Comissão Pastoral da Terra Nordeste II

Folha de S. Paulo , 29/9/2007 Reportagem da Folha sobre a Fazenda Pagrisa.

O relatório de fiscalização e combate ao trabalho escravo do Ministério do Trabalho sobre a Fazenda Pagrisa, no Pará, sustenta que funcionários não recebiam salários, em determinados meses, por terem dívidas feitas com a compra de remédios e alimentos na propriedade, conviviam com falta de segurança e higiene e a condição dos alojamentos era precária.

O documento, com 18 volumes e 5.000 páginas, descreve a situação encontrada pelos fiscais que visitaram a fazenda entre 28 de junho e 8 de julho. Nesse período, 1.064 trabalhadores foram "resgatados" de condições análogas à escravidão, segundo os fiscais.

A fiscalização na Pagrisa abriu crise entre o Senado e o ministério e levou à suspensão das ações do grupo móvel responsável por fiscalizar condições de trabalho em todo o país.

Os proprietários da fazenda reclamam de excessos por parte da fiscalização e negam maus tratos de seus funcionários. A reclamação levou cinco senadores, liderados por Flexa Ribeiro (PSDB-PA), a criar uma comissão especial para investigar o trabalho de fiscalização. O ministério decidiu suspender os trabalhos alegando interferência dos parlamentares.

A Pagrisa tem 17.000 hectares. Sua principal atividade é o cultivo de cana para produzir 300 mil litros de álcool por dia. Entre os compradores estava a Petrobrás, que, desde a fiscalização, deixou de ser cliente. O relatório sobre a fazenda cita o caso de 45 funcionários que nas folhas de pagamento de abril e maio receberam R$ 0,00 de salário líquido. Dois dos citados ficaram ambos os meses com o contracheque zerado.

"A empresa não garantia o salário mínimo aos empregados que recebiam por produtividade. Tal fato, somado aos descontos de alimentação e de medicamentos que os empregados consumiam, fazia com que, em muitos casos, empregados recebessem apenas o suficiente para pagar seus gastos com comida e medicamentos."

"Não eram raros os casos de obreiros que não produziram o suficiente para custear as despesas de alimentação, o que levou a empresa a criar a rubrica Crédito de Complementação de Salário, para que os holerites não gerassem valor negativo de salário". Os créditos eram descontados no mês seguinte.

Consta no relatório uma comparação entre os preços de remédios vendidos em Marabá (PA) e os mesmos vendidos na fazenda. O medicamento Aziltromicina 500 mg, que no município custava R$ 13, era vendido na fazenda por R$ 23,21.

A fiscalização constatou ainda que funcionários trabalhavam sem equipamentos de proteção como óculos e luvas. Eles receberam denúncias dos próprios trabalhadores, de que "fiscais foram ao campo [no dia em que as equipes chegaram] e distribuíram rapidamente equipamentos de proteção."

Também foi observado que a alimentação causava infecções intestinais na maioria dos funcionários. A própria empresa admite, segundo o relatório, que "o ambulatório médico registrou 38 casos de sintomas de diarréia que poderiam estar relacionados à alimentação".

Os alojamentos foram considerados "superlotados" pelos fiscais. "Em lugares com capacidade para 30 trabalhadores, foram alojados 50 obreiros". As equipes relatam assim a situação de um dormitório: "Havia um esgoto a céu aberto que era despejado na represa utilizada pelos empregados para tomar banho e lavar roupas. Tal prática de tomar banho na represa era estimulada pelo fato de faltar água nos horários em que os empregados tomavam banho".

Senador admite que fez inspeção com avião da Pagrisa

O senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) disse estar preocupado com a polêmica gerada no caso da Fazenda Pagrisa por "denegrir a imagem do Pará e do Brasil". Ele qualificou como "incorreta" a atitude da secretária de Inspeção do Trabalho, Ruth Vilela, que paralisou a fiscalização do grupo do Ministério do Trabalho.

