Artigo
O ano de 2015 que começara com a suspensão da Lista Suja – em decorrência de decisão liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal, tomada no final de 2014 a pedido das grandes construtoras e mantida até hoje – encerrou com graves preocupações quanto à continuidade da politica brasileira de combate ao trabalho escravo, alvo também de seríssimas ameaças no Congresso. Confira análise sobre Trabalho Escravo no Brasil no ano de 2015 elaborada por frei Xavier Plassat, da coordenação da Campanha da CPT de Erradicação e Combate ao Trabalho Escravo “De olho aberto para não virar escravo”.
Em 2015, cerca de 1000[1] trabalhadores/as foram resgatados da escravidão – um número em nítida redução se comparado à média dos 4 anos anteriores (2260) e ainda inferior de um terço ao de 2014 (1550). Essa queda é paradoxal, pois ocorre no exato momento em que parte dos congressistas – no afã de reduzir mais e mais direitos – estão querendo aprovar a revisão para baixo da definição legal do trabalho escravo, alegando que o conceito atual enunciado no artigo 149 do Código Penal – em vigor desde 2003 e parabenizado internacionalmente – abre a porta a exageros, arbitrariedade e insegurança jurídica.
Em que pese a diminuição dramática nos últimos anos do efetivo de auditores fiscais em atividade (por falta de recrutamentos à altura das necessidades), a baixa frequência da autuação do trabalho escravo demonstra exatamente o contrário: entre os 6826 trabalhadores alcançados em 2015 pelas 125 operações executadas pelo Grupo Móvel nacional e pelos auditores especializados das Superintendências regionais, em 229 estabelecimentos fiscalizados, apenas 1 em cada 7 foi considerado em condições análogas às de escravo. Os fiscais justificam que trabalho escravo é muito mais que tal ou tal infração isolada: é a soma de tamanhas violações à dignidade ou à liberdade da pessoa, literalmente reduzida a mero objeto, que elas acabam colocando em grave risco sua integridade ou mesmo sua vida.
Segundo dados ainda parciais, os estados que lideraram o ranking dos 104 casos de trabalho escravo identificados em 2015 pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram: MG (17), MA (10), RJ (10), PA (9), TO (8), MT (7), SP (6), SC (6), RS (5), CE (4), AM (4), BA (4), RO (4), PI (3), PR (3), GO (3), RR (1).
As principais atividades que se beneficiaram da prática do trabalho escravo em 2015 foram: a construção civil (243 resgatados), a pecuária (133) e o extrativismo vegetal (114, sendo 52 no PI e 37 no CE), atividade esta na qual comunidades de proximidade são exploradas em regime de aviamento por patrões e patrãozinhos, como ocorre ainda muito também no interior da Amazônia. Na prática do trabalho escravo em geral, as atividades econômicas ligadas ao campo predominaram, sobre as atividades urbanas, por pouco, no entanto (o peso importante da escravidão em atividades não rurais se verifica, por exemplo, na participação elevada da grande região Sudeste no total dos resgates: 39%).
Segundo análise da DETRAE, a Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho, o perfil atual das vítimas é de jovens do sexo masculino, com baixa escolaridade e que tenham migrado internamente no Brasil. 621 são homens, em sua maioria entre 15 e 39 anos (489), com ganho de até 1,5 salário mínimo (304); 376 deles são analfabetos ou com até o 5º ano do Ensino Fundamental; 58 são estrangeiros. Doze trabalhadores encontrados tinham idade inferior a 16 anos, enquanto 24 tinham entre 16 e 18 anos.
No finalzinho do ano passado, poucos dias após a entrega do Prêmio Nacional de Direitos Humanos à companheira Brígida Rocha, militante da Campanha De Olho Aberto no CDVDH/CB de Açailândia, MA, uma pronta mobilização[2] permitiu evitar, no Senado, a votação-relâmpago do Projeto de Lei que – sob pretexto de regulamentar a emenda constitucional do confisco da propriedade dos escravistas – propõe eliminar os principais elementos caracterizadores do trabalho escravo, ou seja: os que remetem à violação da dignidade da pessoa (as condições degradantes e a jornada exaustiva[3]). No mesmo dia, 15 de dezembro, foi firmado um termo de cooperação entre MTPS (Ministério do Trabalho e da Previdência Social) e MDS (Ministério do Desenvolvimento Social) que deve facilitar o acesso a programas públicos por parte dos trabalhadores egressos do trabalho escravo ou em situação de grande vulnerabilidade a esse risco. Neste sentido também trabalha a Campanha Nacional da CPT - De Olho Aberto para Não Virar Escravo – através da construção do novo programa RAICE (Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão), já em fase inicial nos estados do MA, PA, PI e TO, com foco na quebra do ciclo da escravidão.
