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Aliança (PE), a situação chega a esse ponto porque a utilização de agrotóxicos pelas Usinas de cana-de-açúcar do Estado é classificada como “um desespero”. Para Lourenço, “nos canaviais, as Usinas condenam os trabalhadores à morte. Não é pra reclamar, pra falar, pra dizer. É pra morrer.”
“A norma do Ministério do Trabalho é uma, a da Usina é outra”No município de Itaquitinga, também localizado na Zona da Mata Norte de Pernambuco, os trabalhadores, que atuam diretamente na aplicação de agrotóxicos nas Usinas da região, denunciam os casos de exploração, desrespeito trabalhista e de abuso no uso dos venenos. Um dos distritos do município, Chã de Sapé, é cercado pelas terras da Usina Santa Tereza. Ali, um dos funcionários da empresa, de 31 anos e que preferiu não ser identificado, comenta que já trabalhou na aplicação de veneno em várias usinas da região. Ele relata como é o cotidiano dos trabalhadores que desempenham esta função e como são tratados: “Quando a gente vai aplicar veneno: seja lá o que Deus quiser por dentro das canas”. O trabalhador denuncia que “a norma do Ministério do Trabalho é uma, a da Usina é outra”.
Segundo uma das orientações estabelecidas pelo Ministério do Trabalho (MT), a aplicação de veneno deverá ser feita apenas em horários considerados “frios”, como das 5h até às 8h30. De acordo com Rubens Mesquita, isso acontece porque 95% dos casos de contaminação de trabalhadores com o agrotóxico se dá pela pele e “quando o trabalhador aplica o veneno em horários quentes, os poros se dilatam e as possibilidades de contaminação são maiores”. Mas a “norma da Usina é aplicar o veneno nos dois horários, de manhã até depois das 11h e a tarde também, a partir das 14h. Ela quer é o serviço feito”, afirma o trabalhador. Ele ainda explica que a média de cada funcionário é aplicar 10 bombas, cada uma com 20 litros de veneno, por turno: o que equivale à 400 litros de agrotóxicos que cada trabalhador aplica por dia no canavial.
Um dos agrotóxicos mais aplicados no monocultivo, de acordo com os trabalhadores, é o Roundup, produzido pela transnacional Monstanto. A embalagem de um litro do veneno custa de 10 à 15 reais e pode-se aplicar, com essa quantidade, aproximadamente um hectare de terra. “É um dos mais baratos e fáceis de se conseguir, e também um dos mais fortes e perigosos”, comenta o trabalhador. Segundo o agrônomo do Ministério do Trabalho, este herbicida, por outro lado, é um dos venenos mais difíceis de ser rastreado no organismo humano. O preço do exame para identificar com rapidez o princípio ativo do agrotóxico varia entre 700 a mil reais por pessoa. Então, segundo o agrônomo, geralmente o que se faz são exames mais gerais sem especificações de princípios ativos. Mas, de acordo com o trabalhador, ainda que as Usinas façam os exames, os resultados não são repassados: “não chega o resultado na mão da gente não".
Para Marluce Melo, da Comissão Pastoral da Terra, “esta situação é perversa e inadmissível. Mas não é de se estranhar que isso aconteça no Brasil, o maior consumidor de agrotóxicos e também o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo. Esses trabalhadores e trabalhadoras rurais são os primeiros atingidos por esse modelo perverso de agricultura, que concentra terra e usa de forma desenfreada os agrotóxicos. E isto é só a ponta do problema. Os agrotóxicos contaminam e matam tudo ao redor, contamina a terra, a pessoa que aplica e até o ar que respiramos. Os alimentos que chegam nos supermercados e feiras estão envenenados e chegam na mesa da população de forma invisível”.
* Os nomes dos trabalhadores e da agente de saúde entrevistados pela CPT foram preservados.
Setor de comunicação da CPT NE II