Ribeiro confirma que esteve na fazenda no último dia de fiscalização, em julho, e que chegou ao local com avião cedido pela empresa. "Os empresários viabilizaram minha ida ao local, onde não existe a presença linhas aéreas comerciais."

O senador concedeu a seguinte entrevista ao jornal paulista:

Qual é a relação do senhor com os proprietários da Fazenda Pagrisa?

Eu não conhecia os empresários até que um amigo comum me procurou para que eu os recebesse. Ele disse que tinham denúncias de excessos na fiscalização e queriam investigação. A fiscalização começou em uma quinta e eu recebi os empresários na segunda seguinte. Até então, nunca tinha tido qualquer contato com eles. A Pagrisa é uma empresa do meu Estado que produz etanol há 25 anos.

Como foi a reunião?

Foi no meu escritório em Belém. Eles me disseram que estavam havendo excessos por parte dos fiscais. Eu disse que precisava ir a Brasília, mas que visitaria a fazenda antes do fim das inspeções. Voltei para Brasília e convidei o senador José Nery (PSOL-PA) para me acompanhar. Lamentavelmente, ele não pode ir comigo.

E como o senhor foi até a fazenda?

A fazenda fica a 400 km de Belém. Os empresários apenas viabilizaram minha ida ao local, onde não existe a presença linhas aéreas comerciais. Assim como o Senado viabilizou a ida dos senadores na semana passada.

O senhor esteve lá na fazenda na época da fiscalização e, na semana passada, com os outros senadores. O local estava igual nas duas ocasiões?

Não vou entrar no mérito agora. Criamos a comissão especial exatamente para isso. É uma comissão suprapartidária para dizer se houve ou não excessos dos fiscais. Eu li na imprensa que o ministro [do Trabalho, Carlos Lupi] questionou o fato de investigarmos apenas este caso entre outros 500. Mas isso é porque houve uma denúncia, e nos outros casos, não.

E como o senhor vê a atitude de Ruth Vilela de paralisar os trabalhos de fiscalização?

Eu sou a favor do trabalho feito pelo Grupo Móvel [como são conhecidas as equipes]. É um trabalho muito importante. Mas a atitude dela é incorreta. Acredito que é ela quem quer desqualificar o Senado, que tem o direito constitucional de averiguar qualquer ato do poder público. Achei muito estranho. Não queremos desqualificar o trabalho do governo. Queremos apenas esclarecer o que houve. Eu fico apenas preocupado, pois essa polêmica denigre a imagem do Pará e do Brasil.

Diretor da Pagrisa diz que houve 'abuso de autoridade'

O diretor-presidente da Fazenda Pagrisa, Marcos Villela Zancaner, negou as irregularidades na propriedade e disse que houve "abuso de autoridade" por parte dos fiscais do Ministério do Trabalho.

Sobre trabalhadores que não recebem salários, o empresário disse que houve um equívoco de uma funcionária dos Recursos Humanos, que trabalha com a folha de pagamento. Ele diz que todos os funcionários têm carteira de trabalho assinada, conta no Banco do Brasil e recebem pelo que trabalham. Também disse que a folha de pagamento da empresa varia entre R$ 750 e R$ 2.000. "Tive um funcionário que ganhava R$ 2.000 e que, mesmo assim, deixou a empresa na época da fiscalização", afirmou.

Sobre os alimentos, Zancaner alega que a Nutrivita, "empresa séria que também atende a Coca-Cola e a Vale do Rio Doce", é a responsável pelo fornecimento. Ele negou que houve distribuição de equipamentos de seguranças no dia da fiscalização. Segundo ele, a empresa possui técnicos que vão a campo substituir equipamentos rasgados por novos.

O empresário admitiu que, "naquela hora de sufoco", procurou o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), por meio de um amigo em comum. "Como a fazenda é distante, ele me pediu para disponibilizar um avião e nós disponibilizamos".

Zancaner também negou todos os maus-tratos apontados pelos três trabalhadores. "Nunca ouvi falar de bicho em comida", disse.