Por fim, merece destaque a decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), anunciada em março de 2015, após 17 anos de tramitação, de levar à Corte Interamericana de San José de Costa Rica, para julgamento, o caso da Fazenda Brasil Verde, uma representação contra o Estado brasileiro, protocolada em... 1998 pela CPT, junto com o CEJIL. Nesta fazenda do Pará, entre 1988 e 1998, e ainda nos anos subsequentes, ocorreram vários episódios de trabalho escravo e sucessivas fiscalizações em relação às quais o Estado assumiu postura contraditória, essencialmente omissa. Tudo foi documentado pela CPT. Na época, cerca de 280 trabalhadores, principalmente do Piauí, foram alcançados por essas fiscalizações. Se assim sentenciada pela Corte, após as audiências marcadas para fevereiro de 2016, a condenação do Estado, além de proporcionar uma reparação material às vítimas, poderá ensejar medidas mais efetivas de políticas públicas e de atuação repressiva no combate ao trabalho escravo, uma solução que os peticionários (CPT e CEJIL) tentaram obter por via de um acordo longamente negociado, mas finalmente negado pelo Estado.
Xavier Plassat, 30/12/2015
Anexo – Dados nacionais do trabalho escravo por grande região e por setor de atividade. Ranking nacional.
[1] 936 libertados, segundo a situação provisória apresentada pelo MTE em 28/12/2015; 860, segundo dados ainda parciais apurados pela CPT.
[2] Com a contribuição emblemática do ator Wagner Moura, destacado embaixador da OIT no combate ao trabalho escravo. Veja seu apelo ao Senador Renan Calheiros. Naquela ocasião, a CNBB também se manifestou em carta dirigida aos senadores.
[3] Em carta aberta (10/12/2015), Brígida assim desabafou: “Quantas vezes - este é meu trabalho diário – não escutei de trabalhadores/as que nos procuram que já não aguentam mais beber agua do açude barrento onde o gado também bebe, de comer carne apenas quando conseguem uma caça, de dormir amontoado no pequeno barraco de lona, sem paredes, ou mesmo no curral, repleto de embalagens de agrotóxicos e outros “Mata tudo”. Quantas vezes não presenciei eles pedirem a Deus para não chover, para que não tenham que passar mais uma noite no molhado? Ou não comer outra vez arroz com molho de pimenta malagueta ou feijão temperado só com sal? Ou não acordar de madrugada para preparar o boião ou a marmita e seguir para a juquira, e comer lá nas matas sem se quer ter agua de lavar as mãos, ou poder se quer descansar meia hora porque tem gato cobrando produção? Ou não ter que aguentar caladinho e humilhado, os palavrões que, de gente, os reduziram a coisa ou a bicho? Ou não ter que seguir trabalhando no medo de apanhar outra vez, sem outra opção a não ser sair fugindo dos tiros, com corpo já marcado por panadas de facão, e pés inchados de correr nas matas? Isso, ouvi e vi de tantos homens que fugiram de fazendas e carvoarias. Nem falo da falta de equipamentos de proteção, dos acidentes fatais, do pagamento que não vem nunca, da família que sofre. Ficam tão cansados, tão que, ao chegarem, muitos desmaiam e até adoecem. Tudo isso é apenas metade do que vivenciam e nos contam. Tudo isso são as condições degradantes e a jornada exaustiva que nossos nobres congressistas se preparam a eliminar de uma canetada. Desde quando isso não é a expressão óbvia da escravidão? Por qual malabarismo, pretendem agora reduzir a escravidão apenas às figuras tradicionais da servidão por dívida e do trabalho forçado, quando a experiência de mais de 50 mil brasileiros libertados do trabalho escravo desde 1995 está aí para testemunhar? Por isso estou aqui a gritar: Senadores, não cometam essa insensatez! Vão para consulta popular! Congressistas, tenham a vergonha do Brasil na cara! Presidenta Dilma, não tolere essa balbúrdia! E se eles teimam, veta!”. Brígida Rocha, 32 anos, mãe, filha de trabalhadores rurais, assistente social no Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos de Açailândia, MA, e educadora da Campanha Nacional De Olho Aberto para não Virar Escravo, da Comissão Pastoral da Terra.