Veja nota da Comissão Pastoral da Terra que, neste ano, comemora 25 anos de sua Campanha De olho aberto para não virar escravo.
Nota Pública - “De Olho Aberto para Não Virar Escravo...”: SIGAMOS EM CAMPANHA!
No dia em que recordamos a dramática chacina de Unaí, MG, quando, 18 anos atrás, balas assassinas tiraram a vida de 4 servidores da fiscalização do Ministério do Trabalho, nosso sentimento de indignação se mistura ao desejo de homenagear mulheres e homens que, arriscando a própria vida, investigam denúncias de trabalho escravo no campo e na cidade e resgatam pessoas das garras dos modernos escravagistas.
De 2003 a 2013, foram encontradas no Brasil, em média anual, 4 mil pessoas em condição análoga à de escravo, 85% delas no campo. Mas, a partir de 2014, e durante 7 anos, este número ficou bem menor: “apenas” 1 mil resgatados por ano, como se tivesse recuado a realidade da escravidão ou acontecido uma redução das vulnerabilidades que expõem determinados grupos ao risco de trabalho escravo. Os números de 2021 vêm desmentir essa hipótese: cerca de 2 mil trabalhadores e trabalhadoras foram resgatados pela fiscalização, um recorde desde 2013. Isso seria uma má ou uma boa notícia?
O trabalho escravo na invisibilidade
Se fosse verdadeira, a “melhora” dos números observada entre 2014 e 2020 teria ido na contramão da realidade: uma brutal deterioração das condições de vida e de trabalho, com a crescente extensão da pobreza, a qual alcançou em 2020 um em cada 4 brasileiros. Essa situação, inédita havia anos, só fez piorar depois, com a redução drástica dos benefícios emergenciais criados para mitigar os efeitos da pandemia.
Assim, nesses tempos difíceis, o acirramento da pobreza e da desigualdade tornou claramente as pessoas mais vulneráveis a serem submetidas à migração forçada, ao aliciamento e a situações de escravidão.
Para explicar essa aparente contradição pode-se invocar fatores que geraram uma falsa leitura da realidade enquanto na verdade simplesmente concorriam para a invisibilidade do trabalho escravo. Entre eles:
- o medo ou a recusa de um trabalhador denunciar a sistemática violação dos seus direitos, pois conseguir um serviço, por pior que seja, é percebido como melhor que nada: em situação de extrema “precisão”, fica ainda mais difícil denunciar a situação de exploração, aceita-se qualquer trabalho e há medo de perder o pouco que se consegue;
- a redução contínua dos orçamentos e dos efetivos dedicados à fiscalização, faltando hoje, após 8 anos sem nenhum concurso de recrutamento, mais de 1.500 auditores fiscais (40% dos cargos existentes);
- a reforma trabalhista de 2017 colocou trabalhadores e trabalhadoras em situação de risco maior. Favorecendo abertamente a parte patronal, liberou toda e qualquer terceirização e precarizou ainda mais a relação trabalhista. Ao contrário da propaganda, que anunciava “mais emprego e investimentos”, a flexibilização das relações de trabalho retirou e segue abalando os direitos da classe trabalhadora, empurrando cada vez mais pessoas para as margens, na exclusão... ou no trabalho degradante, exaustivo, forçado. Escravo. “Pejotizados”, “uberizados”, terceirizados à força, precarizados e enfraquecidos na sua capacidade de organização e mobilização. Falsamente autônomos ou empreendedores e com a impressão de “vale-tudo” quando se trata de ferir os direitos trabalhistas.
Imposição de condições degradantes, insalubres, que colocam em risco a saúde e a vida da pessoa: alimentação precária, falta de água potável, negação de alojamento decente, de equipamentos de proteção, humilhação e ameaças, isolamento geográfico, endividamento compulsório, violência física. Tais são ainda hoje os meios utilizados para manter trabalhadores e trabalhadoras submissos e amarrados, frustrados dos seus direitos, não só de ir e vir, mas de viver dignamente.
