Consumo entre bóias-frias está em relatório da ONU divulgado na Espanha.
Centenas de trabalhadores rurais se viciaram na droga comum dos grandes centros urbanos, apontam documentos da Pastoral do Migrante divulgados em relatório da ONU (Organização das Nações Unidas), na Espanha, no final de setembro. O documento criticava a expansão de 15% na área plantada de cana em São Paulo, em relação a 2006 -o salário, porém, é o mesmo de 2003, de R$ 2,70 a R$ 3,07, dependendo do tipo da cana.
DIEGO ZANCHETTA
DO "AGORA", EM PRADÓPOLIS (SP)
O jovem maranhense E.D., 27, está feliz com os R$ 900 de salário mensal. Ele não vê a hora de encerrar mais uma jornada. Às 15h20, o bóia-fria já cortou dez toneladas de cana, e agora quer relaxar com os conterrâneos. No alojamento, onde mora com 18 colegas, nem troca a roupa imunda de fuligem antes de largar o podão.
Com o cachimbo improvisado em um cano de plástico, vem a "recompensa" por mais um dia exaustivo. "É uma tragada e a dor nas costas passa na hora."
Essa era a rotina do bóia-fria E.D., natural de Coroatá, no interior do Maranhão, um dos 15 cortadores de cana dependentes de crack internados em uma pequena clínica em Pradópolis, a 320 km da capital. Há 20 dias ele deixou o alojamento de bóias-frias para se tratar. Como ele, centenas de trabalhadores rurais se viciaram na droga comum dos grandes centros urbanos, como apontam documentos da Pastoral do Migrante divulgados em relatório da ONU (Organização das Nações Unidas), na Espanha, no final de setembro. O documento criticava a expansão de 15% na área plantada de cana em São Paulo, em relação a 2006 -o salário, porém, é o mesmo de 2003, de R$ 2,70 a R$ 3,07, dependendo do tipo da cana.
O consumo do crack entre cortadores de cana na região de Ribeirão Preto (314 km de SP) também é relatado por autoridades policiais, pesquisadores acadêmicos e até por usineiros.
"O crack aparece nas situações degradantes para o ser humano, como entre os moradores de rua. Nos canaviais, a droga volta a surgir como algo para enfrentar o insuportável", analisa a pesquisadora Maria Lúcia Ribeiro, coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Maria Lúcia foi a responsável por compilar os dados que apontaram o consumo da droga entre os cortadores.
Difícil acesso
Para a polícia, o tráfico se infiltrou em uma área de difícil acesso para investigação. Já especialistas dizem que o crack é usado para amenizar dores -os bóias-frias trabalham até dez horas sob sol forte.
Os dependentes contam diferentes histórias sobre como conheceram o crack. E.D., por exemplo, disse que costumava fumar maconha no Maranhão. Procurou pela droga ao chegar, em 2005, mas conheceu o crack. "Um pedreiro de Piracicaba disse que tinha crack. Comecei a fumar e não parei mais", disse o maranhense, que conta já ter passado um mês morando em construções abandonadas nos canaviais.
Como seu colega, J.G. perambulou como mendigo pelos canaviais de Motuca (325 km de SP) em abril. Só buscou ajuda após correr dois dias de um carro de polícia que não existia. "Tinha 120 kg em 2004. Agora só tenho 64 kg." Os dependentes dizem que a pedra é vendida nos alojamentos por R$ 5 -em São Paulo, custa R$ 10.
Para o padre Antonio Garcia, da Pastoral do Migrante, o crack se alastrou no campo como opção ao sofrimento. "Pelos relatos e com a falta de assistência médica, o problema só tende a aumentar."
Relatório quer desqualificar país, diz usineiro Para o empresário Maurilio Biagi Filho, documento é reação ao desempenho do Brasil na área de biocombustíveis.
Ele disse acreditar que o uso de drogas entre cortadores de cana tenha relação com o fato de Ribeirão Preto ser rota de tráfico no Estado.