"Quando os fiscais foram lá, comeram essa comida. Se tivesse bicho, você acha que eles comeriam?", questionou. Em relação ao local onde os cortadores de cana ficavam, disse que é "da cultura" do Pará a colocação de redes em vez de camas. A suposta superlotação, afirmou, nunca aconteceu.

"O que houve é que, um tempo atrás, a gente teve um problema com um gerador de energia e tivemos que colocar o pessoal de um alojamento em outro. Mas quando os fiscais chegaram havia até dois alojamentos vazios. Sobrava lugar", afirma ele.

Afirmou ainda que boa parte das má condições desses locais se deve a depredações e ao fato de que, quando os fiscais chegaram, os funcionários da limpeza pararam de trabalhar.

Zancaner, sobrinho-neto do senador paulista Orlando Zancaner (1923-1995), disse estar vivendo uma injustiça. "É injusto demais da conta. Eu jogo bola com os funcionários, meus filhos estudam no mesmo colégio que os filhos deles estudam. Somos gente simples."

A Pagrisa também fez um "contra-relatório" para responder à autuação. Segundo o relatório, um dos 44 alojamentos da empresa estava com problemas.

"As pequenas irregularidades são absolutamente insuficientes para caracterizar o trabalho em condições degradantes ou análogas a de escravo", afirma o relatório.

A empresa diz ainda que o fiscal "aliciou" os trabalhadores, "prometendo o pagamento de todos os salários do contrato de safra, um salário de aviso prévio, mais três salários de seguro-desemprego, e mais, tudo isso para ficar em casa".

"Tratavam a gente igual a porco", diz trabalhador,

"Eles tratavam a gente igual a porco." É assim que Francis Vanicolla, 25, um dos trabalhadores libertados de uma fazenda da Pagrisa, definiu as condições em que vivia na propriedade, em Ulianópolis (417 km de Belém). Em julho, a destilaria foi alvo, segundo o Ministério do Trabalho, da maior libertação de pessoas em situação análoga à escravidão: 1.065.

"A água [para beber] era quente, a refeição era feita na beira do canavial, no sol quente. Havia bicho na comida, tapuru [verme], toda estragada", disse Vanicolla.

"Se parasse para sentar no chão, não podia. Descansar um pouquinho, não podia. Teve um cabra que se encostou na vassoura e um encarregado chegou e mandou embora."

Além dele, a reportagem ouviu, por telefone, o relato de outros dois trabalhadores, todos moradores de Pio XII, no Maranhão. A cidade é a terceira que mais teve pessoas libertadas (70) na ação na Pagrisa.

Eles afirmaram que viram ou viveram condições degradantes. No entanto, nenhum disse que era proibido sair da fazenda. Contaram também que eram obrigados a pagar por comida e remédios.

"Deram um alojamento para a gente, com as camas lá. Mas o colchão a gente tinha que pagar para eles", disse Gilmar da Silva, 20. Vanicolla deu um exemplo: "Passei dez dias na cana, deu R$ 79. Mas aí paguei R$ 69 de comida". Por mês, cada um dos três ganhava R$ 475.

Valdiluz Magalhães, 22, confirma que tinha de pagar preços elevados por remédios. "Ruim era a situação dos cortadores de cana, pois dormiam todos juntos em um barracão nojento", afirmou.

"Era na rede, tudo bagunçado. Dentro de um quarto quente. Eram 70 redes no galpão, uma trançada na outra", confirmou Silva, que disse ter sido bem tratado, no entanto. "O pessoal reclamava muito. Queriam água gelada, uma comida bem melhor. Era ruim por causa do fermento, eles botavam fermento na carne, ela ficava grossona, grandona."

No dia em que os fiscais chegaram, Silva disse que todos saíram "alegres". "Todo mundo gostou."

Pessoal ficou feliz, feliz demais. Era doído", disse Vanicolla. Dos três, Magalhães é o único a dizer que se arrepende de ter ido embora. "Tentei voltar, mas acho que eles não me aceitam mais, não."

 

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