Inversão de tendência?
Nessa trajetória de uma anunciada e crescente invisibilidade do trabalho escravo em nosso meio, os resultados de 2021 trazem um impressionante desmentido: mesmo com as limitações impostas pela pandemia e pelos criminosos cortes orçamentários, a atuação da fiscalização do renascido Ministério do Trabalho tem quase que explodido em 2021, pulando de uma média anual de 260 estabelecimentos fiscalizados (2014-2020), para mais de 440 em 2021 (mais que em qualquer um dos 27 anos de existência do Grupo Móvel de Fiscalização), com o dobro do número de trabalhadores e trabalhadoras resgatados em relação à media dos anos anteriores.
Se confirmada, essa é uma “boa” notícia.
Se confirmada, podemos creditar e parabenizar a resistência dos trabalhadores e das trabalhadoras que, inconformados com a situação de degradação e humilhação, denunciaram que eram submetidos ao trabalho escravo, encontrando a teimosa atuação dos servidores públicos empenhados na fiscalização.
Ao mesmo tempo sabemos que “número não é realidade”: é tão somente uma parte do que dela se conseguiu apreender. Como ter certeza de que não deixamos de ver ainda boa parte desta realidade? O fato de a metade dos resgates de 2021 ter sido realizados na região Sudeste, principalmente em Minas Gerais, é bastante significativo, mas, a contrário, indica que pouco se tem conseguido fazer no Norte onde, até 10 anos atrás, mais da metade das operações e dos resgates eram realizados. O fato de entre um terço e a metade dos resgates dos últimos 4 anos ter sido feitos nas monoculturas do agronegócio também merece ser examinado com atenção. Agro é pop?
Em luta contra o trabalho escravo
Há quase 50 anos, a embrionária CPT iniciava uma verdadeira cruzada contra a escravidão contemporânea no Brasil. Não por acaso, retomando após 4 séculos o grito acusatório de Antônio de Montesinos (“Estos no son hombres?”), Pedro Casaldáliga se tornou um dos pais fundadores da Comissão Pastoral da Terra.
E 25 anos atrás, movidos pela mesma indignação profética, frei Henri des Roziers e as equipes da frente pioneira da região Araguaia-Tocantins colocaram essa nossa CPT em campanha, uma campanha nacional, forjando este lema que continua absolutamente atual hoje: “De Olho Aberto para Não Virar Escravo!”.
Nesses 25 anos de Campanha, com o empenho das nossas equipes e a corajosa denúncia de trabalhadores, trabalhadoras e seus familiares – representados por Dona Pureza, a mãe que saiu de Bacabal (MA) em busca de seu filho Abel para libertá-lo do trabalho escravo, em breve nas telas do cinema –, o invisível passou a ser mais visível, menos enterrado.
A conta de 60 mil pessoas encontradas em condição análoga à de escravo, desde 1995, já foi ultrapassada. Denunciado, pressionado nacional e internacionalmente, o Estado foi obrigado a tomar alguma postura e a lançar mão de políticas, inicialmente na área da repressão e, aos poucos, mas ainda muito pouco, da prevenção e da inserção.
Pois o crime do trabalho escravo, sim, continua a existir e, na sua trilha, os crimes que com ele caminham juntos, no bojo de um modelo de desenvolvimento perverso: desmatamento, grilagem, envenenamento, destruição dos ecossistemas, genocídio, racismo. (Sim! Ainda hoje, escravidão tem cor!).
Em tudo isso, é a vida que vale pouco.
Em Campanha permanente, seguimos nessa luta por vida digna. Continuaremos abrindo o olho, sendo vigilantes, criando condições, ampliando nossas ações, apoiando a organização comunitária e o trabalho de redes locais de vigilância, cobrando programas e políticas públicas que possam não apenas mitigar mas arrancar as raízes do problema.
Essa luta continua!
28 de janeiro de 2022,
dia nacional do Auditor Fiscal do Trabalho & dia nacional de Combate ao Trabalho Escravo
Comissão Pastoral da Terra