O empresário Maurilio Biagi Filho, um dos principais usineiros do país e conselheiro da Unica (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo), afirma acreditar que o uso de drogas entre cortadores de cana pode estar relacionado com o fato de as estradas da região de Ribeirão Preto serem rotas do tráfico no Estado.
Sobre o relatório da ONU que citou o consumo de crack entre os bóias-frias da região, o megaempresário do setor sucroalcooleiro, porém, considera que americanos e europeus tentam desqualificar o Brasil como nova potência na área dos biocombustíveis.
Biagi Filho rebateu também as acusações de falta de assistência aos trabalhadores de usinas, feitas por pesquisadores, sindicalistas e também pela Pastoral do Migrante.
"Como o nosso setor está crescendo, tem muito fazendeiro inexperiente contaminando o meio. São nessas fazendas que os trabalhadores enfrentam condições ruins de trabalho. Qualquer setor que cresce 10% ao ano tem uma desarrumação", opina. "Na hora de fazer as críticas, as pessoas têm de saber diferenciar o joio do trigo. Os 90% de usineiros que oferecem todo o respaldo possível aos seus trabalhadores não podem pagar o preço pelos 10% ruins, que são os pequenos fazendeiros que entraram em um mercado sem conhecê-lo direito", afirmou.
O usineiro diz que o problema das drogas nos canaviais, principalmente o crack, não atinge "nem 0,5%" dos bóias-frias. "A droga está presente em todos os lugares, não existe mais diferença de faixa etária ou profissão", disse. Ele também criticou o relatório da ONU. "Os europeus e os americanos não têm interesse que o Brasil seja uma potência do biocombustível e tentam dizer que todas as mazelas sociais do país são culpa da cana. Isso não é verdade", acrescentou.
O empresário afirmou ainda que as usinas oferecem planos de saúde aos funcionários e diz não considerar baixo o salário de cerca de R$ 1.000 pago aos cortadores.
"O trabalhador rural tem os mesmos direitos dos outros. E ganha um pouco mais pelo esforço físico se for comparado, por exemplo, a um balconista, que tem menos esforço", acrescentou.
Queimadas
Biagi Filho disse que o compromisso das usinas é acabar com as queimadas na região de Ribeirão Preto até 2014. A queimada, usada para facilitar o corte da cana, é criticada pelo Ministério Público -o recurso, além de poluir o ar com fuligens da cana, pode resultar em alterações climáticas, como o aumento da temperatura.
Bóia fria tratava crack como o "diabo no corpo"
Em 2006, a cientista social Maria Aparecida Moraes, da Unesp de Araraquara (273 km de SP), entrevistou bóias-frias que diziam cortar cana "com o diabo no corpo". Pesquisadora do trabalho dos migrantes nas lavouras há 30 anos, ela diz ter descoberto que o "diabo" era, na verdade, o crack.
"O crack diminui as dores no corpo dos bóias-frias, assim como a maconha", diz. "Outro dado relevante é que muitos migrantes regressam para seus Estados de origem com droga para vender", diz a cientista.
A pesquisadora constatou em seu trabalho que o crack é usado para aumentar o rendimento no corte da cana, mas dependentes contaram à reportagem que o consumo ocorre principalmente nos alojamentos. "Ninguém fuma com sol na cabeça. O negócio rola depois, sempre com pinga", conta o cortador M.C., 27.
Coordenador da clínica de Pradópolis que trabalha na recuperação de bóias-frias, Humberto de Souza diz acreditar que o uso do crack poderia ser evitado se as usinas investissem em assistência social. "São pessoas que estão longe da família, muitas vezes já consomem álcool. É um contexto fértil para o crack proliferar."
Outro defensor dos cortadores, o padre Antonio Garcia, da Pastoral do Migrante, afirma que o crack vendido nos alojamentos é misturado com cal. "Já ouvi isso dos próprios trabalhadores", disse. (DZ)
Fonte: Folha de S. Paulo,14/10/07